Apesar do avanço da vacinação contra a COVID-19 no país, com 101,3 milhões de brasileiros totalmente imunizados – conforme dados do Ministério da Saúde –, a atividade econômica patina em meio às incertezas conjunturais e a pandemia vai deixando suas cicatrizes, que devem ser profundas. Além das perdas de pouco mais de 600 mil brasileiros e das inevitáveis sequelas nos recuperados, o mercado de trabalho também sofre um baque forte com a COVID-19 e a taxa de desemprego deve demorar para ficar abaixo de dois dígitos, alertam os especialistas ortodoxos e heterodoxos.
Analistas avaliam que, mesmo após o recuo recente para 13,7% na média do trimestre móvel encerrado em julho, quando o país atingiu 14,1 milhões de desocupados, a tendência é que a taxa de desemprego ainda deve subir e não deverá ficar abaixo de 10% nesta década. Eles reforçam que a pandemia agravou um quadro que já era ruim e, portanto, os futuros candidatos à presidência em 2022 precisarão olhar para essa questão com cuidado e elaborar um bom plano de governo, caso contrário, o país não mudará a realidade que é continuar com o desemprego elevado até o fim desta década.
O emprego só vai crescer se a atividade econômica voltar a se aquecer, de acordo com os especialistas. Mas as recentes estimativas do mercado não são nada animadoras, porque estão em queda e mostram que, devido às suas mazelas da volta da inflação e às incertezas em relação à política, o PIB não tem fôlego para crescer de forma robusta, ou seja, acima do seu potencial, que encolheu e hoje está abaixo de 2%. As novas estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o PIB brasileiro, por exemplo, prevendo expansão do PIB de 1,5% em 2022 em vez de 1,9%, são criticadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, que disse que o FMI "vai continuar errando as projeções".
PIB BAIXO
O cenário previsto por especialistas brasileiros, no entanto, é pior do que o estimado pelo organismo multilateral, pois já há estimativas para o PIB abaixo de 0,5% e muitos não descartam um cenário de estagflação – o pior dos mundos na teoria econômica, porque não há crescimento e o custo de vida continua elevado, corroendo ainda mais a renda da população. O Fundo, por exemplo, prevê o desemprego abaixo de 10% em 2026, cenário improvável, de acordo com especialistas.
Um exercício matemático feito por economistas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre) revela que, se o PIB do país crescer 3,5% entre 2023 e 2026, o desemprego ficará em 10,1% no fim do período, em uma projeção sem ajuste sazonal. Na série ajustada sazonalmente, a taxa passaria para 9,8%, considerando essa mesma expansão. Mas, se o PIB avançar 1,5% nos próximos cinco anos, o desemprego chegaria a 11,6% em 2026.
“A taxa de desemprego já vinha subindo desde 2014, com a primeira recessão da última década e estava em dois dígitos antes da COVID-19 e piorou com a pandemia. Apesar de o país já ter voltado a criar emprego, o ritmo não é suficiente para fazer a taxa de desocupação voltar a um dígito tão cedo. Isso já era difícil antes, e, agora, será bastante desafiador”, afirma o economista e pesquisador do Ibre Fernando de Holanda Barbosa Filho, um dos responsáveis pelo levantamento. Para ele, a queda na taxa de desemprego será lenta e gradual, porque um crescimento de 3,5% no país nos próximos anos é pouco provável na atual conjuntura.“Esse foi apenas um exercício que fizemos para mostrar o como o combate ao desemprego será desafiador para quem estiver no próximo governo”, explica.
Vale lembrar que 2021 é um ponto fora da curva na trajetória do PIB brasileiro. As previsões de avanço do PIB, em torno de 5%, após o tombo de 4,1%, em 2020, precisam de um desconto do carregamento estatístico do ano anterior – que varia de 3,6% a 4,9% –, dependendo do cálculo utilizado. Isso só confirma a tendência de baixo crescimento do país, o que faz analistas não apostarem em uma taxa de desemprego de um dígito tão cedo.
“O desemprego não deverá ficar abaixo de 10% nesta década. A não ser que tenha um milagre, o PIB não vai conseguir crescer 3,5% nos próximos anos e isso significa que o desemprego vai continuar muito alto e a massa salarial não retoma o valor real de 2014”, frisa o economista Simão Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP). Ele lembra que o desemprego deu um salto entre 2015 e 2016 e a média atual dos últimos sete anos é ascendente e, sem um crescimento robusto da atividade, o desemprego não tem como diminuir.
Alessandra Ribeiro, sócia da Tendência Consultoria, reforça o raciocínio de Silber. “Por mais que a economia esteja se recuperando, a taxa de desemprego ainda está elevada e, provavelmente, o país deverá recuperar a taxa de ocupação no nível pré-pandemia em maio do próximo ano. Mas o desemprego vai persistir em dois dígitos em um horizonte mais longo”, afirma. Ela lembra que a informalidade no país – de 40,8% da população ocupada, conforme os dados do Instituto Brasileiro de Economia (IBGE) – é elevada e a retomada do setor de serviços ajuda a melhorar as perspectivas para o mercado de trabalho, apesar de grande parte das vagas nesse segmento serem na informalidade. “As pessoas devem começar a voltar a procurar trabalho, mas o volume de vagas geradas não deverá ser suficiente para absorver o contingente que começa a procurar trabalho de novo.
POBRE PAGA O PATO
Na avaliação do professor da USP, o país caminha para mais uma década perdida do ponto de vista do poder de compra do assalariado. “Em poucas palavras, uma das cicatrizes da pandemia é a piora na distribuição da renda, porque quem vai pagar o pato será o mais pobre. Primeiro, porque perdeu renda com o desemprego e, segundo, porque a inflação triplicou. Isso significa que temos hoje 20 milhões de pessoas com nível de acesso à calorias típico de campos de concentração nazistas”, lamenta Silber.
O economista José Luis Oreiro, professor da Universidade de Brasília (UnB), é um dos analistas que não descartam o cenário de estagflação para a economia em 2022. Ele ressalta que, sem investimento público, não há como o PIB crescer de forma mais robusta. “O crescimento de 1,5% previsto pelo FMI seria o teto. Mas, com essa política de destruição do investimento público e com a incerteza gerada pelo governo, não vejo como recuperar, no curto prazo, o desemprego”, afirma.
Para Oreiro, com a inflação atual, também acima de dois dígitos (10,25% até setembro) corroendo o poder de compra do brasileiro, o salário real não para de encolher, o que compromete outro motor do PIB: o consumo. “Não tem como o consumo puxar o crescimento a curto prazo. O país tem uma crise energética contratada e precisa investir pesado em infraestrutura, mobilidade urbana e em uma economia descarbonizada, como os países desenvolvidos estão fazendo”, destaca.
RISCO DE HISTERESE
O professor da UnB também alerta para o risco de a crise da COVID-19 provocar uma histerese no mercado de trabalho, como na física, criando a tendência de o sistema não conseguir mudar a forma adquirida. Oreiro explica que os danos da pandemia nesse segmento podem ser definitivos sem uma boa política industrial, porque, como uma barra de ferro que, aquecida, entorta e não volta mais à sua forma normal, o mercado de trabalho pode seguir o mesmo rumo.
“O risco da pandemia é o desemprego de longa duração tornar permanente e, com isso, a taxa de desocupação não volta mais ao patamar inicial. E há vários mecanismos que explicam essa histerese. O primeiro é o sucateamento do capital, porque quando a economia entra em recessão, as empresas deixam de investir na modernização do estoque e o nível de emprego diminui por conta do sucateamento. O segundo fator é a desqualificação, quando os trabalhadores ficam muito tempo sem emprego e ocorre uma depreciação nas habilidades”, frisa.
No entender do economista Ecio Costa, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o cenário não é tão desolador para falar em estagflação, mas ele reconhece que o desemprego no país permanecerá elevado por um período prolongado. Para ele, sem mudanças estruturais na economia, como a reforma tributária e a administrativa, não há como o desemprego voltar para menos de um dígito no país. “Houve poucos avanços em plena pandemia e a reforma tributária, que poderia ajudar o emprego industrial, não vai avançar e o país vai continuar crescendo no mesmo ritmo pré-pandemia, de 1%”, lamenta.
Costa critica a reforma do Imposto de Renda, que é a escolhida pelo governo, que fatiou a reforma tributária, porque “não vai ajudar nesse sentido de melhorar o crescimento do país e do PIB per capita, passada a pandemia”. “Para reduzir o desemprego, o governo precisará avançar com medidas que melhorem as regras tributárias e a burocracia, ainda muito engessada, o que é fundamental para um crescimento maior da atividade, que continua muito travada”, afirma.