As equipes de análise de crédito, concessão de empréstimos e os consultores dos bancos e financeiras já se ocupam desde quinta-feira de rever o custo do dinheiro, que encareceu após a elevação, ao maior nível dos últimos quatro anos, da taxa básica de juros da economia brasileira
A nova taxa de 7,75% ao ano impacta, de imediato, com aumento das prestações dos financiamentos, de geladeiras a carros e a casa própria, e dos encargos nas compras a prazo por meio dos cartões de crédito ou carnês das lojas. Influencia também os compromissos feitos no cheque especial, entre outras modalidades.
O arrocho promovido pelo Banco Central (BC), que não se via há quase 20 anos, tem ainda gás suficiente para alimentar a inadimplência e engrossar o universo de consumidores no endividamento, sem, no entanto, conter a inflação nos próximos meses, como alertam analistas ouvidos pelo Estado de Minas.
Não se imagina redução de preços da gasolina e muito menos das carnes, a despeito da expressiva alta da Selic de 1,5 ponto percentual – ela estava em 6,25% anuais –, alta mais intensa desde 2002.
Com receio e cuidado para não se endividarem sem controle, a assistente administrativa Thais Roberta, de 27 anos, e o noivo, Lucas Tadeu, técnico industrial, de 32, decidiram manter apenas o projeto essencial da casa que eles compraram ainda na planta e esperam receber em dezembro.
“Ficamos um pouco assustados, não estávamos esperando um aumento tão brusco, que, inclusive já vinha ocorrendo nos últimos meses. Além dos juros altos da compra da casa, este ano também houve subida de preços dos materiais de construção”, ressalta Thais. Para conter os gastos, agora o casal decidiu priorizar o mobiliário ao mínimo necessário e a escolha se dará em razão de preço, e não marca de produtos.
"Os orçamentos das famílias vão sendo asfixiados e o sintoma disso é o aumento da inadimplência"
Fábio Bentes, economista da CNC
A atitude de Thais e Lucas segue as orientações dadas às famílias pelos economistas para tentar melhorar o controle sobre o orçamento. Os juros altos costumam conter os aumentos quando o consumo acelerado e incapaz de ser atendido é o fator de pressão sobre os preços.
Encarecendo o crédito, os juros desestimulam as compras, e atraem quem tem recursos disponíveis para as aplicações financeiras, o que detém os preços em geral, mas não se trata da situação no país, explica o economista André Braz, coordenador dos índices de preços da Fundação Getulio Vargas.
“Mais de 50% da inflação acumulada em 12 meses (de 10,25% até setembro, com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, o indicador oficial da inflação no Brasil) vem dos reajustes da energia, dos combústiveis e de matérias-primas que ficaram mais caras (da soja ao minério de ferro)”, afirma. Será difícil ver algum efeito dos juros no preço dos combustíveis, uma vez que alta da gasolina, do óleo diesel e do gás de cozinha resulta, sobretudo, do aumento das cotações do petróleo no mercado internacional e da desvalorização do real frente ao dólar.
Todo produto que o país precisa importar mais caro significará pressão sobre os preços internamente, gerando inflação, observa André Braz. Fator adicional, que está fora do controle do governo, e, portanto, do alcance dos juros é o descompasso não só no Brasil, mas no mundo, entre a produção dos derivados do petríoleo e a demanda maior gerada pela volta à normalidade da vida da população, depois do período mais restrito imposto pela pandemia de COVID-19. Pelas leis da economia, procura superior à oferta pressiona os preços.
Potencializado
Se a receita dos juros altos tem, portanto, pouco efeito sobre a inflação, o resultado é drástico e rápido do ponto de vista do dinheiro mais caro, potencializando a insolvência já elevada no Brasil, destaca o economista Fábio Bentes, da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Não se trata de tarefa fácil estimar como a Selic vai influenciar os juros na ponta, ou seja, para o consumidor. Antes do aperto no juro básico determinado na quarta-feira, a taxa média de juros nas operações de empréstimo às famílias já alcançava 41,5% ao ano, de acordo com dados do Banco Central.
Fábio Bentes acredita que esse custo, também na média, poderá ultrapassar 45% ao ano no fim de dezembro ou até chegar perto de 50%, se o BC optar por promover novo acréscimo na Selic. “Os orçamentos das famílias vão sendo asfixiados e o sintoma disso é o aumento da inadimplência, num momento em que o mercado de trabalho continua travado e a inflação alta”, afirma.
A consequência da rota ascendente dos juros para o consumidor endividado impressiona. Bentes observa que uma dívida de R$ 1 mil contraída no cheque especial pode dobrar no período de um ano, corrigida a juros de 8% ao mês, que significam 100% ao ano.
Antes mesmo da nova alta dos juros, a inadimplência já vinha crescendo. O indicador medido pelo BC oscilou de 4,14% em janeiro para 4,10% em maio e julho, voltou a subir a 4,15% em agosto e estava em 4,25% no mês passado, maior taxa desde novembro de 2020 (4,29%). Significa que a cada R$ 100 emprestados às famílias, R$ 4,25 não foram pagos num intervalo superior a 90 dias.
Tiro no pé Ciente da engrenagem que os juros altos provocam, o BC parece ter emitido uma espécie de recado à população, segundo Fábio Bentes, “O aumento dos juros já era esperado, embora a dúvida fosse a magnitude dele. O BC está procurando manter a condição de guardião da estabilidade monetária e dizer que pretende entregar uma inflação mais baixa, mas no futuro”, resume.
Não fica claro para o consumidor, na avaliação do economista Paulo Vieira, professor do Centro Universitário UniHorizontes, de Belo Horizonte, é que uma simples “canetada” do Copom eleva os juros nos bancos e no comércio, enquanto a influência sobre toda a cadeia da atividade econômica, “por tradição”, só tende a ser observada no período de quatro a seis meses.
"O desafio é também não perder a essência por causa dos custos"
Priscilla Dourado Amorelli Gouvêa, sócia de rede de sorveterias e cafeterias
Ajustes essenciais nos lares e nas empresas
Em casa e nas empresas, os exercícios da reorganização do orçamento e da otimização das despesas já haviam se tornado constantes e, mais uma vez, ganham importância diante da inflação e dos juros mais altos.
A estratégia tem sido essencial num momento de recuperação das vendas e de projetos de expansão de negócios, conta Priscilla Dourado Amorelli Gouvêa, sócia da rede de sorveterias e cafeterias Alessa Gelato & Caffè, com quatro lojas em Belo Horizonte.
Depois de adotar a política de obter o melhor rendimento de processos de produção e de todo o fluxo de atendimento nas lojas, tem sido possível reduzir ao menor nível o impacto da elevação de custos fixos, que subiram entre 15% e 20% desde outubro do ano passado.
Com os controles financeiro e de qualidade afinados, e a volta gradativa do consumidor às lojas, a rede reforça planos de crescimento, em vez de abandoná-los perante o crédito mais caro. A despeito da turbulência longa na economia, segundo Priscilla Dourado, está mantida a decisão de abrir duas lojas na capital em 2022. “Mesmo na crise, conseguimos reduzir o impacto nos custos e seguimos com as possibilidades de expandir. É bola pra frente, trabalhando dia a dia para encontrar opotunidades”, afirma a sócia da rede Alessa.
Guardadas as proporções e diferenças, que não são poucas, as famílias também procuram saídas para o orçamento apertado. Preferindo o anonimato, o funcionário público V. H. R. S. revela que a família dele se viu forçada a mudar hábitos de consumo, substituindo a compra da carne de boi por cortes mais baratos, como os de frango e linguiça, embora os reajustes de preços não venham perdoando nenhuma proteína. “Também desapeguei das grandes marcas de produtos do supermercado. Estou comprando produtos de marcas não tão conhecidas por causa do valor menor”, diz.
Outro esforço visa fazer caber no orçamento as despesas com um automóvel Fiat Uno de 2013 junto dos gastos com alimentação. “Não penso em vender o carro por enquanto, mas com o atual valor da gasolina penso em deixá-lo o máximo possível na garagem, sem uso.”
Nas empresas, surgiram também dificuldades para repassar os aumentos dos custos, num período de inflação alta combinada à queda de rendimentos e do emprego. O enxugamento das despesas, por sua vez, implica não sacrificar os valores e o serviço prestado ao consumidor, enfatiza Priscilla Dourado.
“Não se pode deixar que a qualidade seja afetada devido aos custos. O desafio é também não perder a essência da empresa”, afirma. No conjunto de mediddas adotadas pela rede de sorveterias, foi incluída a readaptação do cardápio com 25 dos 42 sabores que eram oferecidos. Parcela dos insumos da produção própria da empresa é importada.
Mais aperto em 2022
As famílias são afetadas por outro efeito nocivo e dramático dos juros elevados, que, ao encarecer os investimentos do setor produtivo, frustram a geração de empregos, quando o Brasil precisa voltar a crescer e dar alternativa a 13,7 milhões de desempregados e a outros 17,4 milhões de pessoas atuando em trabalhos muito precários ou que estariam trabalhando se houvesse vaga para eles.
Como numa ciranda, esse efeito é reflexo de outro prolema grave, fruto da interferência da crise política na economia, para o qual André Braz, da FGV, chama a atenção.
É como uma encruzilhada vivida pelo país perante os investidores. Com o aumento dos juros, o BC tenta manter o interesse deles no país, oferecendo melhor remuneração aos títulos públicos, mas o governo vem perdendo a capacidade de atrair dólares com a política de elevação de gastos públicos motivados pela campanha já antecipada à reeleição em 2022.
“Se os juros sobem, em condições normais, a nossa moeda deveria se valorizar (com o ingresso de dólares no pais), mas existe uma crise de confiança no governo, que foi agravada pela decisão do Auxílio Brasil, voucher (para os caminhoneiros) e por jogar os precatórios para o alto. É um calote. Não cabia mais prorrogação”, diz André Braz.
"Existe uma crise de confiança no governo, que foi agravada pela decisão do Auxílio Brasil, voucher (para caminhoneiros) e precatórios"
André Braz, coordenador dos índices de preços da Fundação Getulio Vargas
A chamada PEC dos Precatórios reduz a menos da metade os recursos previstos para pagamento dos depósitos judiciais no ano que vem. A União quer usar os recursos para financiar o Auxílio Brasil, programa social substituto do Bolsa-Família, com valor de R$ 400. A medida tem caráter eleitoreiro para os críticos do governo, que driblou a regra do teto de gastos. A atualização, que era feita com base na inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior, passou para janeiro a dezembro, liberando verba ao governo em ano de eleiçlão
Essa crise explica as projeções nos bancos e corretoras de taxas mais altas de inflação, juros e câmbio e redução da perspectiva de crescimento do país. O economista Paulo Vieira lembra que a expectativa no mercado financeiro é de que a taxa básica de juros atinja 9% anuais ainda em 2021 e 11% no próximo ano. “Anos de eleição fogem totalmente a qualquer capacidade de previsão com base na lógica”, afirma.
Não é de se esperar que em ano de campanha, o governo vá correr atrás de metas de inflação, no sentido de ajudar a segurar os preços, e nem de organizar as contas públicas. No outro prato da balança dos juros, quem tem recursos disponíveis para investir deve ser benefíciado com um leque de investimentos em renda fixa melhor remunerados, a exemplo dos CDBs e títulos públicos como LCI e LCA, que acompanham a evolução da Selic.