Se o Brasil perder mais uma década em termos de crescimento econômico, pode acabar perdendo meio século. O alerta é de Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do Goldman Sachs, segundo maior banco de investimentos do mundo.
"O que me preocupa é que, se a gente não encontrar um caminho de crescimento mais robusto e socialmente inclusivo, fique muito difícil de governar esse país. Que a governabilidade acabe se deteriorando muito, pela desestruturação do sistema institucional e pela pressão social", afirma o economista, em entrevista à BBC News Brasil.
Ramos — que considera a década de 2010 perdida para o país, assim como a de 1980 — não mudou sua percepção sobre o Brasil e o futuro do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com os acontecimentos de 8 de janeiro em Brasília, quando radicais bolsonaristas depredaram prédios públicos dos três poderes da República.
"A expectativa é de que isso tenha sido um episódio isolado", diz o analista. "Não está no meu cenário a possibilidade de uma ruptura institucional. Me parece que as instituições no Brasil são suficientemente robustas para proteger o regime democrático."
Nascido em Portugal, Ramos atua no Goldman Sachs desde 2003, tendo passado pelos cargos de vice-presidente e diretor administrativo. Especializado em finanças e com PhD em economia pela Universidade de Chicago — considerada berço do liberalismo econômico —, foi antes economista sênior do Fundo Monetário Internacional (FMI), trabalhando com Argentina, Brasil e Turquia. Atualmente, ele lidera sua equipe de analistas a partir de Nova York.
O economista vê boa vontade de investidores estrangeiros com o novo governo, mas alerta que, com a reabertura da China e uma Europa que administrou bem a crise do gás decorrente da guerra da Ucrânia, o país não está sozinho na disputa pelos fluxos de capitais internacionais.
Nesse cenário, o governo Lula tem como principal desafio este ano equacionar a questão fiscal, avalia Ramos. Mas precisa evitar a tentação de medidas intervencionistas e populistas que não deram bons resultados no passado.
"Não é uma lei da natureza que a América Latina não cresça e que as condições de vida não melhorem. É um reflexo de escolhas equivocadas dos últimos anos", diz Ramos. "É de fato inaceitável o crescimento ser tão medíocre, é preciso mudar isso, porque as condições de vida têm que melhorar. A América Latina está perdendo o trem do desenvolvimento."
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Como o senhor viu o episódio da depredação dos prédios públicos em Brasília e como isso repercutiu entre os investidores internacionais?
Alberto Ramos - É um sinal da polarização profunda do ponto de vista político e social que o Brasil tem vivido nos últimos anos. Foi uma campanha muito dividida e parece que essa polarização não se resolveu com a eleição. Sempre que tem esse ruído institucional, político e social, é algo que deixa o investidor um pouco mais defensivo.
BBC News Brasil - Mas esses ataques mudaram de alguma forma o cenário que estava dado para o novo governo Lula? Isso pode afetar a governabilidade, na perspectiva do senhor?
Ramos - No meu cenário não mudou nada, porque a expectativa é de que isso tenha sido um episódio isolado. Por mais triste que tenha sido, a expectativa é de que não se repita, pelo menos à escala do que aconteceu.
Acredito que a polarização vai continuar, que o presidente Lula vai continuar a enfrentar uma oposição relativamente combativa e aguerrida. Estamos bem longe do consenso de um presidente que tem uma popularidade extremamente alta. Então isso pode certamente limitar a governabilidade, mas isso já estava no nosso cenário de base, não alteramos nada com os eventos de 8 de janeiro.
BBC News Brasil - A possibilidade de uma ruptura institucional está no seu radar e no radar dos investidores, ou a resposta do governo foi suficiente para afastar esse tipo de temor?
Ramos - Não falo por outros investidores, mas não está no meu cenário a possibilidade de uma ruptura institucional. Me parece que as instituições no Brasil são suficientemente robustas para proteger o regime democrático. Há uma imprensa livre e vibrante, e as instituições têm performado o papel constitucional que se espera delas. Então não há um cenário de ruptura institucional.
BBC News Brasil - Qual é a perspectiva do senhor para o crescimento do PIB brasileiro esse ano?
Ramos - A expectativa é de um crescimento modesto, por volta de 1%, que tem a ver um pouco com a diminuição do impulso relativo à reabertura da economia [após a pandemia], que estimulou bastante a atividade em 2021 e 2022.
Tem também a ver com a própria restritividade da política monetária [isto é, a taxa básica de juros elevada, com a Selic atualmente a 13,75% ao ano], as condições financeiras bastante restritivas, que infelizmente é o que é necessário para trazer a inflação de volta para a meta e reancorar as expectativas de inflação.
Também um mercado de trabalho que está relativamente apertado, com uma taxa de desemprego já próxima do nível neutro [quando o desemprego não é zero, mas está no ponto considerado de equilíbrio, sem acelerar a inflação], que é o reflexo do crescimento relativamente vigoroso de 2022.
Por fim, há também uma demanda externa mais limitada. Então teremos em 2023 uma desaceleração da atividade econômica que reflete o efeito combinado de todos esses fatores.
BBC News Brasil - E quais são os principais desafios que o senhor vê para a economia brasileira esse ano?
Ramos - Para esse ano, o primeiro desafio é equacionar a questão fiscal. Principalmente, qual será a âncora fiscal de médio e longo prazo. Essa é a grande questão.
O teto de gastos, que teve um papel fundamental em ancorar [as expectativas dos investidores com relação] a parte fiscal e a dinâmica da dívida vai ser substituído, e não há ainda indicação do que será esse substituto. Então esse é um ponto importante, manter as expectativas e o ancoramento do fiscal no médio e longo prazo.
BBC News Brasil - O senhor mencionou o crescimento vigoroso do ano passado que resultou nessa melhora do mercado de trabalho. O senhor começou 2022 prevendo uma alta de 0,8% para o PIB brasileiro e tinha gente prevendo até recessão. Mas o PIB de 2022 deve ter crescido próximo de 3%, segundo as expectativas mais recentes do boletim Focus. Por que os economistas erraram tanto as previsões no ano passado?
Ramos - Acho que todo mundo subestimou o impacto da reabertura da economia.
Depois teve o próprio efeito da guerra na Europa, entre Rússia e Ucrânia, que levou a um aumento significativo do preço de commodities, o que alavancou a melhora dos termos de troca do Brasil [relação entre os preços de exportação e os de importação do país], alavancando também o crescimento.
O crescimento global também foi bem maior do que se esperava.
E o quarto fator foi o impulso fiscal [as medidas de estímulo à economia feitas pelo governo Bolsonaro, como o Auxílio Brasil de R$ 600, entre outras], que foi bem maior do que se projetava no início do ano, embora parte disso tenha sido mitigada por uma política monetária mais restritiva e uma inflação mais alta. Então, no final, acho que essa foi a grande surpresa.
BBC News Brasil - A economia pode surpreender de novo esse ano?
Ramos - Pode. Nossa visão em relação à economia americana e global é um pouco mais construtiva do que a média do mercado. Achamos que não vai ter recessão nos EUA e temos projeções para crescimento da China, global e preços de commodities acima da média.
Então pode surpreender, a depender do grau de estímulo fiscal em 2023. Não descarto a possibilidade de ter um crescimento mais forte, como não descarto a possibilidade de um crescimento mais fraco. Nossa estimativa de um crescimento [do PIB brasileiro em 2023] de 1,2% tem risco para ambos os lados.
BBC News Brasil - Como o senhor viu o pacote de medidas anunciadas na semana passada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para reduzir o déficit público, mirando um déficit entre 0,5% e 1% do PIB esse ano?
Ramos - Foi um passo importante. Mostra que o governo está preocupado com a dimensão do déficit como saiu com a aprovação do Orçamento, que era um déficit de quase R$ 230 bilhões ou 2,3% do PIB. E que está comprometido em reduzir esse déficit.
O pacote em si não impressionou tanto. É um pacote com um viés muito grande para medidas de aumento da receita, medidas tributárias. E medidas que são transitórias, há poucas medidas permanentes, algumas delas de efeito duvidoso.
Gostaria de ver um pacote mais centrado na racionalização e redução do gasto. Num país que gasta mais de R$ 2 trilhões, certamente há gastos improdutivos, redundantes, mal alocados.
Seria importante que o pacote tivesse um viés mais focalizado no gasto do que na receita, porque teria uma implicação melhor para a inflação, com um componente permanente e acoplado à nova âncora fiscal, que é a discussão que vem pela frente.
BBC News Brasil - Haddad tem prometido apresentar ainda esse semestre o novo arcabouço fiscal para o país, que deve substituir o teto de gastos. Qual é a expectativa dos investidores internacionais com relação a essas novas regras?
Ramos - Há uma expectativa grande. É muito, muito importante ter uma âncora fiscal, particularmente alguma coisa que limite uma expansão desenfreada do gasto, dado que o nível de endividamento público é bastante elevado, e dado o histórico do PT nos últimos anos.
Mesmo nos anos Lula, no início de mandato, houve uma expansão do gasto muito elevada, mas nessa altura o preço de commodities ajudou muito, a receita também aumentava. Quando a receita parou de crescer, isso levou a déficit crescente.
Eu pessoalmente não acho que a regra do teto de gasto tenha sido assim tão ruim, acho que ela teve um papel muito importante de ancoramento de expectativa e também de limitar o gasto. E vai ter que ser por aí, pode ser uma regra com mais flexibilidade, que tenha um elemento contracíclico, que permita que não tenha que reduzir muito o déficit quando a economia está contraindo e a receita cai.
Infelizmente, acho que não há muitas alternativas a alguma regra que limite o gasto, só através disso é que você consegue ancorar as expectativas de médio e longo prazo. Vamos ver, é uma discussão que vem pela frente e o Congresso também terá papel importante nesse debate.
BBC News Brasil - Qual é a perspectiva que o senhor vê para o avanço das reformas estruturais nesse governo, particularmente a reforma tributária?
Ramos - Acredito que não vai haver grandes reformas estruturais, tirando a reforma tributária, que já está bastante avançada a discussão no Congresso.
Há uma proposta que já amadureceu bastante na Câmara, uma proposta que também já amadureceu bastante no Senado e o [secretário especial para a reforma tributária do Ministério da Fazenda] Bernard Appy é uma autoridade do ponto de vista fiscal e tributário. Então acho que alguma coisa vai sair, agora depende de como for configurada essa reforma.
A ideia do governo, pelo menos durante a campanha, é que seria uma reforma neutra do ponto de vista de arrecadação. Eu tenho minhas dúvidas.
Há dois componentes: o dos impostos indiretos e o do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas. Talvez aí [no imposto de renda] é que vai ter um sistema mais progressivo, que aumente a arrecadação. Vamos ver como é que fica. É um tema complexo, que claramente tem ganhadores e perdedores, que põe em lados contrários indústria versus serviços, Estados pobres contra Estados ricos. Sempre foi um tema muito espinhoso e difícil.
Mas eu acho que, dentro do tema de grandes reformas estruturais, provavelmente ficamos por aí. Não estou muito otimista com outras reformas, como a administrativa, que possivelmente seriam necessárias para alavancar o crescimento.
BBC News Brasil - Num relatório de 2019, o senhor declarou a década de 2010 como "perdida" para o Brasil, assim como a de 1980. São duas décadas perdidas para a economia brasileira em 40 anos. E o senhor alertava para o risco de a gente perder também a década atual. O senhor avalia que esse risco persiste ou algo mudou na sua visão desde então?
Ramos - Olha, não mudou muito. Acho que esse risco segue latente. Tivemos a pandemia, que levou a uma contração violenta da atividade. Seguiu-se uma recuperação em "V" bastante rápida, mas a dinâmica do crescimento, o crescimento potencial do Brasil, continua relativamente baixo. Daí a importância das reformas estruturais, que tornem a economia mais competitiva, mais flexível. Que aumentem o investimento público e privado.
Há um Estado gigante, obeso e ineficiente no Brasil, se não for possível reduzir o tamanho do Estado, pelo menos que o Estado gaste melhor. Seria muito importante focar na qualidade do gasto, para que o efeito multiplicador do gasto que temos hoje seja maior, tenha maior impacto econômico e social do que tem sido o caso nos últimos anos.
Algumas declarações da ministra [do Planejamento] Simone Tebet vão um pouco nessa direção e seria muito importante aprofundar essa agenda.
BBC News Brasil - O que o país precisa fazer então para sair desse ciclo de baixo crescimento e da fome sempre à espreita?
Ramos - O problema já foi extensamente debatido, não precisa criar nenhuma comissão para analisar por que o Brasil cresce pouco. É um país que gasta muito e investe pouco, tem uma produtividade muito baixa, o nível de investimento em capital físico e capital humano é relativamente limitado. É um país pouco integrado na economia global, tem um sistema tributário muito oneroso, o déficit de infraestrutura é significativo. Então a agenda é conhecida, agora é começar a trabalhar nela. Não precisa descobrir a pedra filosofal [substância lendária que transformaria qualquer metal em ouro].
BBC New Brasil - Durante o governo Bolsonaro, vimos os investidores muito reticentes com o país, com alguns grandes fundos de investimento inclusive interrompendo aportes em títulos públicos brasileiros por conta da destruição da Amazônia. Parecia ter uma certa ansiedade pela volta à normalidade. O senhor acredita que estão dadas as condições para os investidores estrangeiros voltarem?
Ramos - Acho que sim, há uma boa vontade muito grande com relação ao governo Lula e acho que aí pode ser até onde se observe a maior diferenciação entre os governos Bolsonaro e Lula, nessa agenda ambiental, o impacto que isso tem fora do país e nos investidores. Pode e vai certamente alavancar os fundos que são mais sensíveis a esses temas e alguns fundos específicos, como o Fundo Amazônia e outros que foram interrompidos durante o governo Bolsonaro. Então vejo isso claramente como uma via, e até uma via mais rápida, de atração de capital no curto prazo.
BBC News Brasil - E para os demais investidores, depende dessa agenda toda que o senhor falou, ou essa boa vontade é generalizada?
Ramos - Não, acredito que não há uma boa vontade generalizada. Até porque o Brasil não é a única oportunidade de investimento no mundo. Há a reabertura da economia da China, com a saída da [política de] "covid zero". A Europa parece que vai conseguir evitar uma recessão, porque manejou a restrição do gás de maneira eficiente. Então o Brasil tem competidores nesse fluxo de capital global, talvez mais do que se imaginava há três meses.
E, além de toda a questão da sustentabilidade fiscal, há a política micro [referente ao ambiente de negócios]. Isso me preocupa um pouco mais nesse começo um pouco atribulado do novo governo. O marco regulatório de setores importantes da economia, o manejo das empresas públicas e dos bancos públicos, a tendência de interferir em certas variáveis da economia, por exemplo, a política de preços da Petrobras, "campeões nacionais", crédito subsidiado.
Uma agenda que tem sido característica dos governos do PT e que não teve resultado muito favorável lá atrás, me parece estar voltando com força. Então eu acho que não vai ter nenhuma explosão fiscal, que o governo entende de alguma maneira a importância de conter a parte fiscal, mas vejo com alguma preocupação essa agenda micro.
BBC News Brasil - Por fim, o senhor analisa toda a América Latina. Como avalia a posição do Brasil hoje em relação aos demais países da região?
Ramos - A América Latina está com um problema de crescimento parecido com o Brasil. Crescimento baixo, fricção política, ativismo social. Então parece um fenômeno um pouco mais abrangente do que só a realidade do Brasil.
Há problemas institucionais, políticos e algum receio de investidores no Chile, na Colômbia, na Argentina há 30 anos, no Peru com o impeachment do presidente [Pedro Castillo, que perdeu o cargo em dezembro]. Então, dentro desse contexto, é um problema mais sistêmico da América Latina, o do baixo crescimento, crises institucionais, pressão social.
E olha, há que ter um pouco de simpatia por isso [o descontentamento popular], porque o progresso socioeconômico da América Latina na última década tem sido extraordinariamente baixo. As condições de vida não melhoraram, então o votante médio está insatisfeito. E ele vai, grita e com razão. Quer dizer, não é uma lei da natureza que a América Latina não cresça e que as condições de vida não melhorem. É um reflexo de escolhas equivocadas dos últimos anos, então é importante que essa ansiedade, que esse sinal chegue à classe política.
O Congresso, o governo, o Judiciário, todo mundo tem a sua cota de responsabilidade na integridade institucional e no próprio crescimento. É de fato inaceitável o crescimento ser tão medíocre nos últimos anos, é preciso mudar isso, porque as condições de vida têm que melhorar. A América Latina em geral está perdendo o trem do desenvolvimento.
O que me preocupa é que, se [o Brasil] voltar a perder mais uma década, acaba perdendo meio século. E que, se a gente não encontrar um caminho de crescimento mais robusto e socialmente inclusivo, fique muito difícil de governar esse país. Que a governabilidade acabe se deteriorando muito, pela desestruturação do sistema institucional e pela própria pressão social. Então temos que encontrar uma resposta a esse anseio do votante médio, que é extremamente legítimo. Se não dermos uma resposta cabal, que mude esse quadro econômico e social, te garanto que a coisa pode piorar, essa é a parte que me preocupa.
Agora, é sempre possível tornar uma situação ruim pior. E me preocupa às vezes que alguns atalhos populistas, que parecem dar uma resposta de curto prazo, mas não uma resposta estrutural de médio e longo prazo, possam potencialmente agravar um problema que é real.
Vamos ver, mas acho que o relógio está contando, o tempo está avançada. A gente não tem muitos anos para dar uma resposta um pouco mais abrangente sobre isso.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64312369
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