Americanas

Lojas continuam funcionando normalmente após justiça aceitar pedido de recuperação judicial, na quinta-feira

Mauro Pimentel/AFP

A crise da Americanas, uma das maiores empresas do setor varejista no país, pegou muitos brasileiros de surpresa, principalmente os cerca de 100 mil funcionários e os mais de 50 milhões de clientes. 

No entanto, o episódio reflete, segundo especialistas, a falta de boa governança e de uma cultura organizacional focada no “lucro selvagem”, problemas que não estão limitados à companhia, que entrou em processo de recuperação judicial no último dia 19, mas atingem outras empresas nacionais.

O professor e pesquisador Pedro Paro, principal executivo (CEO, na sigla em inglês) da Humanizadas, avalia que o modelo utilizado, atualmente, por uma parcela de grandes companhias do mercado brasileiro se encontra ultrapassado e insuficiente para resolver os desafios que vieram junto com o século 21, que envolvem uma governança ambiental, social e corporativa,  representada pela sigla ESG, em inglês, e que já vem sendo adotada no Brasil aos poucos.

“As organizações que tiverem culturas mais saudáveis, mais positivas, que tiverem mais liderança, e que consigam operar em um outro modelo, em um outro sistema mental, capaz de gerar valor e possibilidades, essas empresas tendem a não correr riscos, como nesse caso. E, sim, tendem a encontrar uma série de oportunidades, questão de melhores talentos, de atração e crescimento da base de clientes e consumidores”, avalia o executivo.

Desde 2019, o pesquisador tem atuado na Humanizadas, empresa voltada para monitorar boas práticas de cultura organizacional dentro de outras companhias, que, como o próprio nome já diz, pretende contribuir para o melhoramento das relações humanas e sociais no mercado. 

Por causa da descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões, que acabou afetando a capacidade de a empresa arcar com uma dívida de R$ 43 bilhões junto a mais de 16.300 credores, é um exemplo da falta de cultura que atinge demais empresas do mercado de varejo e de outros setores.

“Essa dívida, na minha leitura, é um acúmulo de anos e anos, de discussões que não foram tidas, e falta de segurança psicológica no ambiente de trabalho, falta de transparência, de processos, rotinas e favores de governança administrativa. Então, para mim, isso revela um modelo mental que é o modelo do século passado, do capitalismo selvagem”, argumenta Paro.

Sem transparência 

Entre os fatores mais decisivos que levaram a Americanas a chegar na situação em que se encontra hoje, o que teve mais destaque entre os especialistas ouvidos pela reportagem é a falta de transparência e de tomada de atitudes antecipadamente. Um dia após a empresa ter anunciado inconsistência contábil de R$ 20 bilhões, o então CEO Sergio Rial, que renunciou após ficar 10 dias no cargo, disse que o saldo deficitário advinha há pelo menos 7 a 9 anos.

Na visão da economista Victoria Saddi, sócia da SM Futures, houve omissão clara por parte da gerência da empresa sobre o problema, que já se agrava há anos. “E o problema é que o que foi reportado, esse erro contábil, é um erro básico, sabe? É você não ter aula de contabilidade, só que você tá falando de dono de business. Então eles sabiam. Já está claro que eles sabiam”, pondera a executiva.

Já o presidente da Comissão de Direito Empresarial da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB), na Subseção de Pinheiros, Fernando Brandariz, considera que houve uma articulação bem-estruturada para omitir informações. “É um negócio que vem ocorrendo há muito tempo, que ninguém percebeu, na auditoria, e nem bancos, quando forneceram os créditos, eu acho que deve ser uma coisa um pouco difícil de localizar. Não vou dizer que tem uma fraude aí no meio, mas se ocorreu a fraude, não foi uma fraude porca. Foi uma estrutura bem montada”, analisa.

Na avaliação do contador  Eduardo Gimenes, diretor-executivo da NTW Maringá, a categoria de despesas financeiras de uma empresa é tratada separadamente do lucro operacional da empresa na Demonstração de Resultado do Exercício (DRE), que consiste em gastos atrelados ao custeio da operação da companhia, de modo que as despesas e a posição da empresa no DRE são informações fundamentais para compreender o nível de endividamento e o grau de alavancagem financeira nesse caso. “E quando falamos em uma empresa de capital aberto, isso pode ser muito grave, pois oculta informações fundamentais na tomada de decisão na hora de o investidor comprar ações de uma empresa”, recorda Gimenes.

Vale lembar que acionistas minoritários da Americanas querem responsabilizar a PricewaterhouseCooper (PwC) pela neglicência do rombo de R$ 20 bilhões nas contas da varejista quando fez auditoria na empresa e aprovou as contas "sem ressalvas". A Abradin, entidade que reúne sócios minoritários de empresas de capital aberto, enviou à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) um documento pedindo a investigação da auditoria. A CVM investiga o rombo bilionário nas contas da companhia, assim como os acionistas controladores, o trio de investidores brasileiros Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, sócios da 3G Capital.

Conforme levantamento feito pelo economista Einar Rivero, head comercial do TradeMap, em 2022, o volume de dividendos pagos pela empresa até setembro de 2022, de R$ 333,2 mi- lhões, foi o maior já pago pela empresa nos últimos 10 anos. Esse valor, comparado com as concorrentes, é o segundo maior da história, perdendo para os dividendos pagos pela Via Varejo, em 2013, de R$ 394 milhões. Os papéis da companhia praticamente viraram pó e foram retirados do Índice Bovespa (IBovespa), principal indicador da Bolsa de Valores de São Paulo (B3), valendo menos de R$ 1, cotados a R$ 0,71.

Operação

Em uma tentativa de acalmar os clientes após pedir recuperação judicial, a Americanas afirmou ontem que suas operações não foram afetadas por eventuais restrições de caixa e que não houve alteração na demanda dos clientes, na oferta de produtos e no fluxo de pagamentos. A empresa afirma ainda que trabalha em um plano estratégico de otimização de recursos para garantir a sustentabilidade da companhia no curto prazo, o que inclui a reestruturação da operação. “Faz parte do nosso dia a dia verificar e ajustar eventuais desequilíbrios de um ou outro ponto. Agora, a gente entrou em um processo de recuperação judicial e isso nos obrigará a olhar esses pontos com mais foco. Certamente, vamos ajustar aquilo que não for essencial para a gente”, disse Marcio Chaer, diretor de operações e relacionamento com o consumidor da Americanas.