Os governos de centro-esquerda se tornaram melhores gestores da economia do que a direita no século 21, defende Joseph Stiglitz, vencedor do Nobel de economia, professor da Universidade de Columbia (EUA) e antes economista-chefe do Banco Mundial (1997-2000).
Para Stiglitz, que completou 80 anos neste mês de fevereiro, a centro-esquerda volta ao poder na América Latina em momento “que não poderia ser pior”, com pandemia, inflação, restrições fiscais e a economia mundial em desaceleração.
Mas ele avalia que os governos da região poderão ser bem sucedidos se conseguirem manter o foco no fato de que foram eleitos para criação de uma “prosperidade compartilhada”, isto é, um crescimento inclusivo, que garanta a melhora de vida da parcela mais pobre da população.
Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Stiglitz afirma que os bancos centrais do mundo erram ao combater a inflação atual com elevação de juros.
Isso porque, na avaliação do economista, a alta no custo de vida que aflige o mundo hoje é provocada principalmente por restrições na ponta da oferta causadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, além de mudanças no padrão de consumo também derivadas da crise sanitária.
Assim, no contexto atual, elevar juros – uma medida de política monetária que tem por objetivo restringir o custo e a oferta de crédito, esfriando a economia para reduzir a inflação – pode fazer mais mal do que bem, defende o Nobel.
No Brasil, na disputa entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sobre o nível da taxa básica de juros e da meta de inflação do país, Stiglitz avalia que o petista está correto em suas preocupações.
“Há um custo enorme em ter taxas de juros altas. Isso coloca o Brasil em desvantagem competitiva, estrangula as empresas brasileiras, enfraquece a economia do país. Então o presidente Lula está absolutamente correto em estar preocupado com essas questões”, diz Stiglitz à BBC News Brasil.
“A pesquisa teórica mais recente, realizada em um período longo de tempo, mostra que, em momentos de rápido ajuste da economia e mudança estrutural – o tipo de coisa que estamos vivendo no mundo pós-covid e à medida que rumamos para a transição verde –, uma taxa de inflação mais alta na verdade facilita o ajuste”, afirma.
Conselheiro durante o governo do democrata Bill Clinton (1995-1997) e atualmente copresidente da ICRICT (sigla em inglês para Comissão Independente de Reforma Tributária Internacional de Empresas), Stiglitz defende que o combate à desigualdade deve estar no topo das prioridades da reforma tributária brasileira – cuja proposta o governo Lula pretende apresentar ainda neste primeiro semestre.
“Obviamente é importante ter um sistema tributário eficiente e isso exige simplificação. Mas o que é ainda mais ou igualmente importante para o Brasil é reformular o sistema tributário para combater a desigualdade”, afirma o economista, um dos defensores de um imposto global sobre multinacionais e do aumento da tributação sobre os mais ricos.
“Eu não posso opinar sobre a política brasileira, mas acredito que aumentar a progressividade do sistema tributário do Brasil deve ser uma prioridade. Diante do elevado nível de desigualdade do país, isso deve estar no topo da agenda.”
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Em um artigo recente, o senhor argumentou que elevar juros não é a melhor forma de combater a inflação quando ela é provocada principalmente por restrições de oferta e mudanças no padrão de consumo. O senhor acredita que os bancos centrais do mundo estão errados na forma como estão combatendo a atual alta global dos custos de vida?
Joseph Stiglitz – Primeiro, deixe-me dizer que as taxas de juros estavam anormalmente baixas, próximas de zero desde a grande recessão de 2008. Então fazia sentido para os bancos centrais aproveitarem a situação atual para normalizar as taxas de juros.
Mas agora estamos passando deste ponto, para além da normalização. E acredito que isso seja um erro.
BBC News Brasil – Por que o senhor acredita nisso?
Stiglitz – Quando escrevi aquele artigo, a evidência para mim era clara de que a principal fonte da inflação eram interrupções do lado da oferta causadas pela pandemia e, em alguma medida, pela invasão russa à Ucrânia. Havia ainda alguns choques do lado da demanda relacionados à pandemia que também eram inflacionários.
Desde que eu escrevi aquilo, a evidência tem reforçado minha conclusão, com a inflação [nos EUA] recuando ainda mais, à medida que os gargalos do lado da oferta foram sendo resolvidos, os preços do petróleo baixaram e outros preços se normalizaram.
Outra coisa que preocupa os bancos centrais, e com razão, são espirais de preços e salários [quando a inflação impulsiona aumentos de salários, o que alimenta ainda mais a inflação]. E não há evidências disso, os salários [nos EUA] não estão acompanhando os preços, o rendimento real está em queda e as expectativas de inflação seguem fracas, mostrando que os participantes do mercado parecem ter visões consistentes com o que eu apresentei.
Tudo isso significa que a política de elevar taxas de juros, que é a resposta normal para um excesso de demanda agregada, é inapropriada no contexto atual. E uma das coisas que eu argumento é que isso pode, na verdade, exacerbar as pressões inflacionárias.
Porque, por exemplo, uma das coisas necessárias para aliviar pressões no lado da oferta é investimento. E taxas de juros elevadas tornam esse investimento mais difícil.
BBC News Brasil – E o senhor acredita que isso é válido somente para os EUA ou o mesmo argumento pode ser usado para outros países que enfrentam inflação neste momento?
Stiglitz – Esse argumento serve para quase todos os países que enfrentam inflação atualmente. Na maioria deles, o argumento é até mais forte, porque, na maioria, muito da inflação é importada. Ou seja, vem de produtos trazidos ou precificados no exterior.
BBC News Brasil – No Brasil, o presidente Lula está travando há semanas um embate com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sobre o nível da taxa básica de juros do país, que está atualmente acima dos 13%. Lula argumenta que os juros estão estrangulando a economia, enquanto Campos Neto defende o mandato do Banco Central de perseguir a meta de inflação do país, de cerca de 3%. Como o senhor vê essa disputa no Brasil?
Stiglitz – Primeiro, é preciso dizer que metas de inflação – que na Europa [e nos EUA] é de 2%, e você falou em 3% [no Brasil] – são tiradas do nada. Elas não têm base alguma na teoria econômica ou na experiência econômica.
Há preocupação com uma espiral inflacionária, mas neste momento não há evidências disso. Eu não sei todos os detalhes para o Brasil, mas posso dizer enfaticamente que não há evidência de uma espiral inflacionária nos EUA e, de maneira geral, globalmente.
Então não é um número mágico, 2% ou 3%, mas se há uma espiral inflacionária que está se tornando descontrolada.
Há um custo enorme em ter taxas de juros altas. Isso coloca o Brasil em desvantagem competitiva, estrangula as empresas brasileiras, enfraquece a economia do país. Então o presidente Lula está absolutamente correto em estar preocupado com essas questões.
Voltando à questão da meta de inflação, a pesquisa teórica mais recente, realizada em um período longo de tempo, mostra que, em momentos de rápido ajuste da economia e mudança estrutural – o tipo de coisa que estamos vivendo no mundo pós-covid e à medida que rumamos para a transição verde –, uma taxa de inflação mais alta na verdade facilita o ajuste.
Então a performance econômica em geral será melhor se a taxa de inflação for ligeiramente mais alta. Eu acredito enfaticamente nisso no caso dos EUA, que não devemos nos limitar a [uma meta de inflação de] 2%.
Por fim, mesmo que você acredite que deve haver uma meta de 2% ou 3%, não há nenhuma teoria ou evidência empírica de que voltar [de uma inflação mais elevada] para esses 2% ou 3% num período curto de tempo seja a melhor prática. Assim como o número é tirado do nada, a velocidade para voltar a esse número é tirada do nada.
BBC News Brasil – Enquanto esse debate acontece no Brasil, muitos economistas têm lembrado de intervenções mal sucedidas na política monetária feitas por governos em anos recentes. Eles citam casos como o da Turquia e da Argentina, que acabaram resultando em mais inflação e forte desvalorização das moedas locais. Como o senhor vê essas preocupações? Acredita que esse pode ser um risco para o Brasil, caso Lula seja bem sucedido em mudar a lei que atualmente garante a independência do Banco Central?
Stiglitz – Acredito que há questões distintas. Obviamente, alguns governos têm instituições fracas e herdaram problemas institucionais que vão além de apenas um aspecto, como o Banco Central. Então seria errado dizer que porque o Zimbábue ou a Venezuela tem um problema, devemos ficar de mãos atadas.
Falando na perspectiva dos EUA, nós temos uma democracia forte – ou pelo menos tínhamos antes de Trump – e nossos líderes políticos sabem que podem ser responsabilizados e que, se houver uma espiral inflacionária, eles vão pagar o preço.
Então é do interesse deles manter a inflação controlada, reduzi-la e, ao mesmo, proteger os trabalhadores e aqueles que são negativamente afetados pela inflação. Então é preciso fazer as duas coisas [controlar a inflação e garantir a geração de empregos].
De maneira mais ampla, quando enfrentamos mudanças sociais e econômicas complexas, é necessário coordenação entre as políticas fiscal e monetária [a política fiscal diz respeito ao controle dos gastos e da arrecadação do governo, já a política monetária trata do controle da quantidade de dinheiro em circulação na economia, o que é feito através da taxa de juros].
Nos EUA, nós temos um banco central independente. Mas Paul Volcker, um destacado presidente do conselho do Federal Reserve [Fed, o banco central americano], uma vez disse: “O Congresso nos criou, e o Congresso pode nos ‘descriar’.”
Então ele tinha muita ciência de que sua independência não era absoluta e de que precisava agir de determinadas maneiras que respondessem às necessidades da sociedade. Isso significa que ele precisava em certo sentido coordenar sua ação com o que estava acontecendo.
Então a questão da independência do Banco Central é às vezes tomada como algo sagrado. Na minha visão, é bom estrutural institucionalmente, mas precisa reconhecer a necessidade de coordenação, e também de conhecimento especializado e profissionalismo.
BBC News Brasil – Mudando de assunto para outra área de sua especialidade, a equipe econômica de Lula espera aprovar uma reforma tributária esse ano. Essa reforma deve ter uma primeira etapa focada em simplificar impostos sobre o consumo em um imposto sobre valor adicionado, e uma segunda etapa focada no Imposto de Renda. Como alguém que vem discutindo há anos o uso da tributação como uma forma de combater a desigualdade, qual o conselho do senhor para o Brasil, às vésperas de uma reforma?
Stiglitz – Obviamente é importante ter um sistema tributário eficiente e isso exige simplificação. Mas o que é ainda mais ou igualmente importante para o Brasil é reformular o sistema tributário para combater a desigualdade, tornando esse sistema mais progressivo [que arrecada mais de quem tem mais renda e patrimônio].
Eu não posso opinar sobre a política brasileira, mas acredito que aumentar a progressividade do sistema tributário do Brasil deve ser uma prioridade. Diante do elevado nível de desigualdade do país, isso deve estar no topo da agenda.
BBC News Brasil – E quais seriam as formas de fazer isso? Mudar a tributação sobre a renda ou taxar os mais ricos, essas poderiam ser algumas das maneiras de conseguir isso?
Stiglitz – O imposto de renda, a taxação de fortunas, a taxação de heranças e a elevação do imposto de renda corporativo são instrumentos efetivos para enfrentar a desigualdade, mas não são os únicos. Diversos países da América Latina estão discutindo como aumentar o grau de progressividade de seus sistemas tributários, Chile e Colômbia em particular. E, diante do alto nível de desigualdade no Brasil, acredito que isso deve ser uma prioridade.
BBC News Brasil – Passando à relação entre Brasil e Estados Unidos. Os EUA indicaram que devem doar ao Fundo Amazônia brasileiro, após o encontro entre Biden e Lula no início de fevereiro. O valor da doação ainda não está definido, mas o número inicial de US$ 50 milhões teria desapontado as autoridades brasileiras. O senhor acredita que a gestão Biden está fazendo o suficiente para ajudar os países em desenvolvimento a combater as mudanças climáticas?
Stiglitz – Em resumo, não. Mas o espaço para manobra é limitado, porque os democratas não têm controle suficiente sobre o Congresso para garantir o orçamento necessário. Tivemos uma batalha dura para conseguir recursos para investimentos verdes nos EUA, que devem não somente acelerar nossa transição verde, mas também aumentar a produtividade no país.
Então acredito que deveríamos estar fazendo mais, que a mudança climática é uma questão global e, como somos o país mais rico do mundo, deveríamos fazer um esforço proporcional.
Mas tenho esperanças de que, com a escolha do novo presidente do Banco Mundial, que deverá ser anunciado em breve, o banco possa fazer um esforço maior, com o apoio dos EUA, para endereçar a questão da mudança climática em mercados emergentes.
[Nota da redação: O atual presidente do Banco Mundial, David Malpass, anunciou em 15 de fevereiro que deixará o cargo em junho, um ano antes do término de seu mandato. A renúncia inesperada do indicado por Donald Trump acontece em meio a críticas à atuação tímida do banco em temas como combate à pandemia, à pobreza e ao aquecimento global. Na semana passada, Biden indicou o empresário indiano-americano Ajay Banga, ex-CEO da Mastercard, ao cargo. A nomeação ainda terá de ser confirmada pelo conselho de administração do banco.]
BBC News Brasil – Num momento em que o Brasil tenta reafirmar seu lugar no mundo como uma liderança em sustentabilidade e o governo busca recuperar a economia após anos de baixo crescimento, qual pode ser o papel dos investimentos verdes nesse processo? O senhor acredita que o Brasil deve buscar seu próprio “Green New Deal” [proposta da esquerda do Partido Democrata americano que associa agenda ecológica e geração de empregos]?
Stiglitz – Sim. Acredito que todos os países precisam reconhecer que estamos caminhando rapidamente dos combustíveis fósseis para a energia verde.
Os países que se moverem mais cedo e mais rapidamente terão uma vantagem competitiva. Eles vão aprender a dominar as novas tecnologias. Em economia falamos em “percorrer a curva de conhecimento”.
Diante do alto nível de competência técnica do Brasil, da qualidade de seus engenheiros e da diversidade da sua economia, acredito que o Brasil está em posição para ter um papel de liderança entre os países emergentes nessa transição para uma economia verde.
BBC News Brasil – Numa entrevista à BBC em 2020, o senhor disse que a onda de protestos na América Latina naquele momento estava acontecendo tarde, diante do nível de desigualdade na região. Como resultado daquela onda de descontentamento, muitos países elegeram governos de esquerda. Mas há um temor de que esses novos governos tenham “luas de mel” breves, diante do descontentamento ainda presente, combinado à inflação elevada e restrições fiscais. O senhor acredita que é possível esses governos serem bem sucedidos nesse contexto, e em meio a uma economia mundial em desaceleração?
Stiglitz – Sim, mas vai ser difícil. Eles chegaram ao poder num momento muito, muito complicado. Tem a pandemia, a inflação.
No caso do Brasil, Lula herdou uma absoluta bagunça do governo Bolsonaro. Em certa medida, dá para dizer que não poderia ser pior, por que ele começa em um ambiente em que é preciso consertar o caos criado pela administração anterior.
Nos Estados Unidos, por exemplo, os republicanos vivem falando em responsabilidade fiscal, mas toda vez que chegam ao governo, eles criam déficits imensos. Trump fez isso, [Ronald] Reagan fez isso. Então toda vez os democratas precisam consertar a bagunça herdada. Foi necessário [Bill] Clinton para reequilibrar o Orçamento [após a gestão de George H. W. Bush].
Então há sempre uma desvantagem para os governos de centro-esquerda responsáveis, como Lula, de corrigir a desordem herdada. E o caos é ainda maior porque Bolsonaro, como Trump, dividiu a sociedade. E, obviamente, quando você tem uma sociedade polarizada é muito mais difícil conseguir a solidariedade e coerência que ajudariam a endereçar os problemas sociais.
Acredito que a resposta tem que ser, como dizemos nos EUA, que esses governos de centro-esquerda não podem tirar o olho da bola. Eles foram eleitos para criar um senso melhor de prosperidade compartilhada [uma outra forma de dizer crescimento inclusivo, que abrange a melhora de vida da parcela mais pobre da população].
É interessante que, em muitos sentidos, eles [os governos de centro-esquerda] se tornaram melhores gestores da economia. Digo isso porque a economia do século 21 é baseada em inovação, competição, alto nível de capital humano e boa infraestrutura pública.
E os governos de direita que eles substituíram eram centrados em monopólios, grandes empresas, competição limitada e investimentos insuficientes nas pessoas e em infraestrutura. A agenda econômica da direita levou a um baixo crescimento e fraca performance econômica.
Então, embora os governos de centro-esquerda tenham herdado uma bagunça, se eles mantiverem o olho na bola e o foco no objetivo de atacar esses problemas e criar uma prosperidade compartilhada, acredito que serão bem-sucedidos.
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