Nota técnica sigilosa da Receita Federal, produzida durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), dá uma ideia das dificuldades que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode ter em seu objetivo de reduzir o chamado gasto tributário (a perda de arrecadação provocada por benefícios e isenções).
No documento, os técnicos da Receita concluem ser inviável reverter renúncias tributárias de maneira linear e sem um período de transição. Desaconselham também alterações pontuais e isoladas, que atrairiam a oposição de setores econômicos e do Congresso, colocando em risco a revisão mais eficiente e global das desonerações dentro da forma que interessa, na reforma tributária.
A nota foi produzida em novembro de 2019 e mantida em sigilo. No entanto, destrincha a complexidade da estrutura das desonerações, que permanece inalterada nesses cinco anos. Segundo economistas consultados pela reportagem, a nota, neste aspecto, permanece atual. A reportagem teve acesso à íntegra do documento, que permanece em sigilo.
Tecnicamente denominadas de gastos tributários, as isenções representam uma perda estimada de R$ 456 bilhões para a União neste ano e devem chegar a R$ 486 bilhões no ano que vem.
O ministro Fernando Haddad (Fazenda) insiste que a suspensão de alguns desses gastos tributários vai contribuir para aumentar as receitas federais e ajudar o governo a cumprir as metas de resultado primário, sem exigir aumento de alíquotas de impostos ou corte nas despesas consideradas estratégicas para a gestão de Lula.
Haddad tem repetido que vai iniciar a revisão das desonerações ainda no primeiro ano de mandato e chegou a mencionar que é possível restituir aos cofres públicos R$ 150 bilhões com o cancelamento de uma lista de benefícios.
A necessidade de rever os gastos tributários é um consenso entre especialistas em tributação. Não apenas por drenarem recursos, mas por distorcerem o sistema e a competitividade entre empresas —e a nota da Receita Federal retrata o desafio ignorado pelo discurso oficial.
O documento é um detalhado raio-X das desonerações feito em conjunto por duas áreas da Receita, a Coordenação-Geral de Tributação e o Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros.
Um dos anexos da nota traz um cronograma para a redução dos gastos tributários, de 2019 a 2021, para atender o plano de revisão de benefícios tributários, que havia sido previsto na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).
A meta a ser perseguida na época era, em um prazo de dez anos, reduzir as desonerações de 4,8% para 2% do PIB (Produto Interno Bruto). Foram analisados 60 gastos tributários. Cortes graduais em 25 deles poderiam render cerca de R$ 50 bilhões em 2020 e um pouco mais do que isso em 2021.
Os maiores volumes viriam da revisão de isenções que o atual governo já avisou que não vai mexer por ora (Simples e Zona Franca) ou que tendem a atrair oposição, como isenção do Imposto de Renda para aposentadoria por doença grave, além das desonerações da cesta básica e da folha de pagamento.
A recomendação dos técnicos foi que esse cronograma de cortes não deveria ser divulgado, mas apenas remetido, em caráter reservado, ao TCU (Tribunal de Contas da União), que havia pedido esclarecimentos sobre o tema. De fato, o plano não se tornou público. A equipe econômica tentou, mas não conseguiu alterar as desonerações e a exigência do plano foi revogada em abril de 2020, após a eclosão da pandemia no Brasil.
O pedido de sigilo considerava o conjunto dos problemas identificados.
Não havia como fazer um corte linear nos gastos tributários. Um dos problemas, destaca a nota, é que "as desonerações concedidas após a crise de 2008/2009 alcançaram a totalidade do sistema tributário". Ou seja, todo tributo possui alguma forma de tratamento diferenciado. Em um único setor, podem coexistir diversos tipos de incentivo.
Seria necessário adotar soluções distintas, adequadas a cada gasto tributário. Mas a retirada isolada deste ou daquele benefício enfrentaria oposições setoriais ou até populares, e haveria repercussões políticas. Como a reforma tributária já estava em discussão, a nota recomendava que o governo se concentrasse na mudança global.
Um exemplo básico apresentado no texto é a alteração nas regras de exceção na cobrança do PIS e da Cofins. A recomendação foi que as alterações deveriam ocorrer junto com a adoção do IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Dos 60 gastos tributários avaliados, 26 (ou 43%) envolviam um ou ambos tributos.
"Seria temerário o encaminhamento de um cronograma com medidas isoladas destinadas a eliminar os benefícios fiscais ao longo dos próximos anos", diz o texto.
"Tal iniciativa poderá eliminar as chances de êxito da Reforma Tributária, em fase final de discussão e definição no âmbito deste ministério. A redução ampla dos gastos tributários, por estas razões, deve estar contida no contexto da Reforma Tributária."
Assim como ocorria em 2019, o governo atual trabalha pela aprovação da reforma tributária em etapas.
A nota da Receita também alerta para a necessidade de ficar atento ao prazo de extinção das isenções —o que mostra a dificuldade que a Fazenda terá se quiser agilizar o cancelamento de algumas delas.
Um elevado número de gastos tributários foi criado sem data para acabar. Diante disso, a nota recomenda que seja adotado um período de transição de até cinco anos antes de ser feita qualquer alteração na regra da isenção ou a sua eliminação, para que a mudança não comprometa investimentos programados com base na desoneração.
Não há prazo determinado para isenções em setores tão díspares quanto produção de biodiesel, aeronaves e embarcações, o Programa Nacional de Apoio à Cultura e o MEI (Microempreendedor Individual).
O documento destaca que o Demonstrativo de Gasto Tributário enumera cerca de 300 benefícios, com diferentes tipos de tratamento, por atividade, categorias de contribuinte e região geográfica, por exemplo. Entre os mais pesados, alguns deles nem podem mais ser chamados de gastos tributários. Não são incentivos fiscais temporários, mas adaptações ao sistema, que equivalem a microrregimes tributários e vão exigir análises particulares.
Estão nessa categoria Simples, Zona Franca de Manaus, regimes especiais para empresas nas áreas da Sudam e da Sudene, a isenção adicional do Imposto de Renda a contribuintes com mais de 65 anos e a isenção constitucional da Contribuição Previdenciária Patronal dada a entidades filantrópicas.
A nota da Receita considerou ainda que a alteração de muitos gastos tributários demanda projeto de lei ou até emenda constitucional. Em outras palavras, é politicamente sensível a pressões no Congresso.
A nota adotou uma escala de 1 a 5 para destacar as desonerações que vão exigir muita negociação. Entre os dez maiores benefícios, sete foram qualificados como politicamente sensíveis (entre eles, os concedidos para medicamentos e entidades sem fins lucrativos).
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