A fome no Brasil tem cor e gênero. Ela atinge, proporcionalmente, o dobro dos lares chefiados por pessoas negras, na comparação com aqueles encabeçados por brancos, e a situação fica ainda mais severa em casas lideradas por mulheres negras.
É o que aponta o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), que será divulgado nesta segunda-feira (26).
O estudo mostra que cerca de 1 a cada 5 famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas (17% e 20,6%, respectivamente) sofrem com fome no Brasil, proporção que cai para 1 a cada 10 naquelas comandadas por pessoas autodeclaradas brancas (10,6%).
No caso de lares encabeçados por mulheres negras, o percentual daqueles em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, que passam fome, é de 22%, contra 13,5% daqueles chefiados por mulheres brancas.
"Desde que começamos as pesquisas sobre segurança alimentar, sempre que recortamos a prevalência sobre gênero e sobre raça vemos que a fome é maior nos domicílios chefiados por mulheres e por pessoas negras", explica a nutricionista Sandra Chaves, professora da Universidade Federal da Bahia e coordenadora da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), responsável pela pesquisa.
"Desta vez, nós nos aproximamos do conceito de interseccionalidade e, em vez de escalonar as variáveis de raça/cor e gênero, nós as associamos", conta. Essa abordagem leva em consideração como diferentes opressões se somam e atingem as pessoas.
"A segurança alimentar é sempre maior no domicílio chefiado por homens brancos, seguido daqueles chefiados por mulheres brancas, homens pretos e mulheres pretas", diz Chaves.
Os primeiros resultados desta edição do Vigisan foram publicados em junho de 2022 e, agora, foi divulgado um suplemento a partir de parâmetros de raça/cor da pele e gênero. O levantamento apontou que 33 milhões de pessoas passavam fome no país.
A pesquisa fez entrevistas em 12.745 domicílios distribuídos em 577 municípios brasileiros de áreas urbanas e rurais das cinco macrorregiões do Brasil, com dados obtidos pelo Instituto Vox Populi entre novembro de 2021 e abril de 2022. O estudo teve apoio das organizações Ação da Cidadania, ActionAid, Ford Foundation, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc São Paulo.
Os participantes responderam a perguntas sobre o acesso a alimentos no domicílio considerando o período dos três meses anteriores à realização da pesquisa.
Os resultados divulgados agora apontam, ainda, que níveis mais altos de escolaridade não são suficientes para superar a desigualdade de raça e gênero e proteger as casas comandadas por mulheres negras da falta de comida. Um terço delas (33%) sofrem com insegurança alimentar moderada ou grave mesmo tendo oito anos ou mais estudo. Entre os homens negros, o índice é de 21,3%, entre mulheres brancas, de 17,8% e de 9,8% entre homens brancos.
"A fome é um sintoma das desigualdades estruturais que são socialmente construídas e, entre elas, temos raça e gênero", afirma Adriana Salay, historiadora e estudiosa da fome no Brasil. Ela destaca que o acesso aos alimentos no país é monetizado, inclusive no âmbito rural.
"Isso quer dizer que quanto a pessoa ganha vai determinar o que ela vai conseguir comer e se ela vai conseguir comer. E a possibilidade de renda de pessoas negras, pretas ou pardas, indígenas e mulheres, é menor do que a de outras classificações sociais, como pessoas brancas ou homens", afirma.
Em 2021, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o rendimento médio anual das mulheres (R$ 2.095) representou quase 30% a menos do valor médio obtido pelos homens (R$ 2.622). Outro levantamento do instituto, do ano seguinte, aponta que entre pessoas pardas ou pretas, o rendimento mensal médio é cerca de 60% menor do que o de pessoas brancas.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) contínua de 2021, 56,1% dos brasileiros são pessoas autodeclaradas pardas ou pretas. Em 2022, as mulheres eram 51,1% da população.
O Vigisan mostra, ainda, que 23,8% das famílias com crianças menores de 10 anos de idade chefiadas por mulheres negras sofreram com a fome. Neste grupo, só foi registrada a segurança alimentar em 21,3% dos lares, menos da metade do encontrado nos domicílios encabeçados por homens brancos (52,5%) e quase metade daqueles comandados por mulheres brancas (39,5%).
"No domicílio brasileiro, quando a insegurança alimentar atinge a criança é porque se chegou ao limite da fome", pontua Chaves. "É a insegurança alimentar grave levada ao seu extremo".
A nutricionista explica que o impacto da fome é muito grande nas crianças, comprometendo o desenvolvimento cognitivo e criando problemas de atenção e de aprendizagem.
"Além disso, essas privações não vêm sozinhas. A insegurança alimentar grave é a violação de um direito fundamental, que é o direito à alimentação. Mas ela significa que também está sendo violado o direito a uma moradia decente, à água potável, ao saneamento básico, à educação e ao desenvolvimento. É um conjunto de violações, que gera uma pobreza estrutural porque a perspectiva dessa criança é não sair da situação de pobreza. A chance de ascensão social nesse contexto é muito pequena."
Para Salay, o aumento da fome no país está relacionado ao enfraquecimento de políticas como o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (que compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e os destina gratuitamente para pessoas que não têm acesso à alimentação adequada). Mas, ela diz acreditar que a solução desse problema vai além do reestabelecimento destas iniciativas.
"A gente precisa avançar nas políticas estruturais de combate à desigualdade para que um governo que venha a seguir não consiga tão facilmente desmantelar políticas públicas e aumentar em níveis catastróficos a fome que a gente tem hoje", afirma, dando como exemplo a reforma agrária e a ampliação da política de cotas —não apenas para acesso à universidade, mas também em concursos públicos e empresas privadas.
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