Ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central Alexandre Schwartsman

Ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central Alexandre Schwartsman

Daniel Guimarães/Folhapress
O pacote de medidas do governo para aumentar a arrecadação está superestimado e não garante o cumprimento das metas previstas no arcabouço fiscal, o limite de gastos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A avaliação é do economista e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central Alexandre Schwartsman. Para ele, as medidas que aumentam os impostos sobre os mais ricos são meritórias, mas representam apenas uma fração do que o governo quer arrecadar para zerar o rombo nas contas públicas a partir de 2024.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Schwartsman afirma que o Brasil tem muito espaço para cortar gastos sem comprometer os programas sociais e os serviços públicos.

Ele também critica a tentativa do governo de rever regras contábeis para colocar em dia o pagamento de precatórios. Para ele, seria melhor colocar essa conta em dia, mesmo furando o arcabouço fiscal logo no primeiro ano. "O tal do arcabouço vai ser furado logo no primeiro ano."

"É claro que tem espaço para cortar, mas não é fácil. Não adianta vir com uma regrinha e falar, não passará. Cedo ou tarde, a despesa vai bater no teto, seja um teto fixo, seja um teto móvel. E o que você vai fazer? Você vai mexer no teto, não na despesa", diz.

PERGUNTA - O governo federal escolheu fazer um ajuste nas contas públicas baseado principalmente no aumento da arrecadação. Quais as chances de alcançar as metas previstas no arcabouço fiscal com essa estratégia?

ALEXANDRE SCHWARTSMAN - Baixíssimas. A gente sabe que tem uma superestimação enorme nessas medidas para aumentar a arrecadação.

No ano que vem, a gente teria um aumento [de receita] da ordem de R$ 230 bilhões. Uma parte viria do crescimento, mas faltam R$ 170 bilhões. Uns R$ 130 bilhões estão grosseiramente superestimados. A história do Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais], a questão de antecipar pagamentos em troca de desistir do contencioso tributário com vantagem etc.

Para chegar às metas que estão no arcabouço, zerar [o déficit] no ano que vem, um superávit de 0,5% [do PIB] em 2025 e de 1% do PIB em 2026, vai precisar um crescimento de receita que ninguém diz muito bem de onde vem.

 

P. - Do ponto de vista do mérito, como o sr. analisa as medidas de aumento de receita?

AS - No que diz respeito aos fundos exclusivos e offshore, ok. Não tem grandes discussões. De fato atinge os estratos mais ricos da sociedade.

Mas isso é o troco do ajuste fiscal em termos do que se espera arrecadar, dá uns R$ 20 bilhões ao ano. Essas medidas que são meritórias representam a menor parte do aumento de receita.

 

P. - A parte do Leão vem daquela coisa de que com o voto de qualidade [jargão para voto de desempate] no Carf vai arrecadar R$ 55 bilhões no ano que vem. De onde veio esse número?

AS - Tem outros R$ 43 bilhões do programa de redução de litigiosidade das empresas [transações com a PGFN e Receita].

A gente já fez uma série de programas em sentido, os Refis, e não chega nem perto desse valor em termos de um ano.

A questão de retirar os benefícios fiscais de ICMS da base de cálculo, dá para ter uma discussão supermeritória a respeito, mas na prática o que vai acontecer é que a empresa vai recorrer ao Judiciário. Não vai arrecadar R$ 35 bilhões.

Uns R$ 130 bilhões dos R$ 165 bilhões que eles querem arrecadar vêm dessas medidas. Está meio complicado.

 

P. - Em termos de impacto econômico, um ajuste baseado na receita é uma estratégia adequada?

AS - Não, por dois motivos. Um deles é porque não é de fato um ajuste. A história brasileira dos últimos 30 anos é eloquente. A gente fez várias rodadas de elevação de receita, em alguns casos com elevação de alíquota de impostos. Você gera um superávit em cima do aumento de receita.

O problema é que a gente não faz nada para controlar o gasto. Então, o gasto vai chegar de novo ao patamar de receita, e o superávit desaparece. Aí você tem de aumentar de novo os impostos. Estamos há 30 anos fazendo isso.

A nossa carga tributária era da ordem de 27% do PIB em 1994, quando a inflação foi estabilizada. E tinha superávit. Hoje, roda na casa de 34% do PIB e a gente tem déficit. Se você não fizer nada para controlar a despesa, cedo ou tarde a estratégia de ajuste fiscal fracassa.

Adicionalmente, eu sempre chamo a atenção para o livro do Alberto Alesina, do Carlo Favero e do Francesco Giavazzi, "Austerity, When It Works and When It Doesn't". Eles examinam muitos casos de economias que fizeram ajustes fiscais.

A conclusão é que economias que basearam o seu ajuste em aumento de receita tipicamente têm resultados muito negativos do ponto de vista de crescimento e de efetividade de reduzir o endividamento.

Economias que fizeram seu ajuste com base na redução de gastos têm efeitos relativamente pequenos, estatisticamente zero, em termos de redução de atividade, e são muito mais efetivas no sentido de reduzir o endividamento.

 

P.- O Brasil fez nos últimos dez anos várias reformas, mudanças na Previdência, contenção de gastos com folha do funcionalismo. Ainda há espaço para cortar despesa?

AS - Tem. A gente já viveu com um nível de despesa como proporção do PIB menor. Politicamente é outra história, se você consegue fazer esse tipo de coisa agora.

A gente tem um volume de despesa comparado a países de renda per capita similar que é muito mais alto. Comparado a países da América Latina, comparados a países emergentes de maneira geral, o Brasil gasta muito mais.

Mas não dá para fazer sem reforma. Não é simplesmente ter uma regra de que com um teto de gastos eu não vou deixar crescer. Vai fracassar. Como vai fracassar o arcabouço fiscal. Ele tem um teto móvel. O gasto cresce dentro de um certo limite.

Mas se você não faz nenhuma reforma para mexer em Previdência, funcionalismo, vinculação etc., não tem como resolver o problema.

O Brasil é um país que gasta muito mais do que os outros e não entrega serviços públicos melhores. Até mesmo na questão de gasto social, que é importante, vários trabalhos mostram que a gente consegue o mesmo efeito de redução de pobreza com um volume menor de gastos. Ou, mantendo o volume, conseguiria ser mais efetivo em termos de redução de pobreza.

Precisa repensar os programas sociais no Brasil. Não é segredo que o antigo Auxílio Brasil, atual Bolsa Família, é mal desenhado. É um exemplo entre tantos.

Funcionalismo é outro. O Brasil tem uma conta de funcionalismo muito além de qualquer país em situação similar à nossa.

É claro que tem espaço para cortar, mas não é fácil. Não adianta vir com uma regrinha e falar, não passará. Cedo ou tarde, a despesa vai bater no teto, seja um teto fixo, seja um teto móvel. E o que você vai fazer? Você vai mexer no teto, não na despesa.

Alguns membros do governo defendem que usar mais recursos para aumentar investimentos é uma forma de estimular a atividade, produzir arrecadação e fazer um ajuste mais suave.

Isso funciona superbem, desde que seja em Hogwarts [escola fictícia do personagem Harry Potter]. Se você violar as leis da matemática, talvez funcione.

Eu já fiz a conta disso. Você precisaria que o efeito multiplicador do gasto fosse estúpido. Aí você conseguiria fechar essa conta. No mundo real, não. Isso é pensamento mágico.

Se fosse verdade, não teria país com desequilíbrio fiscal no mundo. Aí fala: "Não, aumentamos o gasto em investimento". Os caras nem terminam o investimento, só tem obra parada. Isso serve para comprar apoio político e favorecer empreiteiras. Para o país, é extraordinariamente negativo.

A ideia de que você vai resolver o seu problema fiscal gastando mais é risível. É uma coisa que não deveria nem ser falada em público.

 

P. - Como o sr. vê a proposta do governo de classificar parte das despesas com precatórios como despesa financeira?

AS - Eu achei uma barbaridade o que foi feito com os precatórios, com a emenda do Paulo Guedes [ex-ministro da Economia].

P. - Fazer o pagamento agora é correto. Mas, quando a gente paga um imposto atrasado para o governo, eles não classificam juros e multas como receita financeira, classificam como receita primária. Por que na despesa vai ser diferente?

AS - Se a gente estivesse vindo de uma situação ideal, em que o governo nunca tivesse tentado fajutar as contas públicas, poderia até entrar em uma discussão teórica sobre qual é a real natureza desses gastos. Mas a gente teve pedaladas escancaradas na nossa cara, contabilidade criativa, que foram denunciadas.

O histórico do governo é ruim a esse respeito. Dada uma chance, os caras operam a contabilidade criativa. No mínimo você teria de estar desconfiado.

Não vamos inventar coisa nova. Põe os precatórios em dia, e vamos zerar o jogo. O tal do arcabouço vai ser furado logo no primeiro ano.

 

Raio-X

Alexandre Schwartsman, 60

Doutor em economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley, ex-diretor do Banco Central (2003-2006) e sócio da consultoria Schwartsman & Associados