Pais, mães e responsáveis cancelam a matrícula de alunos de escolas particulares em meio à pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Os cancelamentos ocorrem principalmente na educação infantil, período em que é mais difícil manter atividades fora da escola. O movimento preocupa o setor, que estima que as creches, que atendem crianças de 0 a 3 anos, percam dois terços das matrículas este ano.
Entre os motivos para tirar os filhos do colégio estão a incerteza de quando as aulas serão retomadas e a perda de renda familiar. Gabriela* é uma dessas mães. Ela precisou tirar a filha, Bianca*, 5 anos, da escola. A família tem, em Goiás, uma fazenda que produz carne e produtos derivados do leite. As vendas reduziram nos últimos meses. Ela procurou a escola três vezes para negociar a redução da mensalidade, que custa cerca de R$ 700. “Falaram que não poderiam fazer nada”, disse.
Gabriela buscou os livros da filha na escola e optou por ensinar em casa. “A escola chegou a disponibilizar aulas pelo WhatsApp, mas não foi bacana. Não dá para criança de 5 anos ter aula sozinha online, precisa ter disciplina, a mãe precisa estar junto”, disse. “Agora estou tentando manter a rotina. Acordando cedo, brincando um pouco com ela, fazendo as tarefas. Não está sendo fácil”, acrescentou.
Joice* também optou por cancelar a matrícula da filha, Amanda*, de 4 anos. “Começamos a pensar possibilidades de volta e a gente não acha que, na idade dela, essa volta vá acontecer de maneira minimamente segura até o fim do ano”. A escola de Amanda custa cerca de R$ 2,5 mil, valor que começou a pesar diante das instabilidades causadas pela pandemia.
Eles mantiveram o pagamento até abril. Procuraram a escola em busca de um desconto. A instituição ofereceu a redução de 14% e não se mostrou aberta a reduzir mais. “Amanda não suporta atividades online. Ela ficava mais angustiada, eu não queria colocar isso como mais uma tarefa para ela”, disse. Os pais decidiram, então, que seria melhor cancelar a matrícula.
Impacto no setor
Os cancelamentos das matrículas, de acordo com o presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Ademar Batista Pereira, preocupam. “Tem uma debandada, principalmente da educação infantil, da primeira etapa, até os 3 anos de idade. Está saindo muita gente. Nessa etapa, a escola tem o trabalho de cuidar e educar, o ensino remoto é difícil”, afirmou.
A estimativa da Fenep é que dois terços dos estudantes deverão abandonar as creches particulares este ano, o que equivale a cerca de 1 milhão de crianças fora da escola em todo o país, o que levará ao fechamento de muitos desses estabelecimentos. A preocupação é que, com a retomada das aulas, sem as escolas, as crianças não consigam ser matriculadas na rede pública, que já sofre com falta de vagas na etapa, nem na particular.
Pereira disse que as escolas têm buscado soluções, têm tentado enviar materiais para as famílias, para que elas possam trabalhar com as crianças, por exemplo, a coordenação motora, para que os alunos não fiquem sem atendimento. O setor tem procurado ajuda governamental. Em ofício enviado ao presidente Jair Bolsonaro, a Fenep pede a criação de um voucher educacional temporário.
O voucher seria, de acordo com o ofício, “um apoio financeiro às famílias do ensino básico privado, para que os pais possam, durante o período da pandemia e por pelo menos mais um ano, garantir a vaga de seu filho na escola, evitando que crianças fiquem ociosas em casa ou nas ruas e que empresas do setor fechem as portas e tenham que demitir funcionários”, diz o documento. Para todo o setor de educação privada, desde as creches, até o ensino superior, a Fenep estima que 30% das instituições fechem as portas.
Descontos
Na ponta, as escolas tentam ajudar os pais. A mantenadora e diretora de uma escola de pequeno porte no Distrito Federal, que atende do maternal ao 5º ano do ensino fundamental, Maria do Rosário Alves, concedeu descontos que vão de 15% a 50%, dependendo da situação financeira da família. Até o momento, o estabelecimento perdeu 15% dos estudantes. Metade dos responsáveis não pagou ainda a mensalidade do mês de maio.
“Está sendo bem difícil para mim, mas como preciso contar com esse pai lá na frente, se eu não der desconto, ele terá que tirar a criança da escola”, disse. “Eu estou conseguindo esse desconto porque há 23 anos tenho a escola”, destacou.
Maria do Rosário disse que sua escola vem enfrentando uma crise há 4 anos, perdendo muitos alunos, cujos pais optaram pela rede pública. “Eu só consigo honrar meus compromissos porque eu não pago aluguel, porque meu prédio é próprio”. Segundo ela, diante dessa quarentena, tem oferecido atividades remotas para que nem os pais nem as crianças fiquem desamparadas nesse período.
Mas nem sempre os descontos são dados ou nem sempre são possíveis, sem que haja prejuízo na manutenção dos salários dos professores e funcionários e dificuldade no pagamento das contas do estabelecimento. Pesquisa feita pelo Melhor Escola mostra que 37,7% dos responsáveis entrevistados solicitaram algum tipo de desconto para as escolas, porém, segundo eles, 39,5% das instituições negou o pedido.
Ao todo, foram entrevistados 2.075 pais e responsáveis de alunos em idade escolar entre 1 e 17 anos de idade, em 28 estados. Os dados foram coletados entre os dias 30 de abril e 11 de maio, com usuários da plataforma. O estudo mostra que 69,4% dos entrevistados sofreram um impacto drástico ou moderado em sua renda mensal. Outras 286 pessoas declararam estar sem nenhuma fonte de renda.
Educação obrigatória
O conselheiro Eduardo Deschamps, do Conselho Nacional de Educação (CNE) explica que, no Brasil, por lei (Lei 12.796/2013), a matrícula é obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade. Para cancelar a matrícula em uma escola, o responsável precisa apresentar uma comprovação de que está fazendo a matrícula em outra instituição. Caso isso não seja feito, a escola poderá acionar o conselho tutelar.
“Esse período é um período de força maior, que está fazendo com que escola eventualmente não consiga fazer atendimento da mesma forma que estava fazendo antes, mas é importante que a gente tenha o cumprimento da lei que fala em obrigatoriedade de matrícula”, diz.
O fechamento de escolas particulares e a migração massiva para a rede pública, sobretudo no ensino infantil, é uma preocupação também do CNE. “Há redes públicas já verificando que pode haver uma demanda muito alta no retorno [às aulas presenciais]. E [pode ser] que as redes públicas não consigam atender porque já existe uma limitação de atendimento na educação infantil”.
Em parecer, o CNE permite que as escolas ofereçam atividades remotas em todas as etapas de ensino, desde a educação infantil. “É importante que o professor e a escola possam, em conjunto com os pais, identificar atividades que possam ser realizadas com as crianças para que elas não percam a estimulação. E na hora que retornarem elas não partam do zero de novo”.
Rede pública
O acolhimento de estudantes que vêm da rede particular está no radar da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Os municípios são os principais responsáveis pela educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. A entidade pretende fazer um mapeamento de como está a busca por vagas nas cidades brasileiras nos próximos dias. “Isso acende um alerta, é uma situação delicada para municípios, principalmente no momento da volta [às aulas presenciais]”, diz o presidente da Undime, Luiz Miguel Martins Garcia.
Segundo Garcia, ainda é possível conseguir vagas, mesmo estando quase no fim do primeiro semestre “[O responsável] consegue, ainda consegue. Pode ter problema, por estar em uma rede que não tem vaga. Mas, a rigor, as redes têm conseguido acolher. O problema grande é a creche, de 0 a 3 anos, que tem lista de espera em grande parte do país. Mas, de 4 e 5 anos consegue. As escolas, em que pese isolamento, mantêm um sistema de plantão de atendimento e podem receber essas crianças”, explica.
*Os nomes foram mudados a pedido das entrevistadas.