Ele surgiu como uma ousada promessa de expansão da educação pública superior. Canteiros de obras se instalaram por vários câmpus para a construção de prédios, o número de alunos quase dobrou e a oferta de cursos noturnos se tornou realidade. As universidades aceitaram o desafio do governo, fizeram pacto e, 14 anos depois da criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), ficaram com um passivo de R$ 4 bilhões nas contas.
Atualmente reféns de um orçamento para lá de enxuto, saíram da promessa de crescimento ordenado para se verem às voltas com obras inacabadas e projetos sem perspectiva de sair o papel. Em Minas Gerais, onde se concentra o maior número de instituições federais, a situação não é diferente. Na maior delas, a UFMG, apenas em estrutura física a conta é de pelo menos R$ 20 milhões.
As informações constam de relatório feito por um grupo de trabalho destinado a acompanhar e avaliar o sistema universitário brasileiro (GT-IES), encomendado pela Câmara dos Deputados. O levantamento robusto, de quase 400 páginas, tem à frente quatro professores de universidades federais, todos eles ex-reitores, e constitui um verdadeiro raio-x da educação superior pública e privada em todo o país.
O documento, que recuperou informações obtidas em outubro de 2018 com a Diretoria de Desenvolvimento da Rede de Instituições Federais de Ensino Superior, do Ministério da Educação (MEC), revela que “a situação desses passivos do Reuni continua a ser um desafio do presente”. A informação é de um “significativo passivo, de cerca de R$ 4,2 bilhões, composto por aproximadamente R$ 3 bilhões referentes às universidades federais e R$ 1,2 bilhão relacionado aos Ifets (institutos federais)”. Para as obras em execução em instituições federais de ensino superior, do valor contratado total (cerca de R$ 2,25 bilhões), há ainda a empenhar R$ 765 milhões, com valores mais concentrados nas regiões Sudeste e Nordeste.
Mesmo assim, a expansão que começou com o Reuni deixou seus marcos em Minas. Um deles foi a centralização de unidades no câmpus Pampulha da UFMG. Saíram do Centro de Belo Horizonte faculdades e escolas tradicionais, como Odontologia e Engenharia. No Norte de Minas, foi o grande passo para o crescimento da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e para a interiorização da educação superior no estado.
Mas, para aumentar quantidade de cursos e vagas, era preciso mais salas de aula, laboratórios e estrutura administrativa. Câmpus inteiros ou unidades foram construídos desde que o Reuni foi lançado, em 2007. Outros prédios se tornaram esqueletos ou nem saíram do papel – na época da implantação, o Reuni previa a execução das metas num prazo de até cinco anos após a adesão de cada universidade. Na conta atual do programa, pesa a tesoura da União nos orçamentos da educação desde 2014, que tocou diretamente na rubrica investimento.
“Não tenho expectativa de que o governo atual vá cumprir os compromissos anteriores. As universidades fizeram o que deveriam fazer, pois confiaram que haveria contrapartida, e não houve”, afirma a professora Ana Lúcia Gazzola, da UFMG. “Se pensarmos em termos de orçamento global, as instituições foram forçadas a fazer mais com menos. O impacto de mais alunos é grande e investimentos não foram feitos”, ressalta.
ONEROSO
O grupo de trabalho destacou em seu relatório que o auxílio ao estudante é uma fragilidade jurídica, à medida que não se o transforma em lei. “Amplia, recebe mais estudantes, não tem investimentos, o que começa não termina, as coisas vão se degradando e, assim, a conclusão das obras vai ficar cada vez mais cara”, diz a professora da UFMG. “As universidades vão ficando cada vez mais oneradas, com um déficit que vai corroendo.”
Ana Lúcia Gazzola chama atenção ainda para a proposta de emenda constitucional (PEC) emergencial, que eliminou mínimos de investimento em saúde e educação, como agravante aos cortes crescentes. “É um ataque o tempo todo, justamente após um cenário que comprova que ter um pacto universitário de pesquisa forte capaz de promover transferência de conhecimento na indústria é essencial para um país. Todas as possibilidades de vacina contra a COVID-19 atualmente no Brasil estão dentro das universidades”, destaca a ex-reitora.
O MEC foi procurado para informar sobre os rumos do Reuni e seus passivos, mas não respondeu até o fechamento desta edição.
UFMG tem orçamento igual ao de 12 anos atrás
Com um orçamento em 2021 equivalente ao de 12 anos atrás, é difícil fazer a máquina andar na mesma velocidade ou, pelo menos, com a mesma força. Várias obras ficaram para trás e há dificuldades para terminar o que já tinha começado a ser feito. Essa é a realidade atual da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas também de muitas outras instituições sob a tutela da União no estado e pelo Brasil afora.
A expansão proporcionada pelo Reuni se traduz no seu conceito de base: crescimento da oferta de vagas. Somente a UFMG passou de uma comunidade acadêmica de cerca de 30 mil pessoas na época da implementação do programa para cerca de 50 mil atualmente. O câmpus de Montes Claros, no Norte do estado, saltou de dois para seis cursos. Mas, seis anos depois das intervenções físicas e no número de pessoal que começaram em 2009, a instituição se viu obrigada a freá-las, diante de cortes orçamentários que tocaram na questão do capital e, logo, no investimento.
“Temos o valor de custeio (água, luz, limpeza, segurança, conservação) e o que permite avançar em estrutura, planejamento e produção de conhecimento, que é a rubrica investimento/capital, parte mais atingida desde 2015”, explica a reitora da UFMG, Sandra Regina Goulart Almeida. A redução é da ordem de 87%. “Foi cortado onde precisávamos e a UFMG foi obrigada a parar as construções em andamento”, conta.
Em 2015, o orçamento sofreu o primeiro baque, ao passar dos R$ 46 milhões do ano anterior para R$ 39 milhões. Em 2016, caiu para R$ 22 milhões, chegando a R$ 20 milhões no ano seguinte e a R$ 18,9 milhões, em 2018. Em 2019, não passou de R$ 6 milhões. Com recursos a conta-gotas, foi possível finalizar o Centro de Atividades Didáticas 3 (CAD 3) e deve ser concluído este ano o anexo da Química.
O anexo da Faculdade de Educação (FAE), estimado em R$ 5 milhões, está sendo retomado, mas não há perspectiva para fazer o mesmo com os anexos da Faculdade de Belas Artes (R$ 11 milhões), da Escola de Música (R$ 9 milhões) e algumas unidades administrativas que estavam no planejamento original do Reuni. E falta ainda levar para o câmpus Pampulha as duas últimas unidades da UFMG previstas na reestruturação: a Escola de Arquitetura (na Savassi, Região Centro-Sul de BH), e a Faculdade de Direito (no Centro), projeto que chegou a passar por licitação com valores estimados em R$ 20 milhões. “O custeio é que permite olhar para o futuro, atingir metas cada vez mais avançadas em termos de comparação de produção de conhecimento com outras unidades”, pontua a reitora.
Em um cenário mais que preocupante, as universidades já mobilizam o Congresso Nacional para salvar o orçamento deste ano. “Temos uma estrutura muito mais complexa, a universidade mais destacada no cenário internacional e nacional e estamos trabalhando com menos recursos. É importante pensarmos no futuro. Todos os países que enfrentaram crise investiram em educação e 90% das pesquisas é feita nas universidades”, destaca Sandra Goulart.
Relatório
Contingenciamentos, cortes e orçamento, palavras que passaram a fazer tremer o caixa das instituições federais de ensino, foram também ponto do relatório do grupo de trabalho formado pelos ex-reitores de universidades por iniciativa da Câmara. Eles analisaram diversos outros temas, como decretos e portarias, programas propostos pelo MEC, internacionalização e trataram de questões sensíveis, como a autonomia universitária, a lei de regulação de instituições privadas e a elevação do Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) à condição de lei.
A professora Ana Lúcia Gazzola, integrante do grupo pela UFMG, conta que o relatório foi entregue à Câmara dos Deputados em 29 de abril do ano passado e só foi publicado no fim de 2020, depois de pressão do grupo. “Conversamos com todo o país, ouvimos os setores público e privado. Mas não levaram adiante nenhuma das recomendações.”
O desafio de multiplicar alunos e subtrair verbas
Com um crescimento de quase 300%, a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), no Campo das Vertentes, simboliza bem o aumento do número de vagas na última década e suas consequências. A instituição passou de 790 alunos para quase 3 mil. Recebeu, entre 2009 e 2011, R$ 50 milhões pactuados com a expansão para cobrir o projeto de implantação de novos cursos. Mas, segundo a federal, a expansão se ancorava num planejamento “forçosamente interrompido”.
E o passivo toca diretamente o cotidiano dos estudantes de novos cursos, na área da saúde (medicina, enfermagem, farmácia e bioquímica), no câmpus Centro-Oeste Dona Lindu, em Divinópolis (Centro-Oeste do estado). Com a interrupção do que havia sido planejado, a UFSJ ficou sem hospital universitário, o lado prático dessas graduações. A solução foi celebrar convênios com instituições de saúde dos municípios nas regiões de atuação da universidade e readequação orçamentária para ampliar, recentemente, de oito para 13 o número de conveniados para internato e estágios no campo de prática médica, segundo informa a assessoria de imprensa.
A expansão gerou também outro passivo: o de pessoal. A universidade tem a pior relação aluno/técnico entre as federais. E afetou a contratação de docentes para os programas de pós-graduação abertos na esteira do Reuni, que previa a chegada de 169 docentes e 75 técnicos administrativos, o que foi feito, entre 2009 e 2011. Depois, segundo a assessoria, a UFSJ foi direcionando recursos de orçamento próprio para garantir a consolidação da expansão. Hoje, os servidores somam 1.471, entre docentes, técnicos-administrativos, residentes, estagiários, cedidos e comissionados. Seriam necessárias mais 380 contratações para se atingir o ponto ideal.
Dois novos cursos previstos para o câmpus Sete Lagoas, na Região Central, sequer saíram do papel. A regulação da assistência estudantil exigiu também readequações, com as perdas acumuladas ano a ano, mas os auxílios estão sendo mantidos. O cenário corre o risco de inverter caso o governo mantenha o corte de 18% anunciado no orçamento do MEC, o que atinge em cheio a assistência estudantil. A UFSJ informa que terá este ano R$ 3 milhões para investir em projetos de apoio e fixação dos estudantes vulneráveis, contra os R$ 11 milhões do ano passado - o que garantiu a extensão de benefícios para cerca de 5 mil estudantes.
Perdas
Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), na Zona da Mata, estão em andamento as obras do prédio da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis. O Instituto de Ciências Exatas foi finalizado, mas passa por reformas custeadas com recursos próprios depois da descoberta de falha estrutural.
A universidade também destaca que seus recursos de custeio subiram 20% no primeiro ano do Reuni, começando a ser congelados a partir de 2012. “Em 2020, a UFJF teve um corte no custeio de 18% e isso significa que hoje, depois de completar todo o planejamento previsto no Reuni, está recebendo muito menos recursos”, afirma nota da assessoria.
Na Federal de Alfenas (Unifal), no Sul de Minas, o setor de planejamento informou que falta concluir um prédio administrativo, o que deve ocorrer em 2022. A licitação para a obra de R$ 300 mil está prevista para este ano. As federais de Lavras (Ufla), também no Sul de Minas, e de Uberlândia (UFU), no Triângulo, informaram ter conseguido concluir todas as obras pactuadas no Reuni. As outras federais mineiras não conseguiram reunir as informações ou não responderam ao pedido da reportagem.