Jornal Estado de Minas

EDUCAÇÃO PARA TODOS

Filhos de porteiros e domésticas conquistam vagas no ensino superior



As estradas de terra da zona rural de São Raimundo Nonato, no Piauí, eram a única alternativa palpável que Ana Christina Baldoino tinha na vida. Era o futuro que via todo dia. Mas ela sabia que queria mais. Tinha intuição de que poderia escrever outra história. E o sonho de um mundo que levasse além daquelas estradas de terra se realizou.





Ela venceu todos os obstáculos. A jovem de 23 anos está no quinto semestre de enfermagem na Universidade Estadual do Piauí (UESPI). A filha caçula tornou-se o orgulho da família humilde de apicultores, principalmente dos pais, Adailton Baldoino dos Santos, 50 anos, e Graciane Ribeiro de Sousa Santos, 44.

"Eles falam para outras pessoas que eu estou na faculdade”, emociona-se Ana Christina. “Eu sinto que eles sentem orgulho de mim por estar cursando em universidade pública, um grau de ensino que eles não tiveram oportunidade de alcançar.”

A jovem estudava numa escola pública a 1 km da fazenda de seus pais, que não chegaram a concluir o ensino fundamental. O meio de transporte eram camionetes, que passavam por várias fazendas para buscar outras crianças.





Christina ficou um ano sem estudar e, por influência de amigos próximos e do próprio companheiro, os olhos da jovem começaram a brilhar para um futuro acadêmico. Procurou cursinhos on-line, passou um ano estudando e conseguiu seraprovada para letras, mas depois descobriu que queria mesmo era ser enfermeira e prestou o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) novamente.

A estudante de enfermagem ao lado dos pais Graciane Ribeiro e Adailton Baldoino (foto: Arquivo pessoal)
Os pais da garota sentem orgulho de a filha caçula ter chegado ao ensino superior (foto: Arquivo pessoal)


Para Ana Christina, estudar enfermagem na Universidade Estadual do Piauí é a realização de um sonho que ela não tinha, a princípio, mas cultivou com o passar dos anos. Ela própria se sente orgulhosa da trajetória. Quando olha todo o contexto familiar e onde cresceu, ela se sente feliz não só de visar a uma carreira acadêmica, mas de ter influenciado outras pessoas da família a buscarem os mesmos sonhos.

“Nenhum dos meus primos visava a um curso superior. Meus primos abriram a visão deles depois que eu entrei. Até meu irmão fez um curso de análise e desenvolvimento de sistemas a distância”, conta.





Herdeiro de agricultor e empregada doméstica é aprovado em medicina no Ceará


Davi ao lado da família: os pais, Eliane Magalhães e Francisco Silva, e os irmãos Francisco Sueldo (ao fundo) e Francisco Rafael, 7 anos (abaixo) (foto: Arquivo pessoal)
Foi no interior do Ceará, numa cidadezinha de pouco mais de 13 mil habitantes, Iracema, a 250 km de Fortaleza, que Davi Magalhães, 17 anos, viveu toda a infância e cresceu com uma única motivação: oferecer uma qualidade de vida melhor para a família. Apesar de ter nascido em São Roque (SP), o estudante se mudou com a família para a cidade nordestina, fazendo o caminho inverso de milhares de conterrâneos de seus pais.

Eliane Magalhães, 36 anos, empregada doméstica, e Francisco Silva, 46, agricultor, sequer concluíram o ensino fundamental, mas nunca deixaram de motivar os filhos a realizarem os seus sonhos. Enquanto a mãe limpava e cuidava das casas dos outros, e o pai trabalhava na roça, eles viram o primeiro membro da família chegar ao ensino superior. O irmão mais velho de Davi, Francisco Sueldo, 20, cursa licenciatura em matemática na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa).

Mas, dois anos depois, eles foram surpreendidos com o diagnóstico de Davi. O jovem conta que o maior desafio que enfrentou foi descobrir que tem esclerose múltipla. “Na época, eu fiquei bem nervoso com a descoberta, porém, com muito esforço e dedicação, estou tentando superá-la”, resigna-se.





Aos 15 anos, Davi teve que entender o que era ser portador de uma doença sem cura, que afeta o sistema nervoso. Para ultrapassar essa e outras barreiras, como ter estudado a vida toda em escola pública e as dificuldades financeiras, o filho do meio de dona Eliane e seu Francisco escolheu seguir o caminho da medicina.

Davi foi aprovado na Universidade Federal do Ceará (UFC) pelo SISU e agradece principalmente aos pais, por sempre terem acreditado nele, e à escola. “Meus pais estão bastante felizes e orgulhosos. Eu também me sinto assim ao perceber que todo o esforço valeu a pena”, comemora.

Mesmo durante a pandemia, o suporte dos professores da Escola de Ensino Médio Deputado Joaquim de Figueiredo Correia foi fundamental para a aprovação do calouro. “Durante toda a minha história estudantil, estudei em escola pública e, mesmo diante de todas as dificuldades, sempre recebi total apoio das instituições, tanto do ensino básico quanto do ensino médio”, conta.





Mais uma vez, Davi terá que partir e estar aberto a novas oportunidades, assim como a família buscou em Iracema, pois estudará em Fortaleza. Contudo, promete voltar e cumprir aquilo que sempre desejou: promover uma vida mais digna aos pais e a todos aqueles que um dia o ajudaram.

“No meu futuro, espero estar formado após uma longa caminhada de muito esforço durante a faculdade para, assim, ajudar os meus pais e a população da minha cidade”, planeja.

"Eles falam que são meus fãs"


Da esquerda para a direita: o pai, Silvino Bispo da Rocha, Silvana Rocha e Beatriz Rocha (irmãs) e a mãe, Benigna Carolina Silva (foto: Arquivo pessoal)
A ex-faxineira Benigna Carolina Silva, 60, sempre se preocupou com a educação dos três filhos. Mesmo não tendo condições de pagar escola particular, fazia questão de encontrar as melhores escolas públicas e garantir que Sandro, 30, Beatriz, 43, e Silvana, 37, tivessem as melhores oportunidades.

Quando tinha 6 anos, Sandro se mudou da capital para o interior em Mogi Mirim (SP) com a família. A mãe tinha um salão de beleza; e o pai, um boteco. Na periferia da cidade, Silvino Bispo da Rocha, 64, também era porteiro e respeitado no bairro. Todos conheciam o filho do “Rocha”, apelido dado ao pai de Sandro, e a família vivia no prédio do condomínio onde o pai trabalhava.





Dona Benigna levava os filhos para a escola, de ônibus. Ela sabia que aquele incentivo e apoio para o futuro faria a diferença. A mãe também estimulou que as filhas e o filho mais novo desenvolvessem habilidades esportivas, mas Sandro não seguiu o caminho das irmãs. Ele se encontrou nas artes, como dança e teatro. Depois de um tempo, a paixão se estendeu ao estudo da língua portuguesa, quando um professor do ensino médio ofereceu um trabalho.

Sandro estudava a gramática todo domingo de manhã. E, aos poucos, também se encantou pelo inglês. Apesar de ser um estudante dedicado, a aprovação numa faculdade não veio de primeira. Ele conseguiu uma vaga na federal após um ano de estudo num cursinho, onde era bolsista. O esforço valeu a pena: Sandro foi aprovado em três universidades: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2010.

Da casa dos pais, ele se mudou para uma república. Durante a graduação, resolveu tentar uma bolsa de intercâmbio em Portugal, mas teve que atender a uma série de requisitos, inclusive mudar a graduação de bacharelado para licenciatura.





“Era uma oportunidade única, geralmente quem faz intercâmbio é um estudante com percurso privilegiado, mas me inscrevi e quando abri a licenciatura, eu não saí mais do mundo da educação”, comenta.

Sandro tinha como objetivo principal trabalhar como tradutor, mas, após o intercâmbio e toda a sua trajetória, ele enxergou na educação uma forma de mudar o futuro de outros Sandros por aí. Para o professor da rede municipal de SP, demora a cair a ficha de que ele teve acesso a diversas oportunidades por não ter desistido.

“Sempre que eu olho meu percurso, falo: ‘Gente, olha só onde eu estou!’. Demora a cair a ficha. Quando cai a ficha que tô nesse espaço de melhor universidade, saindo de onde eu saí, aí cai a ficha”, empolga-se. Hoje, ele é doutorando da USP.





O objetivo de Sandro todos os dias é honrar a origem dele: daquela criança de seis anos, que morava na periferia e tinha a ajuda dos pais para não desistir. Dona Benigna e seu Silvino, hoje, são divorciados e aposentados, e consideram o filho caçula o orgulho da família. "Eles falam que são meus fãs, me admiram muito, e eu tento traduzir o que eu faço na universidade para os meus pais, porque, às vezes, eles não entendem isso de percurso acadêmico", mostra.

Sandro escolheu trilhar o caminho da pesquisa e dar aulas, mas confessa que a mãe até hoje espera que o filho volte para casa. “A minha mãe espera até hoje eu me formar para voltar a morar com ela”, diz. “Mas eu tenho que dividir meu emprego e pesquisa, e eu não sou só professor e pesquisador, também sou militante da educação pública."

Como professor, Sandro quer honrar a origem para que as pessoas tenham oportunidades para chegar ao ensino superior e não seja uma questão de sorte.

Da roça para o doutorado na UnB


Apesar da vida difícil, os pais da jovem sabiam que, no futuro, a filha Magda e as irmãs teriam o retorno desse esforço (foto: Arquivo pessoal)
Imagine ter que acompanhar a posição da Lua para saber se já é quase dia e se preparar para ir à escola. Na década de 1990, em uma casinha da zona rural de São Francisco (MG), não havia relógio e muito menos meio de transporte para percorrer os 12 km (ida e volta) até a instituição de ensino mais próxima.





Todos os dias, Magda Ribeiro, com apenas 11 anos, fazia esse percurso para poder completar os anos finais do ensino fundamental. Levantava cedo, às vezes, chegava a ir de madrugada e era uma das primeiras a estar na escola da Vila do Morro.

Enquanto isso, os trabalhadores rurais Rosires Ribeiro, 60, e José Antônio de Almeida, 64, arrancavam da terra o sustento para conseguir criar as quatro filhas. No semblante dos pais, Magda reconhecia o sentimento de pena por, às vezes, irem para a escola com chinelo remendado por um grampo, vestir roupas usadas ou até morar de favor. Apesar disso, ela sabia que no futuro os pais veriam que a trajetória das filhas foi dura, mas teve um retorno.

Mesmo quando os colegas de classe cantavam alto para ela e a irmã quando chegavam à escola “o sapo não lava o pé, não lava porque não quer”, Magda não se deixou abater. A música infantil entrava e saía pelos ouvidos instantaneamente.





“Ouvir isso nunca me desanimou, meus pais sofriam muito na roça, e a gente sabia que a única maneira que a gente tinha pra crescer era a escola. Então, a gente estudava”, lembra a professora, hoje com 40 anos.

Durante o ensino médio, Magda chegou a morar na casa de parentes. As roupas eram doadas, a casa era de favor, e a vida, mesmo que difícil, mostrava uma luz no fim do túnel. Ela escolheu fazer magistério para poder arrumar emprego logo após a formatura. Tentou vestibular, pois o sonho era ser advogada. Mas, após várias desaprovações, se sentiu desmotivada.

Começou a trabalhar numa agência de turismo, fazia cursinho à noite, mas estava sempre cansada. Foi nas aulas de inglês que ela teve a primeira sensação de vitória e do esforço recompensados. E esperançosa em tentar outro vestibular, na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), apenas para testar os conhecimentos.





O curso de direito ficou de lado, e ela tentou uma vaga para história. Aprovada em 3º lugar, passou a trabalhar meio período para conseguir se dedicar à faculdade, mas ,no fim do mês, a falta de dinheiro fazia diferença.

“A falta de dinheiro me prejudicava. Ou eu trabalhava, ou estudava. Eu estava num dilema muito grande e depois fiquei nove meses desempregada. Nesse período, a minha irmã me ajudou muito”, desabafa.

Então, surge a oportunidade de uma bolsa de iniciação científica para ajudar no arquivo da faculdade. De manhã, Magda estudava; à tarde, se dedicava ao projeto. Aquele lugar, posteriormente, passou a ser o estágio remunerado da estudante. Aos poucos, ela percebeu que queria fazer carreira acadêmica: ser professora e fazer pesquisa.

Mãe de Magda atualmente é trabalhadora rural (foto: Arquivo pessoal)
José Antônio de Almeida é trabalhador rural e pai da doutora pela Universidade de Brasília (foto: Arquivo pessoal)


Enquanto Magda finalizou o mestrado e logo passou em um concurso para ser professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro — Câmpus Paracatu, as irmãs também se tornaram docentes, em áreas distintas: botânica, letras e direito.





“O que move nós todas, que somos professoras, é acreditar que a educação é capaz de transformar a vida de uma pessoa, que seja filha de lavrador, como eu sou, a vida de um porteiro ou de uma diarista”, encoraja. “A educação nos transformou.”

Para ela, o sonho da carreira acadêmica se concretizou ao fazer o doutorado em história, na Universidade de Brasília (UnB). Hoje, aquela menina que usava roupas emprestadas e acordava de madrugada para ir à escola teve a tese condecorada dois anos seguidos com menção honrosa na UnB.

A dissertação de doutorado se tornou um livro. A doutora em história teve a vida atravessada pelas desigualdades, mas foi abraçada pela educação. E esse é o legado que ela quer deixar para os filhos. Atualmente, Magda é casada, tem uma filha de 7 anos e está grávida do segundo filho. *Estagiária sob a supervisão da editora Ana Sá

audima