“Eu sempre estudava na biblioteca municipal daqui de Feira de Santana (BA), desde 2015, porém veio a pandemia e a biblioteca fechou”, relata Matheus de Araújo, 26 anos, natural da comunidade quilombola de Orobó, em Antônio Cardoso (BA), futuro médico pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e primeiro da família a ingressar em uma universidade. “Daí eu prometi para mim mesmo, independemente do resultado, eu vou fazer outra coisa, não quero mais contar com isso, não”.
Esta última tentativa foi a 8ª vez que Matheus fez a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), quatro anos exclusivamente direcionados para o curso de medicina. Tantos anos de preparação deixaram o estudante desgastado, e, em um momento mais difícil ainda por conta da pandemia, ele pensou em desistir.
“Na associação aqui do bairro não tinha como estudar porque lá tinha bares ao redor. Em casa também não dava, porque tinha irmão, barulho. Eu falei ‘vou parar de estudar’, pensei em desistir várias vezes. Sabe quando você chega naquele pico de saturação?”, recorda.
A alternativa veio de uma amiga que tinha uma casa próxima, mas a construção não tinha energia elétrica. Matheus conseguiu realizar o sonho de passar para medicina com a ciência de que o caminho foi mais difícil do que o de muitos e agora pretende se esforçar para usar o seu trabalho em prol de comunidades com menor acesso à saúde.
Amor pelo irmão influenciou na escolha do curso
Matheus vem de uma família com seis filhos. Entre eles, o terceiro irmão é uma inspiração para ele. “Um dos maiores focos de estilo de vida foi ele”, conta. O irmão tem sequelas de meningite meningocócica, que pode comprometer capacidades motoras, audição, visão, memória, capacidade cognitiva, entre outros.
Na redação do Enem, o irmão também ajudou na bagagem para o texto. Matheus tirou 980 na redação do tema “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”. “Foi um tema que eu tinha bastante propriedade para falar”, explica
Apoio da família e comunidade foi complicado
“No primeiro momento, como eles não tiveram acesso à educação, eles não aceitavam muito”, relata Matheus sobre a família e os vizinhos. “Me viam estudando, me chamava de doido porque eles me viam subindo e descendo todo dia com a mochila de domingo a domingo”.
Ele conta que trabalha meio período desde os 17 anos para conseguir pagar inscrições de vestibulares, locomoção para os locais de prova e investir nos estudos.
Matheus chegou a cursar enfermagem, mas largou em 2017, após dois anos no curso, para tentar medicina. “Daí eles não apoiavam mesmo. Diziam ‘já está em uma universidade boa, tudo já certo, encaminhado, tu vai voltar para dar tipo um passo atrás?’”, recorda.
Hoje, ele é motivo de orgulho para o bairro. Tímido, ele tenta lidar com a repercussão da conquista, mas aproveita para outras pessoas que também sonham com o ensino superior. “Primeiro passo é ter fé. Segundo, é você ter um foco. Eu falo direto que sonho sem ação é apenas ilusão. Então, é ter fé, foco, acreditar que é possível e levantar a cabeça”.
“A motivação maior que a gente tem é nossa vida. A gente tem que olhar para nossa vida e usar como válvula para conseguir algo mais”, finaliza.
*Estagiária sob supervisão da editora Ana Sá