Jornal Estado de Minas

LEI DE COTAS - 10 ANOS

Lei de cotas: por que, 10 anos depois, política bem-sucedida está ameaçada?


Há dez anos, uma transformação na legislação que disciplina o acesso às universidades públicas brasileiras abria os portões de um oásis de excelência no ensino gratuito nacional para uma legião de estudantes provenientes de escolas mantidas por prefeituras, estados e pelo próprio governo federal.



No segundo semestre de 2012, a chamada Lei de Cotas derrubava uma das barreiras sociais mais imponentes no Brasil: a que separava alunos de menor renda das melhores instituições de ensino superior no país. Mas, após enfrentar polêmicas e tabus, a chamada política afirmativa completa uma década em nova encruzilhada: a revisão prevista para este ano no próprio texto legal está ficando para depois.

Por consequência, a avaliação crítica e o aperfeiçoamento do mecanismo também serão adiados – inclusive diante da percepção de que, em ano eleitoral, com debates ideológicos acirrados, falta ambiente para a necessária discussão técnica.

Falta também uma avaliação oficial do impacto da mudança. Um vácuo legal e administrativo que cria insegurança entre beneficiários e defensores do sistema, impedindo ao mesmo tempo que ele avance para permitir, por exemplo, que cotistas tenham acesso ao percentual total de vagas reservado a eles em cursos mais disputados, como odontologia e medicina. Ou que estudantes de baixa renda que conquistaram bolsa no ensino básico em escolas particulares também possam postular o benefício.



Mas, se o futuro é uma incógnita, números parecem indicar um consenso: os câmpus mudaram de cara. Ficaram mais heterogêneos, recebem mais estudantes de baixa renda e multiplicaram o total de universitários negros e indígenas, como mostra série de reportagens que o Estado de Minas publica a partir de hoje.
 
 
Para Lilian Delfino, que entrou na primeira turma de cotas da UFJF, a nova legislação colocou em pé de igualdade pessoas antes excluídas da graduação (foto: Max Costa/Divulgação)
Lílian Delfino, Ítalo Pereira, Deynaba Kane e Ana Mariana Lima são o retrato dos brasileiros cujas histórias e conquistas pessoais se entrelaçam com os acontecimentos da última década nas universidades federais. Assim como milhares de outros estudantes que cursaram o ensino médio fora da rede particular, apoiados na Lei de Cotas, eles conquistaram a garantia legal de também ocupar espaços nobres de ensino, pesquisa e extensão na educação superior pública.

A batalha por uma universidade pública plural ainda é longa e passa pela modernização da própria legislação, que está sendo adiada. Em meio à indefinição, o EM mostra a partir desta edição conquistas e desafios da principal ação afirmativa da educação no país, tendo como pano de fundo as histórias desses quatro cotistas, em um quadro no qual a oportunidade de graduação surgiu, mais que como uma oportunidade, como uma esperança para várias gerações.





A Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, reservou 50% das vagas nas universidades federais a estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, e metade delas em escolas federais de nível médio para alunos que tenham feito todo o ensino fundamental nas redes municipais ou estaduais.

Do total de vagas reservadas, 50% devem ser destinadas a estudantes provenientes de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. O restante precisa ser distribuído entre autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, em proporção equivalente ao total dessa população na unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Moradora de Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, Lílian de Freitas Delfino, de 27 anos, entrou na graduação na primeira turma das cotas, no primeiro semestre de 2013. “Tinha no ensino médio um professor engajadíssimo com questões sociais e políticas, e esse era um dos temas abordados na aula dele, temas considerados ‘tabu’ na nossa idade”, conta a jornalista formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).





Ela lembra que, se tivesse optado pela ampla concorrência, também teria sido aprovada, mas para o segundo semestre. “Era algo que eu tinha já bem esclarecido, apesar da definição recente no ensino do Brasil, e achava que as ações afirmativas eram um direito. Tinha certeza de que seria um benefício para mim em relação a outras vivências de ensino na universidade”, diz.

Lílian se recorda de que, naquele ano, ficou claro quem tinha entrado pelas cotas pela modalidade de pessoas pretas: eram apenas três, numa turma de 30. E lamenta ainda que, na época, apesar de cursar comunicação social, não tenha havido debate sobre o assunto em classe. Mesmo assim, se sente aliviada com a evolução. “Minha irmã, aluna da universidade atualmente, faz comunicação. Hoje, tem muitas pessoas negras, é uma divisão mais igualitária”, conta.

Para ela, as cotas puseram em pé de igualdade pessoas antes excluídas da graduação. “Não teria sido chamada para a turma em que entrei, fez toda a diferença para mim. Minha irmã, sendo aluna da universidade, mulher negra, tendo outros negros na turma dela... Era o que precisava para dar oportunidade a pessoas que de outras formas não conseguiriam entrar em instituição federal. Ou iriam para faculdade particular ou nunca fariam uma graduação”, avalia.





Para ela, faculdade e diploma mudaram completamente a vida. “Universidade era um sonho, consegui fazer especialização e foi a porta aberta de que precisava na adolescência. Até então, apenas duas primas tinham entrado na universidade. Fui a terceira e, daí em diante, toda a família tem feito faculdade”, relata a jornalista, filha de uma técnica em enfermagem e de um zelador.

MUDANÇA


As cotas mudaram a composição ética e social da universidade, afirma Romualdo Portela de Oliveira, diretor do Cenpec, organização da sociedade civil que trabalha pela equidade e qualidade na educação básica pública do país. E, por isso, é tão preocupante que o assunto não venha sendo debatido em nível federal. “Há uns 15 ou 20 anos se discutia gratuidade no ensino superior, com o argumento de que ele servia a setores abastados da sociedade.

Esse argumento morreu a tal ponto que essa discussão sumiu. A Lei de Cotas democratizou a universidade de maneira inédita na história do país. Não fazer balanço, não reconhecer que teve impacto brutal em algo do ponto de vista estratégico de democratização das oportunidades de educação é muito preocupante, é um governo que não compreende a educação do país”, critica.





As cotas se tornaram universais no sistema federal de ensino há 10 anos, mas já eram realidade em algumas instituições bem antes disso. É o caso da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que oito anos antes da mudança já havia aprovado resolução própria e instaurado a ação afirmativa em seus vestibulares. Com uma diferença: o candidato tinha que ter cursado, além do médio, também parte do ensino fundamental na rede pública. Recentemente, o Conselho Superior da universidade aprovou a Resolução 67, adotando cotas em todos os programas de mestrado e doutorado para negros, povos de comunidades tradicionais quilombolas, ciganos, pessoas trans, refugiados e pessoas com deficiência.

“Muda o perfil da pós e dos temas a serem pesquisados. Temas trazidos para fazer pesquisa mudam também a ciência, deixa de ser modelo científico com paradigma ocidental moderno com temas que interessam mais às comunidades em diversas áreas”, afirma o diretor de ações afirmativas da UJFJ, Julvan Moreira de Oliveira. 

“E, mais à frente, possibilitará mudança no perfil dos cientistas e professores das próprias universidades. Pessoas trans, com deficiência, indígenas, negros poderão concorrer a esses concursos, alterar o perfil dos quadros profissionais, dos pesquisadores e docentes da nossa sociedade.”