Apesar da ausência de documento mostrando o impacto das cotas na educação superior brasileira, pesquisa nacional coordenada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) dá uma ideia das mudanças causadas pelas ações afirmativas numa das modalidades que ela contempla: a inclusão de negros e indígenas nos câmpus país afora.
Esse grupo de cotistas parte de um total de 7.889 novas matrículas no ano de 2009 e chega a 2016 com 86.717 registros em universidades federais e estaduais brasileiras, mais de 10 vezes mais alunos que no primeiro momento observado.
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O documento revela que, depois dessa fase de grande crescimento, as entradas de alunos pretos, pardos e indígenas por meio de programas de reserva de vagas chegam ao ano de 2016 representando 21,18% do total de ingressos em universidades federais e estaduais. Em 2009, esse percentual era de apenas 2,29%. E, em 2012, ano da publicação da Lei 12.711, os cotistas negros e indígenas respondiam por 3,24% dos “calouros”.
Ainda em 2009, dos 344.326 ingressos, apenas 7.801 registros (2,27%) eram de estudantes negros que acessaram a universidade por meio de estratégias para reserva de vagas, ao passo que 12,7% eram negros que ingressaram por ampla concorrência ou outra forma de acesso. “Esse processo culmina, em 2016, com a primeira vez em toda a série em que os negros cotistas aparecem em maior quantidade que os negros não cotistas”, diz o texto. “Os resultados sugerem que a maior parte dos estudantes cotistas negros e indígenas acessam a universidade por meio de critérios que associam características étnicas à trajetória escolar. Estabelecendo as combinações referentes aos tipos de reserva, esses resultados ficam ainda mais evidentes”, completa.
Dos 86.717 ingressantes cotistas negros e indígenas, 30.312 tiveram acesso às cotas a partir de critério étnico e referente. Aqueles que além da classificação étnica e da trajetória escolar ainda foram classificados no programa de reserva de vagas em função da renda domicilia representam 24,4% do total de cotistas negros e indígenas, a segunda situação mais frequente. As reservas exclusivamente do tipo étnico ou de escola pública representam, respectivamente, 15% e 13,3% do total dos ingressantes cotistas no ano de 2016.
PERSPECTIVA
Ela esperou quatro anos para entrar na faculdade desde a formatura no ensino médio. Para Ana Mariana Florêncio Afonso Meireles Lima, de 24 anos, a educação pública, que havia frequentado durante toda a sua vida parava no ensino médio. Universidade, ainda mais gratuita, não passava pela esperança de futuro da garota, cujas perspectivas iam até a papelaria, onde tinha um emprego temporário. “Tudo mudou quando meu tio me deu oportunidade de fazer um cursinho. Já estava mais velha e entendi que a vida seria mais difícil se eu não tivesse um diploma”, conta. No Chromos, ela descobriu letras, curso para o qual entrou com as cotas.
“Antes eu achava que não poderia passar na UFMG. Foi muito emocionante descobrir que, sim, eu podia. Mesmo com cota, tive de me esforçar para ser aprovada. Saber que tinha capacidade mudou algo em mim, me deu confiança”, relata a estudante do 6º período. “Hoje não me preocupa o fato de ter diploma, com o que vou lidar depois. Escola pública não é problema só para os alunos, mas também para os profissionais que trabalham nela, e minha vontade é ensinar inglês na rede pública. Foram meus professores que mudaram minha visão de vida e queria passar isso para os meninos. Mas a valorização dos docentes me preocupa”, avalia Ana Mariana.
“O aluno tem que acreditar nele mesmo e deixar de lado a ideia de que estudante de escola pública não pode entrar na faculdade que quer. E entender que é uma luta. Muita gente sai da rede particular para entrar na faculdade que quer, e a gente tem que insistir mais. E saber que não é fácil para ninguém, mas também não é impossível para ninguém”, aconselha.
“Mudou a cara da UFMG”
Se, há 10 anos, questionamentos associaram cotas à possível redução da qualidade de ensino nas universidades federais, hoje parece claro que o temor não se concretizou. Mérito, esforço e assistência aos estudantes compõem a fórmula de sucesso dos alunos cotistas na Universidade Federal de Minas Gerais. “Para nós, é muito claro: no primeiro semestre, as notas são um pouco diferentes no início, mas ao fim do segundo semestre não tem mais diferença de rendimento entre quem entra por cotas e pela ampla concorrência”, afirma a reitora da UFMG, Sandra Goulart.
Ela cita estudo que mostra ainda mais: estudantes assistidos pela Fundação Mendes Pimentel (Fump) têm menor evasão. Entre quem entra pela ampla concorrência, é maior o número de estudantes que deixam de lado suas vagas. “O grande problema do ensino superior no Brasil é que o aluno entra e não consegue se manter. Isso sinaliza que as políticas de permanência têm impacto importante entre os que precisam da cota. Por isso é tão importante mantê-la: mudou a universidade e deu oportunidade de fazer curso superior a muitas pessoas que historicamente foram excluídas”, avalia.
“Mudou a cara da UFMG. Lembro-me de falar na primeira turma de medicina (com cotistas). É visual. Antigamente, não víamos pessoas pardas ou pretas em cursos considerados de maior prestígio social, como medicina, engenharia, odontologia... Hoje, vemos também indígenas e pessoas com deficiência. Daí a ideia de UFMG plural: ela tem outra cara e, por isso, necessidade de inclusão”, completa a reitora.
Aluna do 4º período de bacharelado em estudos literários, Deynaba Kane, de 20 anos, faz parte da geração mais atual de cotistas da UFMG. Apesar de enfrentar um percurso árduo, ela considera que o amor pelo estudo é seu grande combustível.
A jovem é filha de mãe brasileira e pai senegalês, que chegou ao Brasil por meio de uma bolsa da Unesco para estudar sobre a cultura negra no país.
O pai e o irmão, que faz engenharia mecânica, são suas maiores referências, de quem sempre teve no aprendizado o principal instrumento de luta. “Sou uma mulher negra de escola pública e tive que criar um escudo para me proteger e cuidar do meu futuro. Estudo é meu único meio de acesso a uma transformação não só econômica, mas como pessoa. Aprender é saber lidar, saber se impor diante dos conflitos, se engrandecer, antes de conseguir dinheiro e estabilidade financeira.”
Ela quer fugir de mais um estigma: de que quem se forma em letras vai direto para a sala de aula. Deynaba quer se permitir mais: enveredar na pesquisa e usar a área de humanas, por meio da prática docente, música e literatura, para conscientizar outras pessoas. “Políticas afirmativas são formas de reparar uma história excludente que segue se desenvolvendo, entendendo que pontos de partida são diferentes. Já nasci numa sociedade racista, que me negou muitos direitos, é hora de correr atrás disso com ajuda do Estado. É preciso dar voz a negros, indígenas, todos que passamos por sofrimento histórico, reservar lugar na sociedade para afirmar quem nós somos. Entrar na universidade é também afirmar nossa história.”