Para quem cresceu antes da chegada da internet e da popularização dos computadores pessoais, status intelectual era ostentar uma robusta coleção de livros de capa vermelha na estante da sala. Dezesseis volumes, de A a Z — ou melhor, de A a Zwingli, respectivamente a primeira e a última entrada —, com 130 mil verbetes.
Em tese, tudo o que havia de importante estava ali. Em suas lombadas caprichadas, lia-se o nome que impunha respeito e pompa: Enciclopédia Barsa.
A história dessa enciclopédia, que foi lançada poucos dias antes do golpe militar de 1964 e teve sua última edição impressa exatamente 50 anos depois, em 2014, envolveu grandes nomes da cultura brasileira e, para famílias que se preocupavam enormemente com os estudos de seus filhos, significou muita luta e, por vezes, endividamentos.
Desde o ano 2000, os direitos da publicação são da Editora Planeta, que comercializa ainda a versão impressa e também uma plataforma digital com o conteúdo, chamada de Barsa na Rede. Segundo a editora, são 170 mil usuários pagantes.
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Americana nascida na Califórnia, ela se naturalizou brasileira e vivia no Rio de Janeiro. Seu pai era editor-executivo da Encyclopædia Britannica, que apesar das origens escancaradas em seu nome, vinha sendo publicada nos Estados Unidos desde o início do século 20, em um negócio capitaneado pela Universidade de Chicago.
No Brasil, a empresária vislumbrou a oportunidade de lançar uma enciclopédia nacional. Mas não achava que simplesmente traduzir a Britannica resolveria as lacunas da cultura brasileira. Assim, em 1960, já à frente da operação Encyclopædia Britannica do Brasil, contratou o jornalista e escritor Antônio Callado (1917-1997) para chefiar a equipe local da operação.
Esse interesse comercial de Barret atendia a uma necessidade que já era conhecida no Brasil. De acordo com o historiador Pedro Terres, pesquisador do Centro de Humanidades Digitais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desde os anos 1930 havia um projeto nacional e estatal da criação de uma enciclopédia nacional.
“A ideia do governo era que fosse organizada pelo Estado e chegaram a chamar o Mário de Andrade para pensar o projeto”, conta ele. “Mas nunca foi para a frente, embora o Estado tenha continuado a financiar a ideia até os anos 1970. Nunca algo assim foi publicado.”
Conforme Terres contextualiza, nos anos 1960 esse nicho acabou sendo suprido pela chegada das enciclopédias comerciais. E as que mais se destacaram foi a Britannica do Brasil e a Delta Larousse.
E Barret montou o projeto mais “abrasileirado”. Inclusive adotando um nome genuíno para a publicação. Barsa, da junção dos sobrenomes seu com o do marido, o diplomata Alfredo de Almeida Sá.
“A Barsa nasceu com o objetivo de dar um peso brasileiro à enciclopédia”, pontua Terres. “Havia um consenso na intelectualidade de que as enciclopédias estrangeiras não traziam o peso da cultura brasileira. E para gestar uma enciclopédia brasileira era preciso dar esse peso, pensar o folclore, as especificidades, a síntese do Brasil.”
O terceiro e último capítulo da dissertação de mestrado do historiador Terres, em andamento, trata exclusivamente sobre a Barsa.
Uma enciclopédia brasileira
Incumbido de chefiar o novo projeto, Callado tinha alta reputação. Havia sido redator-chefe do Correio da Manhã e gozava de prestígio intelectual. Sua ideia foi chamar grandes nomes e encomendar a eles verbetes especiais, não apenas informativos mas também argumentativos.
Assim, coube ao arquiteto e urbanista Oscar Niemeyer (1907-2012) escrever sobre Brasília. O historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) fez o texto sobre São Paulo. Jorge Amado (1912-2001), escritor já consagrado, incumbiu-se do verbete sobre o cacau. O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) redigiu tanto o texto sobre Pernambuco quanto aquele que detalhava a importância do açúcar para a história econômica brasileira. O verbete sobre o Ceará foi feito pela escritora Rachel de Queiroz (1910-2003).
“Tinha também um intuito comercial, ou seja, ter nomes de peso para a enciclopédia”, ressalta o historiador Terres.
Além desse time estrelado, a operação da enciclopédia também contava com uma grande redação formada por funcionários fixos. Eram, em sua maioria, recém-graduados na Universidade do Brasil — depois rebatizada de Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — e da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio).
“Havia um diálogo com as universidades, que ainda eram pouquíssimas no Brasil, e isso se articulava para pensar uma obra de sínteses que era focada no Brasil, uma síntese do Brasil dentro de um projeto intelectual”, comenta o historiador.
De acordo com o pesquisador, havia uma rede de colaboradores que chegou a 257 nomes — 221 homens e 36 mulheres. Isso apenas para a primeira edição da Barsa, lançada em 1964.
O trabalho na redação não era apenas escrever e compilar os verbetes. Em um tempo anterior aos computadores, era preciso organizar e catalogar de forma sistemática, para que os índices remissivos funcionassem corretamente e não houvesse falhas. Checagem também era extremamente necessária.
Terres encontrou alguns documentos que levam a crer que Callado tinha um salário combinado em dólar para cuidar da operação — algo na casa de 1 mil dólares. Para os colaboradores de grife, há correspondências que permitem especular o quanto era pago: cerca de 30 mil cruzeiros por artigo.
“Era mais ou menos o salário mensal que ganhava uma secretária de escritório na época. Uma quantia razoável, mas também não um preço exorbitante”, conta Terres, que diz que há indícios de que Freyre tenha tentado negociar melhores honorários.
“Esses verbetes assinados eram muito bem publicizados na imprensa, ou seja, o Callado fez toda uma jogada para poder comercializar a enciclopédia”, acrescenta o historiador.
Esses verbetes escritos por autores renomados tinham um estilo muito interessante. “Não eram verbetes de definição, mas tinham um caráter dissertativo, mais do que uma visão panorâmica do tema, também traziam argumentos, hipóteses. No texto do Gilberto Freyre, há o pensamento dele sendo colocado ali, com todos os vieses disso. Eram produções acadêmicas, com o objetivo de defender ideias, teorias”, analisa.
A Barsa foi lançada em 1964 com 30% de conteúdo inédito, totalmente produzido no Brasil. O restante foi feito com tradução de verbetes da Brytannica.
De acordo com a Editora Planeta, essa prerrogativa de recorrer a figurões para determinados verbetes se manteve ao longo das décadas seguintes. Acabou virando uma tradição, uma marca da Barsa.
“A enciclopédia, por sua vocação, foi assim produzida para contribuir com o conhecimento científico e cultural da sociedade e do mundo”, diz Silva. Ele citou contratados ilustres como o filólogo Antônio Houaiss (1915-1999), que integrou o corpo editorial da publicação desde o início, e também o jornalista Otto Maria Carpeaux (1900-1978).
Silva também destacou alguns verbetes produzidos em edições mais recentes, assinados por nomes de destaque. O texto sobre Oscar Niemeyer foi feito pelo poeta e escritor Ferreira Gullar (1930-2016); o do Recôncavo Baiano, pelo geógrafo Milton Santos (1926-2001); o verbete Ayrton Senna é de autoria da irmã do piloto, Viviane Senna; o jornalista e biógrafo Ruy Castro foi o contratado para redigir um artigo sobre o centenário de Carmen Miranda.
Preço de um carro?
Se a enciclopédia se tornou fetiche para famílias de classe média, não era sem sufoco que as compras eram feitas. Foi com o advento da Barsa, por exemplo, que a ideia de parcelar uma compra se tornou praxe no Brasil.
É comum encontrarmos comentários saudosos nas redes sociais sobre como era cara a enciclopédia. Isso é verdade. Muitos dizem que custava o preço de um carro zero. Não era para tanto. Mas quando me recordo do Fiat velho que habitava a garagem da casa dos meus pais quando eu era criança, consigo entender que aqueles volumes no alto da estante haviam custado mais do que o meio de transporte da família.
A gratidão aos meus pais se torna maior ainda quando me lembro que houve um período, não muito distante daquele em que o Edison pai chegou anunciando a novidade da compra da Barsa, em que a garagem ficou completamente vazia: o retrato da crise.
“Realmente era muito cara a coleção, exigia grande poder aquisitivo ou um endividamento considerável”, analisa Terres.
“No passado, há relatos de que custava próximo ao valor de um carro ou a de um terreno, um lote”, comenta o diretor Silva.
Hoje não há mais a figura do vendedor de enciclopédia, aquele quase folclórico sujeito que batia de porta em porta. A Barsa só é comercializada pelo site Barsa Shop, mantido pela editora.
Em 1964, quando a enciclopédia foi lançada, os 45 mil conjuntos da primeira impressão se esgotaram em oito meses — um tremendo sucesso. O auge das vendas, em 1990, significou 120 mil coleções vendidas. Em 2010, em um mundo já habituado a usar buscadores de internet e a enciclopédia colaborativa Wikipédia, foram apenas 8 mil.
Mandei uma mensagem de WhatsApp para meus pais perguntando quanto eles tinham desembolsado pela Barsa de minha infância, se é que ainda seria possível relembrar algo nesse sentido. “Ah, filho, perguntei aqui ao seu pai… Ele diz que não lembra quanto, só lembra que foi bastante”, foi a resposta da minha mãe, algumas horas depois, via mensagem de áudio.
Cresci ouvindo que aquele investimento havia sido suado, mas que era “pensando nos meus estudos”, “para me ajudar na escola” e que, por isso, “valia a pena”. Para mim, a Barsa era a metáfora perfeita de como, para meus pais que nunca tiveram acesso ao ensino universitário, a educação dos filhos deveria vir em primeiro lugar.
Pedi ao historiador Terres que me ajudasse a chegar ao preço da Barsa nos tempos áureos. Ele buscou a informação em anúncios de jornal e, com a ajuda de dados do Banco Central, concluiu que do ano de lançamento, em 1964, até o fim dos anos 1970, o valor era sempre algo entre R$ 12 mil e 14 mil, se corrigido para os valores atuais.
“Uma coleção Barsa em dezembro de 1964 custava 350 mil cruzeiros. Um fusca zero, 3,8 milhões de cruzeiros”, compara Terres.
Fiz o mesmo processo com anúncios dos anos 1980, quando meus pais compraram a Barsa, e cheguei às mesmas cifras. A enciclopédia havia custado muito mais do que o ordenado mensal do meu pai, à época funcionário do crédito agrícola do Banespa de Taquarituba. Mas ainda menos do que um carro zero ou um terreno, conforme insiste o imaginário comum.
Quando eu era criança, a Barsa eram os livros inacessíveis naquela estante. Ficavam no alto — tudo bem que a referência de altura é muito diferente quando a idade não permite termos muito mais do que 1,20 metro. Os bonitos livros de capa vermelha tinham que ser manuseados com extremo cuidado, “para não estragar”.
Eu olhava para aquela imensidão de conhecimento e, resignado, fantasiava expectativas. A de um dia ler todos os 130 mil verbetes — cheguei a tentar, na adolescência, mas fracassei no quarto ou no quinto livro. A mais simples dessas expectativas, contudo, era imaginar qual assunto eu pediria para meu pai ler, à noite, quando chegasse do trabalho.
E são dali algumas das melhores lembranças que guardo de minha infância. Entre tantas e tantas coisas, aprendi assim que Pedro Álvares Cabral, “navegante português e descobridor do Brasil, nasceu em Belmonte em 1467 ou 1468”, que pragmatismo “é antes de tudo um método, do qual decorre uma teoria da verdade”, que osso, “duro e resistente”, é algo “configurado para suportar o peso dos vertebrados”, “uma das mais surpreendentes aquisições evolutivas do reino animal”.
E, claro, que Zwingli, o tal último verbete do último livro, é somente o sobrenome de Huldrich. Que foi, segundo diz a enciclopédia, o “principal líder da Reforma na Suíça”, cujas “doutrinas influenciaram as confissões calvinistas”.