Arinos – As árvores curtas e tortuosas do sertão mineiro dominam a paisagem. Do ponto mais alto da Fazenda Menino, que há meio século se estendia por 90 mil hectares, no Noroeste de Minas, enxerga-se a imensidão de terra, rios e ribeirões que sofrem com a estiagem, vacas magras, buritis, cagaitas, barbatimãos e uma pista de pouso de 1,2 quilômetros, que corta como fenda o chão arenoso do cerrado. Esse cenário roseano, hoje ermo, alimentou há 50 anos um dos projetos mais ambiciosos do país – paralisado por disputas de terra, sufocado pela ditadura militar e, até agora, um capítulo oculto da história do Brasil.
Trata-se da construção de Marina, a única cidade projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012) no Brasil, irmã à sombra de Brasília. Um projeto audacioso assinado pelo arquiteto em meados de 1956, meses antes do início da construção da nova capital federal, encomendado pelo empresário Max Hermann, carioca de ascendência alemã que sonhava em construir uma cidade para 200 mil habitantes no Vale do Urucuia para homenagear a mulher, Marina Ramona.
Se Brasília teve o “corpo” traçado por Lucio Costa, Marina era Niemeyer de corpo e alma. O projeto, que previa o paisagismo de Roberto Burle Marx (1909-1994) e execução do engenheiro Paulo Peltier de Queiróz, trazia traços do idealismo do arquiteto carioca. Uma cidade sustentável, tão almejada nos dias atuais, implantada ao lado de uma colônia agrícola, valorizaria a circulação de pedestres e garantiria a seus moradores “a calma e a segurança tão raras nas cidades modernas”, como define o próprio Niemeyer no Memorial Descritivo da Cidade Marina. Além disso, a cidade seria ligada por asfalto à futura capital federal, distante 200 quilômetros, para a qual serviria de abastecimento.
Durante o governo do mineiro Juscelino Kubitschek (1956-1961), de quem Max Hermann era um entusiasta, anúncios de venda de terrenos ocupavam páginas inteiras nos jornais cariocas. Escritórios foram montados – inclusive em Belo Horizonte, no Edifício Dantés, no Centro –, sob a promessa de acesso às imensas riquezas e possibilidades da nova capital e da região do Vale do São Francisco.
Mas o projeto foi ruindo ao passo que a política brasileira trocava de mãos. Em 1962, a Ruralminas, antiga autarquia responsável pela reforma agrária no estado, considerou devolutas as terras de Hermann, adquiridas por meio de um espólio, o que deu início a uma batalha de décadas com estado e posseiros. A partir de 1964, com a ditadura militar, o projeto foi sufocado para sempre, uma vez que Hermann era financiador e ligado ao Partido Comunista, dando início a anos de repressão, prisões e presença de militares na Fazenda Menino.
Durante seis meses, a reportagem do Estado de Minas levantou documentos, arquivos de jornais, entrevistou historiadores e biógrafos, localizou herdeiros da família Hermann, visitou e falou com moradores da Fazenda Menino, que sofreram com a repressão da ditadura. “Meu pai deu murros em ponta de faca. Esse assunto só nos trouxe desgosto”, afirma Carmem Marina, filha de Max, morto em 1988. “Eles pediram para eu me vestir, porque estava marcada a minha morte para as 7h”, lembra-se Geralda de Brito Oliveira, de 76 anos, ex-administradora da fazenda, torturada pelos militares, para quem o terreno da fazenda servia de depósito de armas e ponto de passagem dos que lideraram o combate à ditadura, como Carlos Lamarca e Carlos Marighella.
Carmen e Geralda são personagens que ajudam a contar a história de Marina, uma cidade que morreu sufocada ainda menina, um sonho reprimido pela ditadura militar e enterrado sob o chão arenoso do sertão mineiro.