Bendito é o fruto entre as mulheres, ou melhor, entre as professoras. Nas salas de aula da educação infantil, homens são minoria e destoam num universo tipicamente feminino. Entre os 2.259 funcionários da rede municipal de Belo Horizonte que lidam com crianças com menos de 6 anos de idade, eles são apenas 12, ou seja, 0,5%. Sandro Vinícius Sales dos Santos e Leandro de Jesus Gomes, ambos de 32 anos, fazem parte desse seleto time que não se intimida diante da tarefa de trocar fraldas, dar banho e mamadeira, ninar até o sono chegar, descer no escorregador durante as brincadeiras e ensinar as primeiras letras.
Com 125 quilos distribuídos em 1,84 metro de altura, barba por fazer e “cara de bravo” – como ele mesmo se define –, Sandro abre um sorriso carinhoso sempre que entra no berçário da Unidade Municipal de Educação Infantil (Umei) Jatobá IV, na Região do Barreiro, onde trabalha com crianças com menos de 3 anos. Basta colocar os pés na salinha de repouso, espaço reservado para o sono de oito meninos e meninas, para que ele fareje algo estranho no ar: “Tem alguém de cocô aí”. É hora de tirar o bebê do colchonete, levá-lo para o berço e, com a destreza de quem tem experiência de sobra no assunto, limpá-lo com um lenço umedecido e colocar uma fralda novinha em folha.
“Sou pai, sempre cuidei da minha filha e me preocupo com a educação dela. Percebo que é difícil romper a barreira do senso comum de que cuidar de criança é tarefa feminina. As pessoas tendem a aceitar melhor a presença do homem na educação física e em atividades de apoio, mas ainda há preconceito quando se trata de dar banho, trocar fralda e alimentar os alunos. Passei num concurso público e, mesmo assim, tive que provar minha capacidade para exercer a profissão. Também vivi uma vigilância velada dos pais e dos colegas de trabalho e tive minha sexualidade colocada em xeque”, conta Sandro, hoje no segundo casamento e pai de uma menina de 10 anos.
Experiências como a de Sandro motivaram uma dissertação no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC Minas para responder uma pergunta básica: há lugar para o homem na educação infantil? Durante mais de dois anos, o pesquisador Joaquim Ramos entrevistou 47 pessoas e fez uma radiografia desse setor de ensino dentro nas instituições municipais de Belo Horizonte. A conclusão é de que, apesar da abertura do mercado para professores do sexo masculino na última década e de uma tênue mudança cultural para aceitação desses profissionais, tabus e preconceitos ainda são realidade nas salas de aula.
MUDANÇAS
Segundo Joaquim Ramos, a entrada dos homens na educação infantil ganhou força a partir de 2004, com a realização de concursos públicos na capital para preencher vagas em Umeis e em escolas municipais de nível fundamental com turmas infantis. Mas o início das mudanças remete à Constituição federal de 1988 e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996. “Essas legislações definiram de forma clara a responsabilidade do Estado com a educação infantil, o que tem pressionado o poder público a ampliar o atendimento e a fazer concursos públicos. Por meio dos concursos, os professores homens têm ocupado, legitimamente, os cargos de docentes”, explica.
No entanto, Joaquim ressalta que, no Brasil o cuidado e a educação de crianças pequenas em creches e escolas costuma ocorrer, culturalmente, como uma extensão do ambiente doméstico, marcado pela lógica da relação de mãe e filho. Por isso, é comum os homens assumirem o papel de educador infantil na rede pública de BH e encontrarem resistência por parte de colegas de trabalho, da direção da instituição e também das famílias das crianças, que demonstram estranhamento à presença masculina em espaços até então com predominância de mulheres.
Segundo a professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC Minas e orientadora da pesquisa, Maria do Carmo Xavier, essa resistência cultural faz com que os homens passem por um “período comprobatório” nas Umeis. “Há um julgamento moral do comportamento do professor, que aparece como uma ameaça às crianças na concepção da sexualidade. Ele esbarra com questões de pedofilia, abuso sexual, homossexualidade e tem de provar ser uma pessoa íntegra e idônea. Num período comprobatório, ele precisa desarmar o grupo em relação aos estereótipos do feminino e do masculino para ser incorporado”, avalia a especialista.
Enquanto isso, greve caminha para o fim
A greve dos educadores infantis pode ter fim na assembleia de hoje, que ocorrerá na Câmara Municipal, a partir das 14h. Isso porque o Legislativo recebeu da Prefeitura de BH o substitutivo ao Projeto de Lei 2.068/12, que atende o pedido da categoria e unifica as carreiras de educadores e professores, inclusive salários. Eles passarão a receber como os professores da rede municipal, de acordo com a formação – nível médio ou superior. Essa é a principal reivindicação dos grevistas. O PL em tramitação no Legislativo previa a mudança de cargo de educador infantil para professor da educação infantil, além de algumas garantias legais, como o tempo e o tipo de aposentadoria. Mas para o Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública Municipal (SindRede-BH), a proposta altera apenas a nomenclatura do cargo e não inclui os servidores no plano de carreira da educação municipal. A unificação nas carreiras de professores da educação básica – infantil, ensino fundamental e médio – se tornou tema de uma petição pública nacional que está na internet e já conta com 363 assinaturas.