Jornal Estado de Minas

Alunos da pós-graduação reclamam de abandono e autoritarismo na UFMG

- Foto: Arte EMMesmo sendo tratados como uma espécie de bilhete de loteria e possibilidade de ascensão profissional, os cursos de pós-graduação têm levantado demandas que vão além das tarefas acadêmicas. Alunos de mestrado e doutorado, que se queixam do abandono de seus orientadores e coordenadores, cobram também um olhar mais atento da reitoria sobre os problemas registrados na pós-graduação. Especialmente porque, como a vaga é tão disputada, os estudantes se dizem constrangidos, temendo revelar dificuldades enfrentadas ao longo do processo o que, segundo eles, é visto como vergonhoso pela comunidade acadêmica e tratado como atestado de fraqueza ou incompetência.

“O adoecimento não é novidade. Não é possível que a instituição não veja que os alunos estão adoecendo e que os professores estão sempre saindo de licença médica. Minha professora ficou sete meses licenciada. Deveria haver um acompanhamento melhor, tanto do aluno quanto do professor”, afirma uma das estudantes que cursaram o doutorado na federal. Sobre a experiência, ela resume: “Foi um horror. Lá não basta ser um aluno, ainda que dedicado.
Você tem que ser super-herói. São muitas exigências, muito tempo de dedicação, que nunca é suficiente. A universidade não quer saber do aluno. Só quer saber de notas e títulos”, disse, cobrando mais atenção para a situação dos estudantes na pós.

Outro desabafo vem de uma aluna que diz ter sofrido dupla pressão. Primeiro, ela adoeceu no mestrado em outra instituição de ensino de Belo Horizonte. “Tudo começou com os prazos muito curtos para tantos trabalhos e leituras, em um tempo que não era condizente. Passei a ter insônia, depois depressão.
Cheguei a fazer tratamento no Cersam (Centro de Referência em Saúde Mental da Rede SUS-BH). Eu não conseguia mais fazer nada. Minha mãe me ajudava a comer, porque eu parei até de ter reações. Em menos de quatro meses, passei por três psiquiatras e tomei três tipos de antidepressivos, até descobrir que tudo era efeito da pós”, lembra.

Atualmente, ela cursa o terceiro ano do doutorado na UFMG, mas ainda depende do apoio dos medicamentos. “Tem quatro meses que faço tratamento de enxaqueca nervosa. Continuo tomando antidepressivos e há dois meses essas medicações aumentaram. Quando falo para o psiquiatra que quero parar, ele não deixa, porque diz que eu não daria conta sem os remédio, pois toda vez que preciso cumprir um prazo, minha dinâmica muda. É como se eu saísse de mim mesma, me anulasse, especialmente porque sou bolsista e a pressão por notas altas e rendimento é ainda maior, sob risco de perder a bolsa”, disse a jovem, que também prefere o anonimato.
Para ela, fica a frustração da falta de atitudes da universidade. “A impressão que tenho é que, para eles, tanto faz. E esse é um processo que exige que eles se sensibilizem, tanto por causa de alunos quanto de professores”, afirma.

A jovem, que recentemente pensou em abandonar o doutorado, já traçou os rumos profissionais: “Vou concluir o doutorado, mas não quero continuar na vida acadêmica. Sou muito grata à oportunidade que tive, mas tenho medo de continuar. Não sei se consigo. E não quero adoecer de novo, porque a impressão que tenho é de que a gente estuda, estuda, estuda e nunca é suficiente. Fica sempre uma angústia muito grande, que eu não quero mais”, afirma.

Sobre a experiência do adoecimento, a estudante diz que atualmente consegue falar abertamente com os colegas, mas percebe que eles ainda têm muito receio. “Eu vejo que eles compartilham desse sentimento, mas não expõem com tanta clareza, por medo e vergonha. Fica sempre aquela máscara que a gente precisa de ser o bom, o melhor. A impressão que tenho é de que isso já se tornou algo institucionalizado.
É como se o sofrimento e a angústia fizessem parte do percusso, em vez de ser um processo bonito de aprendizado”, lamenta. Ela diz ainda que desconhece, no departamento em que estuda, qualquer tipo de atendimento psicossocial. E defende: “O adoecimento mental na pós deve ser discutido. Tem muitos alunos sofrendo com isso e ninguém faz nada”.

O LADO BOM
Ter o apoio do orientador diante das pressões da pós-graduação reduz os impactos negativos do processo, que podem levar ao adoecimento. Essa experiência, relatada por uma aluna do mestrado da área da saúde, evitou que um complicador levasse à piora de sintomas físicos de estresse. “Tive um problema no início do projeto, porque um lugar de que eu dependia para a pesquisa entrou de férias por um período longo, e isso me deixou muito angustiada, pois atrasaria meu trabalho. Comecei a ter refluxo, dores intensas nas costas e nódulos tensionais. Isso me exigiu quatro meses de terapia e medicamentos para tratar o refluxo”, relatou. Ela conta que o processo de adoecimento foi revertido com auxílio da orientadora, que ajudou a dar outros rumos à pesquisa, com estabelecimento de novos prazos.

Estresse em todas as fases do ensino


Cobranças, estresse e exigências, situações comuns na vida de jovens estudantes que em boa parte das vezes não estão capacitados para lidar com tamanha pressão, foram tema de discussão no câmpus Nepomuceno do Cefet-MG. De acordo com a psicóloga Cláudia Lommez, que atua na coordenação de política de assistência estudantil do Câmpus I da instituição, são muitos os fatores de adoecimento que podem acometer alunos de qualquer nível.
A especialista, que pesquisou o tema entre estudantes do ensino médio e técnico que ficam em período integral na instituição federal, explica que os transtornos mentais podem ser transpostos também para a graduação e pós-graduação.

“São muitas as pressões dentro de um ambiente em que há competitividade, com sobrecarga de conteúdos, além de prazos e metas exíguos a cumprir. O nível de exigência é muito grande, e isso muitas vezes resulta em alterações do sono, nas relações familiares e em outros contextos sociais. Pode ainda desencadear quadros de ansiedade, depressão e sensação de impotência”, afirma Cláudia, que foi palestrante do evento.

Ela afirma que, se comparadas as cargas horárias de instituições de ensino no Brasil com as de países de primeiro mundo, o tempo de estudo aqui é muito superior. ‘”Nossa carga horária é extensa demais. É humanamente impossível dar conta de todas as disciplinas e ter sucesso em todas elas”, diz. Segundo Cláudia, alunos têm feito uso de medicação, inclusive sem acompanhamento médico, e também abusado de álcool e maconha. A especialista afirma que o adoecimento mental não é regra dentro da instituição, mas que é um fator importante que tem sido discutido.

'Queremos nos antecipar às situações de adoecimento em decorrência de problemas mentais, com incentivo à qualidade de vida, enfrentamento à cultura de autoritarismo, individualismo e do produtivismo na academia" - Cláudia Mayorga, pró-reitora adjunta de Extensão da UFMG - Foto: UFMG/Divulgação

UFMG promete apuração de queixas e auxílio


Depois de identificar casos de adoecimento mental de alunos, professores e técnicos dentro de sua comunidade acadêmica, a Universidade Federal de Minas Gerais passou a discutir o tema e já trabalha com uma política de acolhimento e assistência voltada para esse público. De acordo com a pró-reitora adjunta de Extensão, Cláudia Mayorga, a rede de saúde mental tem trabalhado com esse objetivo desde 2014 e, em maio deste ano, concluiu um relatório que indica as diretrizes para implantação de ações práticas, como acolher as dificuldades de alunos e professores, inclusive da pós-graduação, além de intervenções junto às coordenações do mestrado e doutorado.

Um primeiro encontro com esses setores já ocorreu e para os próximos dois meses está agendada nova reunião, para que cada coordenação apresente ações concretas de acolhimento das demandas individuais ou coletivas relacionadas a sofrimento mental. O documento está sintonizado com a Política de Direitos Humanos da UFMG e tem atuação em consonância com as práticas do Sistema Único de Saúde (SUS). “Todo nosso esforço está voltado para transformar em medidas práticas tudo o que está desenhado no relatório, que tem diretrizes concentradas na construção de uma política continuada e permanente. Queremos nos antecipar às situações de adoecimento e afastamento do ambiente acadêmico em decorrência de problemas mentais, tudo isso com incentivo à qualidade de vida e enfrentamento à cultura de autoritarismo, individualismo e do produtivismo na academia”, afirma Cláudia.

A pró-reitora confirma as situações de adoecimento e reconhece algumas das causas desse problema. “Os relatos são, como regra, voltados para a pressão dos prazos, à cultura de que ‘não se pode falhar’, e à questão da meritocracia. Na pós, isso é ainda mais evidente que na graduação”, afirma Cláudia. Um dos motivos para esse quadro são as exigências dos programas. “Os critérios de avaliação do programa, cobrados pelas agências de financiamento, são muito rígidos e um deles é o tempo de defesa da tese e o número de publicação ao longo do curso. Mas o aluno pode ter um imprevisto ao longo do trabalho ou um problema de ordem pessoal”, destaca.

Em outra ponta, a pró-reitora sustenta que os cortes orçamentários e a crise econômica no país criaram um cenário de instabilidade profissional que também perturba. “Os alunos passaram a se questionar sobre os motivos para investir em uma qualificação se os concursos estão suspensos e há incertezas sobre a política trabalhista. Eles se perguntam, numa perspectiva de médio e longo prazos, que possibilidades terão de trabalho”, afirma Cláudia.

AFASTAMENTOS Segundo ela, outro desafio é vencer, dentro desse quadro tratado por ela como grave, os efeitos do adoecimento. “Existe também uma cultura de resolver com uso de medicamentos e internação, o que faz com que a pessoa se afaste do seu local de trabalho, de suas atividades. Como instituição, não somos a solução, mas estamos trabalhando para contribuir com essa mudança, tentando melhorar o ambiente de trabalho e de estudo”, disse. Segundo Cláudia, alunos que enfrentam dificuldades em seus processos de ensino dentro da UFMG podem ser acolhidos nos núcleos de atenção psicossocial da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) existentes nas unidades e também na administração central..