Ignorando o comando da professora para que guardasse o telefone celular, o aluno do 8o ano continuou às gargalhadas com os colegas exibindo o conteúdo das redes sociais. Repreendido mais de uma vez, recusou-se a dirigir-se à coordenação da escola até que fosse chamado o segurança para “escoltá-lo”. Aos berros, ameaçou a professora, que passou a viver intensa crise de ansiedade a cada retorno à sala de aula.
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Brasil é campeão em atos violentos de alunos contra professoresUso abusivo de Ritalina para aumentar concentração é perigo para a saúdeDe caso em caso, é assim que a mãe, logo no segundo dia de aula de 2017, vestindo saia comprida para esconder as canelas roxas dos chutes que levava da filha de 10 anos que não podia ser contrariada, foi tirar satisfações com a professora da escola particular de classe média de Belo Horizonte. A mãe queria deixar claro que não ficara satisfeita com a sinalização de limites apresentados à menina, que deveria ser tratada como “cliente” ao estilo demandas atendidas ou o dinheiro de volta.
“Quando o aluno se coloca como cliente, há inversão na hierarquia: o professor passa a ser prestador de serviço. E um prestador de serviço não educa, não frustra, não exige nem demanda esforço.
Mas se do lado dos professores a reclamação da falta de limites dos pupilos e desqualificação da autoridade da escola e docentes pelas próprias famílias é recorrente; as queixas são igualmente intensas por parte dos estudantes. “Eles não se sentem reconhecidos como sujeitos de um corpo, sujeitos de uma voz, quando não são discriminados por sua origem e ou por dificuldade de aprendizagem”, considera Juarez Dayrell, pesquisador e professor da Pós-Graduação da Faculdade de Educação e membro do Observatório da Juventude, núcleo de ensino , pesquisa e extensão da UFMG.
Foi assim que certo aluno da escola pública, premiado em olimpíadas de matemática, acabara de perder os pais e, vivendo com o irmão da mãe, surpreendera-se numa manhã com nova e dramática perda: o corpo do tio assassinado estava atravessado na sala da casa. Profundamente triste, quando uma semana depois finalmente o jovem conseguiu retornar à escola, foi duramente repreendido por ter estado ausente.
Sem sequer ter tido as suas razões indagadas, ao afastar bruscamente a mão da coordenadora, o aluno protagonizou mais um drama que empurraria a sua vida para um novo fosso: o lápis que carregava atingiu o olho daquela que o inqueria. “Esta é a faceta do problema que aponta para uma escola que escuta pouco, que desconsidera a interlocução com os alunos, não lhes atribuindo espaço para emitir opinião e falar de sua própria vida”, avalia Juarez Dayrell.
Escola, professores, alunos, família, todos atores envolvidos no processo educacional, que deve estar, segundo a psicóloga educacional Flávia Fialho, fortemente comprometido não só com o aprendizado de conteúdo formal, mas com a socialização da criança e a formação de um cidadão. “Há alunos que desobedecem e que agridem. Há professores que não respeitam as diferenças e diversidade entre os seus alunos.
Autoridade tem de ser construída
A quem apontar o dedo pela tensão e conflitos de uma relação tão complexo? “Não podemos cair na armadilha de buscar culpados. São os professores, os alunos, a família? Enquanto buscamos culpa entre esses atores, corremos em círculo. A autoridade na escola precisa ser construída, com a participação de alunos, professores, familiares, funcionários, dando sentido às regras partilhadas e aos limites, deveres e direitos de cada um”, assinala o pesquisador e professor da Pós-Graduação da Faculdade de Educação e membro do Observatório da Juventude, núcleo de ensino, pesquisa e extensão da UFMG, Juarez Dayrell.
E a autoridade é mais uma variável, de um conjunto de conflitos intergeracionais. “Há quatro décadas, a autoridade era dada pela função desempenhada em certas atividades. Assim, o fato de ser professor, independentemente de ser bom ou não, já conferia autoridade. Para as novas gerações, a autoridade é construída no dia a dia. Não está dada”, considera Dayrell, lembrando que qualquer relação humana traz conflito, que não é necessariamente algo negativo, já que, ao superá-lo, se torna fator de crescimento.
Opinião semelhante manifesta Eliane Vilassanti, coordenadora de projetos especiais da Diretoria de Políticas intersetoriais da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, doutora especializada na configuração do clima escolar nas escolas públicas: “Conflitos escolares sempre ocorreram ao longo da história da educação escolar.
“Estamos em permanente e intenso processo de transformação social com o avanço das comunicações e tecnologias.A relação pedagógica exige a autoridade do professor para orientar os processos de exercícios e comportamento. Mas essa autoridade, se antes era dada pelo cargo, deve hoje ser conquistada na relação cotidiana”, diz Vilassanti, lembrando que essas questões geracionais são ainda mais desafiantes quando se lida com adolescentes, que precisam do afastamento da autoridade do adulto para que testem a sua autonomia. “Por isso, no terceiro ciclo, do ensino fundamental e do ensino médio, as ocorrências de conflitos são maiores”, diz ela.
A escola é depositária de vidas em formação, que para lá transportam os dados de sua realidade e de seu contexto de vida, avalia Juarez Dayrell. Nesse sentido, esse espaço social da diversidade reproduz as tensões, desigualdades e as contradições da sociedade. Segundo as estatísticas da Guarda Municipal de Belo Horizonte, entre janeiro de 2015 e janeiro de 2018, foram registradas nas 174 escolas públicas da capital mineira 1.946 ocorrências, entre as quais, 132 por desacato, (6,8%), 190 (9,8%) por pertubação do trabalho ou sossego alheio, 384 por ameaças (19,7%) e 573 (29,4%) por chegarem às vias de fato, seja com colegas ou com professores.
A articulação entre escola, famílias e alunos em uma instância de poder no interior das escolas – os colegiados – são, na avaliação do pesquisador Juarez Dayrell o espaço apropriado para a construção do diálogo em torno do projeto pedagógico, a construção da autoridade e a superação dos conflitos. “É nesse espaço autônomo, com a participação e representação de todos os atores, que idealmente os conflitos e impasses podem ser resolvidos”, assinala, considerando que, na maioria das vezes, a judicialização dos conflitos é uma demonstração na falta de confiança na capacidade da instituição de ensino em resolvê-los.
Ensino médio
É no ensino médio onde estão os maiores índices de evasão escolar e repetência. Segundo dados do Censo Escolar, nos primeiros anos do Ensino Fundamental a evasão escolar em Minas Gerais é baixa, em torno de 0,3%; salta para em torno de 3% nos anos finais do Ensino Fundamental; e para quase 8% no Ensino Médio. Também as taxas de reprovação sobem de 7,4% no Ensino Fundamental para 13% no Ensino Médio. Além disso, tanto na escola pública quanto na particular, o desempenho de alunos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) chega a cair, em média, entre 40% e 60% entre os primeiros anos do ensino fundamental e os últimos do Ensino Médio.
Espaço para mediação
Superar os conflitos escolares depende da construção de espaços de mediação nas escolas, que permitam ampliar o sentimento pertencimento de alunos, ou seja, o sentimento de que fazem parte de um coletivo em relação ao qual têm direitos e deveres, responsabilidades e podem contribuir. Segundo Eliane Vilassanti, coordenadora de projetos especiais da Diretoria de Políticas Intersetoriais da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, um dos projetos estratégicos da Prefeitura de Belo Horizonte trata da implementação de um plano de segurança escolar e da implantação de uma câmara de mediação de conflitos nos colegiados.
Fruto do Termo de Cooperação Técnica entre Estado de Minas Gerais, município de Belo Horizonte, Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e Faculdade de Direito da UFMG, foi lançado na semana passada um novo programa que representa mudança de paradigma no tratamento dos conflitos e casos de violência verificados nas escolas. Elaborado com base nos preceitos da justiça restaurativa, o programa – batizado de Nós – pretende solucionar conflitos de comportamento no âmbito escolar envolvendo infrator, vítima e comunidade, como alternativa ao encaminhamento à Justiça. Para isso, serão implantados Núcleos de Orientação e Solução de Conflitos Escolares (Nós) ou espaços correlatos nas escolas municipais e estaduais da rede pública de ensino, além de capacitados seus integrantes.
A nova forma de tratar os conflitos registrados no ambiente escolar dependerá da instalação de núcleos integrados por representantes da comunidade escolar, indicados pelas diretorias das escolas, entre professores, supervisores, auxiliares, pais, alunos, ex-alunos, entre outras pessoas relacionadas à rotina de cada escola. Inicialmente, cinco integrantes de cada escola receberão a capacitação, com previsão de atendimento de 120 escolas estaduais e de 120 escolas municipais de Belo Horizonte. “Propomos que a própria escola promova o diálogo e atue diante dos conflitos que possam ocorrer nos seus espaços, evitando, sempre que possível, o encaminhamento à Justiça com soluções que muitas vezes não atendem ao interesse daquela comunidade”, afirma o promotor de Justiça da Infância e da Juventude de Belo Horizonte Márcio Rogério de Oliveira.
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