O país que se propôs a ter todas as crianças de 4 e 5 anos na escola e ampliar o atendimento àquelas com idade de 0 a 3 patina em seus objetivos e deixa uma dívida cara com a infância. O primeiro ponto deveria estar resolvido há pelo menos dois anos. O segundo tem prazo até 2024, mas se mostra longe de um resultado efetivo. A universalização do ensino infantil e os avanços na creche são apenas o primeiro passo não dado de um pacote de 20 metas a serem cumpridas num período de 10 anos para o Brasil dar um salto na educação. Quatro anos depois da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), o cenário é de uma caminhada tímida e apenas um objetivo cumprido, conforme aponta relatório divulgado pelo Ministério da Educação (MEC). Minas Gerais também fracassou e conta ainda com milhares de crianças à espera de uma oportunidade em sala de aula. Em Belo Horizonte, o cumprimento das obrigações ocorre em meio a uma crise na educação infantil permeada por cortes de vagas e greve de professores para alcançar outra meta do plano: a equiparação de rendimentos com os docentes do fundamental.
Dados de 2017 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada mês passado, mostram o recorte mineiro. O estado tem 493 mil crianças na primeira faixa de idade – 6% delas ainda estão longe das salas de aula (29,4 mil). São pouco mais de 1,5 milhão de pequenos de 0 a 5 anos, dos quais quase metade estão fora da escola (717,5 mil ou 47,5%). O índice é puxado pela faixa etária de 0 a 3, que concentra a maior quantidade de meninos (1,15 milhão) e também em casa (688,1 mil ou 96%). A taxa de escolarização nos primeiros anos de vida é de apenas 32% e os motivos variam entre a falta de vagas em creche e a opção dos pais de não pôr o filho na escola.
A pequena Bianca Natiele Siqueira de Melo, de 4 anos, ficou fora da escola por um tempo. Não fosse a atitude desesperada da mãe, a dona de casa Camila de Moura Siqueira Melo, de 29, não teria conseguido uma vaga antes da idade obrigatória. Aos 2 anos, a pediatra da menina fez relatório endossado por psicóloga pedindo vaga na educação infantil por causa de problema grave de saúde. A expectativa era de que, em contato com outras crianças, as crises de desmaios, asma e pneumonia diminuiriam. E diminuíram. A garotinha não só melhorou a saúde, como desenvolveu os primeiros passos para a leitura e escrita de maneira brilhante. Toda orgulhosa de seu material escolar, faz questão de mostrar o capricho no para casa.
Mas, antes de chegar a esse ponto, Camila enfrentou uma via-sacra. Primeiro, procurou duas Umeis. Numa delas, foi para a fila de espera. Na outra, foi encaminhada para a Secretaria Municipal de Educação. “Falaram que eu deveria ir lá para analisarem se era realmente prioridade. Diante de tanto descaso, implorei por uma vaga a uma conhecida, dona de uma creche e, três semanas depois, minha filha entrou. Por mês, pagava ajuda de custo de R$ 100. Se tivesse esperado a Umei, a Bianca estaria dentro de casa até hoje. Nunca tive retorno”, conta.
Ao completar 4 anos, a menina foi transferida com os coleguinhas para uma turma de educação infantil aberta na Escola Municipal Sônia Braga da Cruz Ribeiro Silva, no Bairro Confisco, na Região da Pampulha, onde ela mora. Turmas de ensino da pré-escola foram abertas em colégios municipais este ano para conseguir atender à demanda da educação obrigatória para meninos de 4 e 5 anos. “Acho que esses ‘direitos’ são só no papel. Estou na fila de um ultrassom há quatro meses. Educação é igual saúde: uma prioridade para a qual ninguém dá importância. Estampam que há vagas, mas quando vamos lá, não conseguimos”, diz Camila.
RESPONSABILIDADE A educação infantil, de acordo com a legislação vigente, é atribuição das prefeituras. A Secretaria de Estado de Educação informou, por meio de nota, que apoia os municípios na organização e ampliação de suas redes de ensino para atendimento da educação infantil. A gestão atual reativou a Diretoria de Apoio à Educação Infantil, que tem por finalidade apoiar e orientar os municípios para o planejamento e desenvolvimento das ações dessa etapa escolar, em conformidade com o Plano Nacional de Educação.
Outra iniciativa é a formação de profissionais pelo Pacto Nacional de Aprendizagem na Idade Certa (Pnaic), realizada pela SEE em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação de Minas Gerais (Undime/MG). Como ação estruturante, o estado está propondo a criação de um Sistema Integrado de Educação em Minas Gerais (Siep-MG), que vai criar e consolidar mecanismos de integração, financiamento e pactuação de responsabilidades entre estado e municípios, para garantir o acesso à educação infantil, ensinos fundamental, médio e educação de jovens e adultos, além da educação especial e profissional, entre outras ações.
Ainda segundo a nota, outra ação estruturante é a Rede de Assistência Técnica para Monitoramento e Avaliação dos Planos de Educação, que tem por objetivo fornecer o apoio necessário para que os municípios mineiros desenvolvam todas as ações pertinentes aos Planos Municipais de Educação (PMEs) em consonância com o PNE, por meio de parceria entre a secretaria, o MEC e a Undime.
A Secretaria Municipal de Educação foi procurada para informar a taxa de escolarização das crianças que estudam na rede pública da capital, mas não deu retorno.
DESAFIO Das 20 metas do Plano Nacional de Educação (PNE), o Brasil conseguiu cumprir até agora apenas a de número 13. Ela estabelece 75% dos docentes da educação superior com mestrado ou doutorado e 35% de doutores no corpo docente da educação superior, até 2024. O primeiro ponto foi atingido desde 2015 e, em 2016, tinha taxa de 77,5%. O segundo foi alcançado em 2014, estando atualmente em 39,8%.
Três perguntas para
Thaiane Pereira, coordenadora de Projetos do Todos pela Educação
1) O que ocorreu no meio do caminho para o mais básico e logo de cara a primeira meta não tenha sido alcançada?
Apesar de o Brasil ter vencido diversos obstáculos do acesso à escola, infelizmente ainda não conseguimos garantir que todas as crianças de 4 e 5 anos estejam na escola. Ainda temos cerca de 500 mil crianças nessa faixa etária fora do sistema educacional. Isso ocorre porque, em grande medida, ainda não temos políticas focadas que consigam garantir acesso a pré-escolas em muitos municípios, principalmente nos grandes centros urbanos e zonas mais vulneráveis, onde a procura é grande e a oferta muitas vezes não acompanha a demanda. Esse deve ser, necessariamente o primeiro passo para a universalização. No entanto, é preciso que se observe também os aspectos como a garantia de uma infraestrutura adequada para o atendimento e, sobretudo, a qualidade dessa oferta. Um dos problemas é que, muitas vezes, apesar de garantir o atendimento, as escolas não conseguem garantir a adequação de suas práticas pedagógicas à idade das crianças e não têm um coordenador pedagógico específico para o atendimento a essa etapa.
2) Se nem a universalização de 4 e 5 anos ainda foi possível, o que podemos esperar do cumprimento relativo aos 50% de escolarização das crianças de 0 a 3?
Para além dos desafios do atendimento das crianças em idade escolar de 4 e 5 anos, o Brasil tem de enfrentar também o desafio de atender às crianças que estão na primeiríssima infância, de 0 a 3 anos. E nesse tema, enfrentamos grandes obstáculos no que diz respeito à expansão da oferta em creches, em que assim como na educação infantil, o público que mais necessita não tem sido alvo prioritário do processo de expansão das vagas. Para além do desafio das vagas, enfrentamos também o desafio de proporcionar um ambiente adequado para o pleno desenvolvimento dessas crianças, o que é crucial, já que é nessa fase que se inicia o desenvolvimento de estruturas e circuitos cerebrais, assim como de capacidades que permitirão o aprimoramento de habilidades mais complexas no futuro.
3) O que é preciso fazer?
É preciso que os governos, sobretudo os governos municipais, invistam nas creches, compreendendo seu importante papel social, tanto na vida das crianças, quanto das famílias e, principalmente, das mães que precisam retornar ao mercado de trabalho e necessitam de apoio nessa fase da vida. Nesse sentido, uma das prioridades deve ser a primeira infância, tratando o tema de forma articulada não somente com a educação, mas também com a saúde, assistência social e cultura, por exemplo.