Um plano para aportar R$ 102,6 bilhões nas universidades federais e muitas questões em aberto. Anunciado ontem pelo Ministério da Educação (MEC), o programa, batizado de Future-se, aposta na formação de um funding que envolve patrimônio da união, fundos constitucionais, leis de incentivos fiscais, recursos da cultura (Lei Roaunet) e até fundo de investimento imobiliário. O programa foi apresentado em linhas gerais, com a presença de reitores e vice-reitores de universidades e institutos federais de todo o país. Eles cobraram detalhamentos e reclamaram de não ter participado da elaboração do projeto. “Entendemos que as universidades têm autonomia de gestão garantida na Constituição Brasileira”, disse o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, Reinaldo Centoducatte. Como o plano será colocado em prática está entre as preocupações. "É preciso que se entenda que nem todas as universidades têm condições de implantar o que está sendo apresentado", afirmou o reitor da Universidade Federal de Itajubá, no Sul de Minas, Dagoberto Alves de Almeida.
Os recursos para o programa virão de quatro fontes, segundo o MEC. Com um modelo baseado em uma série de dispositivos do mercado financeiro, a "carteira de ações" para o plano inclui R$ 50 bilhões de um fundo de patrimônio imobiliário (a União concedeu lotes e imóveis ao ministério para que sejam cedidos à iniciativa privada e o recurso adquirido, convertido ao fundo), R$ 33 bilhões de fundos constitucionais, R$ 17,7 bilhões de leis de incentivos fiscais e depósitos à vista, R$ 1,2 bilhão de recursos da Cultura e R$ 700 milhões da utilização do espaço público.
Entre os tipos de parceria que poderão ser realizadas pelas universidades, está o aluguel de prédios, a criação de fundos patrimoniais, com doações de empresas ou ex-alunos para financiar pesquisas ou investimentos de longo prazo; ceder a venda de nomes de câmpus e edifícios a empresas e edifícios, como ocorre em estádios de futebol, além da possibilidade de criar ações culturais que possam participar de editais, por exemplo, da Lei Rouanet ou outros programas.
O programa foi apresentado pelo secretário de Educação Superior, Arnaldo Barbosa de Lima Junior, e também pelo ministro da Educação, Abraham Weitraub. O anúncio ocorre em meio ao contingenciamento de verbas das universidades federais, que começam a ter dificuldades para pagar até mesmo contas básicas, como as de luz. Com um vídeo com efeitos especiais e uma apresentação com linguagem muito próxima do mercado financeiro, Lima Junior falou por cerca de uma hora sobre o projeto que ele considera inédito. "As pessoas vão falar que é privatização, completamente errado", disse no início de sua fala.
PRESSA O governo destacou que, antes da implementação do programa, a proposta passará por consulta pública por um mês. "O MEC não vai impor nada", diz nota enviada pelo ministério. A adesão das universidades também será voluntária, já que elas continuarão a ter um orçamento anual, definido pela União. O ministro afirmou que tem pressa na aprovação do programa. "Existe urgência para se fazer isso o mais rápido possível. Estamos conversando com a Casa Civil para entrar em vigor este anol", disse. O ministro afirmou que tem “acordo de boca” com mais de 20 instituições para adesão ao plano.
Em coletiva à imprensa após a apresentação feita pelo governo, entretanto, o presidente da Andifes frisou que a entidade não participou da elaboração do projeto e que o debate precisa ser aprofundado.
"O governo está apresentando novas fontes de recurso para as universidades, quem é contra isso? Ninguém, nenhum dos reitores é contrário à proposta. Mas precisamos entender como vai se dar essa participação, como vai ser o contrato de adesão, quanto tempo e qual a parcela de recursos que cada instituição vai receber", disse presidente da Andifes, Reinaldo Centoducatte.
O presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior (Confies), Fernando Peregrino, diz que a adesão das universidades ao programa vai depender dos esclarecimentos que o MEC precisa apresentar nos próximos dias. Segundo ele, Weintraub não informou quanto tempo estima para que os recursos do fundo possam ser utilizados.
"O projeto mira no caminho certo, mas não explica como vai ser o processo de transição. Porque esse recurso não estará disponível imediatamente. Depois das doações das empresas, é preciso esperar a capitalização. Esse dinheiro não vai render agora, no melhor cenário econômico, vai estar disponível em uns cinco anos. Até lá como fica o financiamento das universidades?", questiona Peregrino.
Reitora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Cláudia Marliére concorda sobre a necessidade de discussões sobre o tema. “Nós, reitores, temos que fazer um estudo mais detalhado em relação às propostas. Neste momento, fica muito difícil de dizer o que acho. Até agora, só tivemos conversas informais sobre o assunto e a apresentação muito superficial.”
De acordo com o reitor da Universidade Federal de Itajubá, Dagoberto Alves de Almeida, as instituições estão na expectativa de receber o documento detalhado do Future-se. "Foi uma apresentação bonita (...) mas o que temos até agora é o que eles já liberaram na apresentação. Estamos esperando a documentação detalhada do projeto.". O vice-reitor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Cláudio Eduardo Rodrigues, também está na expectativa. "Apresentaram, até agora, as intenções gerais. Vamos esperar para fazer uma análise apurada", afirma.
ESTUDANTES Antes da apresentação, Lima Junior e Weitraunb foram interrompidos pelo presidente nacional da União Nacional dos Estudantes (UNE), Iago Montalvão, que estava na plateia. "Quero saber onde está o dinheiro das universidades, ministro?", perguntou ele do alto das cadeiras do auditório. Ao final de sua fala, Montalvão foi convidado a se sentar nas primeiras fileiras da sala para acompanhar a apresentação. Depois do encontro, ele se mostrou preocupado. “É um programa complexo que nos preocupa muito porque é uma forma de conceder à iniciativa privada uma parte da universidade", disse o estudante. "Os empresários vão entrar com dinheiro, com investimentos e vão ter o quê em retorno? As patentes? As pesquisas?", questionou.
O que diz a lei
O artigo 207 da Constituição Federal prevê que as universidades gozam de “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Isso significa que nem o MEC nem o setor privado podem, em tese, interferir nos planos de ensino, pesquisa e extensão determinados pelas reitorias. Já o artigo 213 define que as atividades de pesquisa, extensão e inovação nas universidades “poderão” receber apoio financeiro do poder público. Neste caso, o texto indica que o financiamento direto dessas atividades não é obrigatório.
Palavra de especialista
Carlos Roberto Jamil Cury, professor de pós-graduação em políticas públicas da PUC Minas
Redutor de autonomia?
Trata-se de um projeto ainda posto em consulta pública, por cinco semanas. A consulta geral deveria ser precedida de consulta aos reitores das universidades, pois são eles que lidam cotidianamente com o ensino, a pesquisa e a expansão. A proposta ainda prevê um projeto de lei, portanto, uma tramitação congressual. Nesse sentido, é preciso conhecer os detalhes, além do montante do fundo e os critérios de distribuição. Ter um gestor externo já constava da Lei 5.540/68, nos idos da ditadura. Essa possibilidade não consta do atual ordenamento jurídico. Já o financiamento da universidade pública é constitucional e não sei se tal proposta não se caracteriza como um instrumento mitigador da autonomia, em especial um certo condicionamento à crítica em relação aos fundamentos e aos resultados de projetos. A possibilidade de uma cooperação entre a universidade e o setor privado já consta da Lei de Inovação, a 10.973. Essa lei, de 2004, revista em parte em 2016, estimula parcerias entre as universidades e o setor produtivo. Por que uma nova proposta legal? A rigor, pode-se pensar que a proposta é uma forma de driblar o atual contingenciamento, que penaliza as universidades em áreas sensíveis como financiamento de projetos de pesquisa, bolsas de pesquisa, de estudo e outros compromissos cotidianos como luz e segurança. No fundo, está o teto de gastos da emenda 95. A proposta deverá caminhar lentamente, mas a situação atual é urgente. Dizem jocosamente que “água não é remédio para afogado”. É nesse intermeio que a universidade pode perder um investimento que contou com recursos públicos significativos. É bem provável que essa proposta seja discutida, semana que vem, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cuja programação já prevê um debate sobre o investimento nas universidades públicas. Não há futuro sem base sólida no presente. E caso se queira adesão, como proposto, é preciso que os futuros aderentes tenham vez e voto na constituição da proposta.
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