O drama é real: a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e cidades do interior já enfrentam o problema da falta d’água. Diante disso, a praga do desperdício e do consumo excessivo, antes já considerada descabida, se torna inaceitável. Num período de crise sem precedentes, no qual a chuva teima em não chegar e o racionamento entrou na ordem do dia, desinformação e falta de educação estão entre os grandes vilões. Somente na Grande BH, as perdas chegam a 40%, segundo dados da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa). Em 2014, a cada 10 litros de água potável entregues à população, quatro não foram consumidos ou usados de maneira regular, por causas diversas, de vazamentos no percurso entre a distribuição e o consumidor até ligações clandestinas (gatos). Para ajudar a combater esses abusos, o Estado de Minas lança hoje a campanha colaborativa #EssaÁguaNãoéSóSua, na qual os leitores poderão enviar, pelo WhatsApp, fotos, vídeos e denúncias de desperdício de água.
O EM percorreu durante quatro dias as ruas da capital, registrando como a população está deixando esse líquido tão precioso ir pelo ralo e encontrou de tudo, da tradicional mangueira usada para “varrer” calçadas até água de minas em prédios em construção descendo bueiro abaixo. Embora não precise ser especialista para constatar o óbvio, os flagrantes confirmam: qualquer atitude, por mais simples que seja, faz a diferença. Tomar um banho rápido ou adotar tecnologias para ter um lar ou empreendimento mais sustentável impactam no consumo e na fonte, afinal, as atitudes de cada um interferem na água para outras pessoas. Em dias de atenção máxima, a questão não é mais quanto se pode pagar pela conta, mas a quantidade disponível desse bem para toda a população.
Diaristas e donas de casa insistem em lavar áreas comuns de prédios e quintais, deixando encostada a velha e boa vassoura. Lavar carros uma vez por semana, com mangueira, também não sai dos maus hábitos do brasileiro, que incluem ainda banhos demorados, escovar os dentes ou lavar louça com a torneira aberta e descargas que jogam fora litros e mais litros de água. Zelador de um prédio na Rua Aimorés, no Bairro Funcionários, na Região Centro-Sul de BH, José Maria dos Santos, de 56 anos, continua a “varrer” corredores com mangueira e a aguar plantas no horário de pico do calor, entre 12h e 14h. Alertado sobre o risco de desabastecimento, ele foi categórico: “Já que está acabando, vamos, então, gastar enquanto tem”.
Numa obra na Rua Alagoas, próximo ao número 750, na Savassi, a água potável desce, literalmente, para o bueiro. O local tem uma mina, cuja água é direcionada a uma caixa. Quando ela enche, o excesso vai todo para a rua. Lavadores de carro aproveitam o que podem para o trabalho. Moradores e pedestres estão horrorizados com a situação, que perdura há pelo menos um mês. “Passo sempre por aqui e fico incomodada. É um absurdo ver algo assim em tempos como esse”, afirma a secretária Nancy Pereira Melo, de 48. Também na Rua Alagoas, no número 40, o mau exemplo vem do poder público. Na obra da Subestação BH Centro 2 da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), a água também tem como destino certo o bueiro e impressiona pela quantidade descartada para a rua. A empresa informou que vai apurar as causas do problema.
No Bairro Buritis, Oeste de BH, há desperdício até mesmo da água de caminhões-pipa usada para abastecer moradores sem o recurso hídrico da Copasa. Na quinta-feira, um dos caminhões solicitados na Rua Professora Bartira Mourão estava em péssimo estado de conservação. Como o ponto da rua onde fica o edifício é muito íngreme, pelo menos três buracos na estrutura do tanque com capacidade para 10 mil litros fizeram a água jorrar por 15 minutos. Um furo em uma das mangueiras usadas no serviço também significou a perda de parte da água solicitada pelos moradores.
Envie fotos ou vídeos de flagrantes por meio do WhatsApp do Estado de Minas no número (31) 8502-4023.
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), serviço ligado ao Ministério das Cidades, mostram que o desperdício aumenta a cada ano e também tem a participação do poder público. Em 2010, 29,15% da água foi perdida antes de chegar a domicílios em Minas Gerais. As perdas ocorrem por vazamentos em adutoras, redes, ramais, conexões, reservatórios e outras unidades operacionais do sistema. Em 2013, esse índice ficou em 33,5% no estado. Em Belo Horizonte, o ranking de saneamento feito ano passado pelo Instituto Trata Brasil revelou perdas de distribuição de 35,82%. E a própria Copasa admite um percentual de 40% na região metropolitana.
PREVENÇÃO Doutora em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre, a professora da Universidade Fumec Renata Felipe Silvino tem um exemplo assustador de como os sistemas naturais estão comprometidos. Para a tese de doutorado, ela pesquisou a região cárstica de Lagoa Santa, na Grande BH, onde todas as lagoas secaram num período de apenas dois anos. O estudo mostra como a maior delas, a Sumidouro, tinha água em 2012, começou a secar em 2013 e ficou totalmente coberta por vegetação em novembro do ano passado. Para ela, problemas como esse passam pelo comportamento do cidadão e pela gestão hídrica por parte dos governos. “Isso é uma novidade para nós, mas, para os gestores públicos, com certeza não. Faltou saber lidar com a questão.”
A bióloga acredita que, entre as ações, deve ser contemplada também a prevenção, com preservação em torno das nascentes. A tendência de um mundo cada vez mais quente contrasta com as intervenções do homem na natureza. “Infelizmente, será preciso mudança de comportamento por parte das pessoas e dos gestores públicos, porque o quadro é de aquecimento global e de alteração climática”, diz. “Tudo indica que as próximas precipitações, no máximo, serão dentro da média da série histórica. Não há estimativas de que nos próximos anos as chuvas estarão acima da média. Isso quer dizer que a crise da água vai se perpetuar por mais anos, e deveremos, sim, estar preparados para isso.”