Caeté – A colheita dos últimos pés de couve na roça marca o retorno para casa de 30 lavradores de uma propriedade rural em Caeté, na Grande BH. Mas a jornada de volta não é comemorada nem era esperada. Com enxadas às costas e o olhar triste, os trabalhadores vão embora porque não há mais água suficiente no Ribeirão Ribeiro Bonito para cultivar os cinco hectares de hortaliças. “Há dois meses não temos mais serviço. Não dá para plantar nada. Agora, é só colher a couve e voltar para a minha terra, para ver se por lá arranjo mais serviço”, diz o lavrador Edvaldo Santos, de 25 anos, que saiu de Coluna, no Vale do Rio Doce, a 323 quilômetros da plantação onde vive há um ano. Além desta e de outras 22 propriedades rurais, o ribeirão é responsável por abastecer 80% da cidade, de 43 mil habitantes. Mas, no fim do ano passado, a vazão reduzida deixou pelo menos oito bairros com as torneiras secas, o que culminou em manifestações que fecharam rodovias com barricadas em chamas. Com a escassez, cada palmo do manancial é disputado entre produtores de hortaliças e os fiscais do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae), em um cabo de guerra que termina por deixar sem abastecimento propriedades rurais e urbanas, disseminando conflitos e desemprego.
A situação crítica do Ribeiro Bonito se arrasta desde 2007, quando a bacia recebeu do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) a Declaração de Área de Conflito (DAC). A partir de então, os usuários da bacia deveriam ter se organizado e contratado técnicos para definir um planejamento de uso racional da água, de forma a preservar os direitos de todos. Só assim é possível receber a outorga coletiva. Mas nem os consumidores se organizaram nem o poder público reagiu para obrigá-los a isso. Pelo contrário: o estado conhece a irregularidade, sabe que está sujeita a punições, mas pouco tem feito para que a situação mude.
Em vez do consumo sustentável e mediado, o que ocorre hoje nas propriedades é um uso completamente predatório dos recursos hídricos, com produtores rurais das cabeceiras sugando o máximo que podem com suas bombas, mesmo sem licença, e deixando desassistidos os que ficam curso abaixo. “Acaba que não sobra água para quem está na parte baixa do vale. A gente vê que o ribeirão está muito raso, porque tem muita gente puxando água. Nós não podemos usar, porque os fiscais do Saae não deixam, senão a cidade fica sem”, conta o lavrador Edvaldo.
Da nascente até a captação do Saae, a área da DAC do Ribeirão Ribeiro Bonito abrange 5.056 hectares. Neles, a equipe do EM identificou pelo menos 10 propriedades onde a água do manancial é usada irregularmente para irrigar uma extensão de 97,46 hectares, equivalente a 240 campos de futebol. A primeira fazenda que faz captação sem licenciamento fica a apenas 2,7 quilômetros do Centro de Caeté, pela Rua Antônio dos Santos. A distância não é o bastante para justificar que a atividade ocorra sem o conhecimento das autoridades. As plantações de alface, couve, abobrinha, vagem e feijão irrigadas clandestinamente podem ser vistas das estradas vicinais.
DESPERDÍCIO Para descobrir a origem a água, o jeito mais fácil é seguir as tubulações que abastecem aspersores por entre canteiros e porções aradas. Elas levam até dois poços tubulares que vêm do fundo de um vale e alimentam ininterruptamente dois grandes lagos. Para levar o líquido até os cultivos, é usada uma bomba com dois motores e vazão de 10 litros por segundo, capaz de encher uma piscina de mil litros em menos de 2 minutos. A farra da água que jorra sem licença é tanta que os agricultores não se importam com o desperdício, evidente nas grandes poças e nos lamaçais que escorrem volumosos nos caminhos abertos pelos tratores.
Apesar de a DAC do Ribeirão Ribeiro Bonito existir desde 2007, o mapeamento por satélite mostra que esse empreendimento é recente – cerca de dois anos de existência. Responsável pela plantação, o agricultor José Roberto Ventura diz ter arrendado o terreno de um fazendeiro que garantiu ter a outorga. Depois, admitiu não ter certeza. “Se não tem, está arranjando”, afirma. Ele também tentou justificar a situação dizendo estar fora da área declarada como de conflito, mas o mapeamento do Igam localiza claramente o terreno como parte do espaço sob restrição. Os impactos dessas atividades, o produtor mesmo conhece. “Tem muitas nascentes secando no vale. Aqui mesmo (na fazenda) tem uma que secou já faz uns três anos”, conta.
IRREGULARIDADE É CONHECIDA Descendo a estrada de terra por mais dois quilômetros chega-se a outra plantação que não tem outorga, mas irriga 25 hectares de hortaliças usando diretamente as águas do Ribeirão Ribeiro Bonito. De longe podem ser vistos os aspersores jorrando água em terras já cultivadas e em outras que ainda têm apenas brotos de couve. Um capataz da propriedade se negou a dar informações sobre o empreendimento ou contatar o proprietário. O diretor de Fiscalização da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), Gerson de Araújo Filho, admite que não só as duas propriedades vistadas pelo EM, mas outras 20 do vale não têm outorga para usar a água do Ribeirão Ribeiro Bonito, o que fazem de forma ilegal. “Todos esses usuários foram avisados de que deveriam se organizar para uma outorga coletiva. Foram chamados a se regularizar e não o fizeram. Por isso, estão sujeitos a multas e ao lacre do maquinário”, afirma. As multas para captação irregular variam de R$ 1,5 mil a R$ 20 mil.
Plantações de hortaliças sugam água da região de Caeté