Rio Doce começa a apresentar sinais de vida sob a lama de Mariana
Daniel Camargos - Enviado Especial
Renan Damasceno
Bacia do Rio Doce – José perdeu sete porcos; Amado e Leomar não podem mais pescar; quatro vacas e um bezerro de Rosa morreram; o barco de Walter ficou submerso pela lama; os pescadores do Espírito Santo só encontram piranhas em um rio que antes tinha até lagosta de água doce; e o índio Apurinã não pode mais pescar nem caçar capivaras e pacas na reserva Krenak. Ao percorrer as comunidades à beira do Rio Doce, o cenário é desolador. Sobram lamentos e prejuízos, mas o futuro pode ser menos enlameado do que parece. Pesquisadores conseguem ver na força da natureza uma possibilidade de o rio voltar à vida.
Completa um mês amanhã que a lama oriunda do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, na Região Central de Minas, chegou ao Oceano Atlântico, pela foz do Rio Doce, deixando para trás um rastro de destruição que comprometeu de microrganismos a cidades inteiras, atingindo 1.775 hectares de mata nativa, segundo o SOS Mata Atlântica, matando ao menos 11 toneladas de peixes, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e tingindo de marrom 679 quilômetros de rios.
“Não tem como recuperar o que foi perdido. O que estamos discutindo é como estabilizar esse processo para que não continue gerando dano”, afirma Marcus Vinícius Polignano, coordenador do Projeto Manuelzão. “A vegetação da bacia já vinha sendo castigada por causa da atividade agrícola, pecuária, pastagem, mineração. O primeiro passo é avaliar. Depois, tem que se pensar em recuperar toda a bacia”, diz Márcia Hirota, diretora-executiva do SOS Mata Atlântica.
AFLUENTES A recuperação vai depender da preservação de seus afluentes. “A Bacia do Rio Doce é como um telhado, com os afluentes escorrendo água para uma calha que está suja. Por isso preservá-los é tão importante”, exemplifica o biólogo Fábio Vieira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A reportagem do Estado de Minas percorreu quase 1 mil quilômetros desde o início do Doce, em Santa Cruz do Escalvado, até a sua foz, no Espírito Santo. Enquanto pesquisadores avaliam o tamanho dos estragos, a população olha desolada para o rio de aspecto barrento se perguntando quando terá peixe fresco para comer.
Baixo Guandu (ES) – A intensa dinâmica fluvial e as primeiras chuvas de dezembro começam a devolver, aos poucos, a vida ao Rio Doce. Embora o nível de turbidez ainda esteja longe do ideal, peixes menos seletivos – sobretudo as espécies exóticas mais resistentes – iniciaram o caminho de volta para a calha. Pesquisadores e moradores da região mais próxima à foz já detectaram a presença de peixes, mas a realidade ainda é muito longe da diversidade existente antes da tragédia.
“Agora, só tem piranha”, lamenta o pescador Romildo Lopes Rosa, do distrito de Mascarenhas, em Baixo Guandu, no Espírito Santo. “Ia para o rio todo dia às quatro da manhã. Ficava até a hora do almoço e voltava à tarde. Pescava curimba, dourado, cascudo e lagosta. Aqui tem lagosta de até 10kg”, afirma.
Todos os pescadores da cidade estão sem trabalho desde que a lama de rejeitos de mineração matou as diversas espécies de peixe e crustáceos que eram o sustento deles e principal atividade econômica do distrito. Na manhã de quarta-feira, um grupo de 10 pescadores estava sentado na calçada, em frente a um bar. Mesmo que os peixes estejam voltando ao rio, eles não têm coragem de comê-los. “A gente não sabe o que tem nessa lama e nem o tanto que isso faz mal”, afirma o também pescador Givanildo Costa.
Eles estão insatisfeitos também porque não receberam indenização pelo trabalho interrompido. Givanildo afirma que pretende, inclusive, articular com os moradores de Mascarenhas paralisar a ferrovia Vitória-Minas da Vale (uma das proprietárias da Samarco), que passa pelo distrito. No início de novembro, o prefeito de Baixo Guandu, Neto Barros, paralisou a ferrovia com máquinas da prefeitura para forçar uma negociação com as empresas responsáveis pela Barragem do Fundão.
LENTO RETORNO Segundo o pesquisador Fábio Vieira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em ictiofauna do Rio Doce, espécies mais resistentes, como carás, lambaris, bagres e traíras, serão as primeiras a repovoar a calha principal. “O Doce já era um rio extremamente judiado, com espécies ameaçadas. Mas com a dinâmica do rio, mesmo nas condições atuais, já é possível detectar peixes pouco mais de 40 dias depois (da tragédia em Mariana). E a condição só tende a melhorar, porque a natureza é muito dinâmica”, explica Vieira.
O pesquisador destacou a importância dos cuidados com os afluentes para a recuperação. “Falar que o Rio Doce está morto é um entendimento errado do funcionamento da bacia, que tem mais de 83 mil quilômetros quadrados. Com as chuvas e, chegada da água dos afluentes, ele vai limpando. Claro que é praticamente impossível voltar o Rio Doce ao que era, mas pelo menos o teremos em condição melhor em um espaço de tempo não tão longo como muitos previam”, explicou Vieira.
Atualmente, oito das cerca de 70 espécies descritas sofrem risco de extinção: andirá, surubim-do-doce, curimatã, timburé, piabanha, pirapitinga, lambari-bocarra e o cascudinho. Embora o risco de extinção por causa do desastre seja descartado pelos pesquisadores, a situação de alguns desses peixes deve se agravar, já que muitos deles são naturais da parte alta, a mais atingida pela lama.
RECUPERAÇÃO “O surubim do doce, por exemplo, existe no Rio Piranga, acima de Ponte Nova, e no Rio Santo Antônio. É um peixe que já não vivia na calha principal”, lembra Vieira, preocupado com a situação dos peixes que povoam os afluentes que se encontram para formar o Doce. “Neste momento, da represa de Candonga para baixo, já é possível ver peixes. Para cima, a possibilidade é muito pequena. Mas, pensando no passo a passo da recuperação, é importante frisar que o Rio Doce tem peixe e que não está morto, como muita gente acreditava.”
Destruição em cadeia
De microrganismos a peixes exclusivos da Bacia do Rio Doce, passando por pássaros e mata nativa, o estrago causado pelo rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, há 45 dias, em Mariana, causou danos incalculáveis. O impacto, segundo especialistas, vai muito além do que a própria ciência conhece e calcula. Dezenas de espécies de peixes, por exemplo, podem ter tido a população reduzida consideravelmente antes mesmo de serem descritas e estudadas, garante o professor Daniel Cardoso Carvalho, do Laboratório de Estudo da Conservação da PUC Minas.
Em pesquisa desenvolvida nos últimos anos, profissionais do laboratório, em colaboração com o Museu de História Natural, encontraram variação genética considerável em cerca de 25% das 72 espécies analisadas da Bacia do Rio Doce. “Na pesquisa, com mais de 300 indivíduos, observamos que muitas dessas espécies que são consideradas uma só, na verdade, são várias. São espécies que chamamos de crípticas, que podemos perder sem mesmo conhecê-las por completo, antes de serem descritas”, explica Carvalho.
No estudo, os pesquisadores usaram técnica de identificação molecular chamada DNA barcode, na qual são sequenciados partes dos genes dos indivíduos. A partir disso, é possível analisar as diferenças genéticas entre indivíduos da mesma espécie. O trabalho de coleta dos dados foi concluído semanas antes do acidente com a barragem de minério. “Estamos falando de peixes, mas pense em outros grupos: microrganismos, camarões. É uma grande biodiversidade, com cadeia alimentar complexa. Nunca vamos saber ao certo o que perdemos.”
A base da cadeia alimentar também foi bastante comprometida. A turbidez da água do Rio Doce precisa melhorar pelo menos 200 vezes para que os fitoplânctons, microalgas que servem de alimento para pequenos organismos, voltem a fazer fotossíntese, garantindo a sobrevivência de outros seres vivos. Segundo o biólogo André Cordeiro Alves dos Santos, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), o ideal é que a unidade de turbidez esteja abaixo de 100 para que haja penetração de luz de dois a três metros de rio.
BARRO “O aumento da turbidez leva à menor penetração da luz na água, dificultando o acesso de microrganismos que dependem dela para fazer fotossíntese. Em rios maiores, como o Doce, esses animais são essenciais, já que há menos alimentos que vêm de fora, como folhas e galhos de árvores. Com a redução dessas microalgas, se reduzem alimentos até chegar aos peixes, que estão no topo da cadeia. É uma reação que afeta toda biodiversidade do rio”, explica André.
Os últimos dados do Serviço Geológico do Brasil (CRPM) mostram que o Rio Doce tem atualmente cerca de 2 mil unidades de turbidez – no início de novembro, a água recolhida no manancial apresentou até 597,4 mil, sendo que números acima de 50 NTU já requerem filtração. “Para que ele volte a produzir vida é necessária uma redução muito grande da turbidez. A gente não sabe quando isso vai acontecer de novo. Porque, além da turbidez do rio, tem aquela lama nas margens, principalmente na cabeceira, que, com a chuva, tende a descer, voltando a aumentar a turbidez.”