Jornal Estado de Minas

Tragédia brasileira

Rejeitos da Barragem do Fundão ameaçam ecossistema da Amazônia mineira

Ponte Queimada, na área de amortecimento da reserva, foi um dos locais mais afetados pela lama de rejeitos - Foto: Beto Novaes/EM/D.A Press

"O Rio Doce corria majestoso entre as escuras florestas que o margeiam. Completa calma reinava em toda a natureza e o silêncio do ermo era apenas perturbado pelo canto de umas pequenas cigarras e pelo barulho dos remos que serviam meus canoeiros. Solidões vastas assim têm qualquer coisa de importante e eu me sentia humilhado diante dessa natureza tão possante e austera" (Auguste de Saint-Hilaire, naturalista e viajante francês, em 1818)

Daniel Camargos

Enviado especial

Marliéria, Pingo d’Água e Governador Valadares – Se Saint-Hilaire visitasse hoje o Parque Estadual do Rio Doce – onde o texto abaixo está cravado em uma placa no mirante com vista para a maior e mais profunda lagoa natural do Brasil – o francês, autor de diversas obras sobre os rios brasileiros, se sentiria humilhado não pela grandeza da natureza, mas pelos estragos causados pela lama de rejeitos da Barragem do Fundão, da Samarco, na fauna e flora do parque, a mais extensa reserva de mata atlântica de Minas e conhecido como a Amazônia mineira.

O Estado de Minas teve acesso com exclusividade ao relatório técnico elaborado pela gerência do parque que aponta o impacto da lama na ictiofauna (peixes), avifauna (pássaros), mastofauna (mamíferos) e nos recursos hídricos. O documento foi entregue ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e está com o promotor Leonardo Castro Maia, da promotoria de Governador Valadares. “O relatório está nos autos e serão adotadas providências”, afirma o promotor, que não detalha quais medidas, pois diz que outros estudos estão sendo elaborados e também serão anexados aos autos.

O Rio Doce margeia a área da reserva – de 36 mil hectares – e faz parte da zona de amortecimento do parque, sendo essencial para a vida da fauna e flora. Entre os sistemas, o mais impactado foi a ictiofauna. O relatório sustenta que houve mortandade geral no trecho da reserva, assim como em todo o manancial. Além disso, a lama induziu a migração de peixes para afluentes do Rio Doce, o que pode comprometer a sobrevivência das espécies.

As aves, principalmente as aquáticas, sofreram impactos no forrageamento (busca por alimentos) e na reprodução.
O consumo de peixes mortos e, possivelmente, contaminados pelas aves aquáticas da unidade de conservação pode interferir na reprodução delas e gerar malformação dos ovos, além de comprometer órgãos e estruturas responsáveis pela reprodução. Outro problema destacado é o comprometimento no fluxo das aves migratórias para o parque, que serão induzidas a buscar novas áreas.

Outro grupo afetado foi o dos mamíferos, principalmente as lontras e capivaras, que morreram no ápice da passagem dos rejeitos de minério. O relatório destaca ainda que esses animais estão impossibilitados de atravessar o rio, o que pode torná-los sedentários, e que a lama pode se tornar uma espécie de muro entre a área do parque e a zona de amortecimento, impedindo a entrada de animais na reserva.

O relatório alerta também que outros animais silvestres podem ter sido contaminados com metais pesados. Vale destacar que o parque é abrigo para espécies em extinção, como a onça-pintada, o macuco e o mono-carvoeiro, o maior primata das Américas (veja arte).

A lama que transbordou do Rio Doce atingiu o afluente Ribeirão do Belém, que passa pelo interior da unidade de conservação, e prejudicou toda a fauna do parque. Além disso, o assoreamento do Doce foi acentuado e a margem que divisa com o parque foi degradada. “O que compromete o substrato do rio e seu ambiente bentônico (que vive associado ao substrato), que, pela presença dessa camada inerte, pode impedir o uso e reprodução da ictiofauna anteriormente existente”, pontua o relatório. Os rejeitos de minério de ferro também podem afetar a floração de espécies florestais e impactar invertebrados com forte interação ecossistêmica.

- Foto: Arte EM

RARIDADEOs impactos são inegáveis.

A fauna terrestre do parque transita entre a reserva e as áreas do entorno, incluindo o Rio Doce”, destaca o presidente da Fundação Relictos, José Angelo Paganini. A fundação foi criada há 20 anos para defender a reserva, e Paganini ressalta que no Brasil não existe um ecossistema semelhante ao do parque, que abriga a terceira maior reserva lacustre (lagoas) do planeta.

São 40 lagoas naturais, entre elas, a Dom Helvécio, também conhecida como Lagoa do Bispo, com 6,7km² de área e 32,5m de profundidade, a mais profunda do país. Os estudos do plano de manejo indicam 325 espécies de aves, o que corresponde a 82% das aves registradas para o Vale do Rio Doce e 47% para o bioma mata atlântica, além de contabilizar 77 espécies de mamíferos na reserva ambiental.

O gerente técnico do Parque do Rola-Moça, Marcus Vinícius Freitas, trabalhou por 20 anos como gerente do Parque Estadual do Rio Doce e considera a reserva uma joia rara. “O bioma da mata atlântica é o segundo mais afetado do mundo e perde apenas para as florestas de Madagascar. O Parque do Rio Doce abriga várias espécies em extinção e é caracterizado pelo complexo lacustre”, destaca Marcus Vinícius.


DESBRAVADOR FRANCÊS

Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), naturalista e viajante francês, percorreu vários estados brasileiros em suas viagens no século 19. Em 1818, viajou pelo litoral capixaba até a nascente do Rio Doce. O livro Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce (Itatiaia), publicado originalmente em Paris, em 1833, detalha a Bacia do Rio Doce e os desafios da travessia e alertava, na época, para as queimadas que destruíam a mata virgem.


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