Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno
O Brasil convive, rotineiramente, com indicadores absurdos de violência e criminalidade. A fragmentação das ações é a causa dessa tragédia anunciada. Nesse artigo, os pesquisadores Renato Lima e Samira Bueno, integrantes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam o sistema compartilhado que funcionou durante a Copa como um sinal de que a integração é o caminho mais indicado. O que falta é coragem para dar o primeiro passo.
O ano de 2014 está sendo marcado por inúmeras crises na segurança pública brasileira: rebeliões e mortes em presídios; linchamentos; greves de policiais; atos contra a Copa do Mundo; manifestações marcadas por confrontos entre black blocs e policiais; por mortes, como a do cinegrafista Santiago Andrade, em fevereiro, e, mais recentemente, pelas prisões de ativistas às vésperas da final do Mundial de Futebol. Ao mesmo tempo, os dados publicados anualmente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o país convive, faz anos, com taxas de violência criminal absurdas, com quase 60 mil homicídios por ano, mais de 50 mil estupros registrados e padrões operacionais inaceitáveis de letalidade e vitimização policial, que resultam na morte de ao menos cinco pessoas por dia pela intervenção das polícias e faz com que o risco de um policial ser morto seja, em média, três vezes superior ao da população como um todo. Isso para não falar nas constantes ameaças do crime organizado, no crescimento dos roubos, nos reiterados incêndios de ônibus nas periferias paulistanas, no aumento dos sequestros relâmpago no Distrito Federal ou nos novos justiceiros cariocas, que acorrentam acusados de crimes em postes.
Em meio a esse contexto, o cenário é quase como o de que ninguém é responsável por essa tragédia mais do que anunciada. Ficamos num grande jogo de empurra que antagoniza diferentes organizações, níveis de governo e instâncias de poder. Dito de outra forma: as ameaças do crime organizado, as altas taxas de crimes violentos e a baixíssima capacidade dos órgãos de Justiça e segurança em prevenir a violência e evitar a impunidade mostram que algo está fora da ordem. As polícias, os governos, os Ministérios Públicos e o Poder Judiciário, insulados em seus projetos de corporação e em suas práticas institucionais, não conseguem fazer frente aos desafios contemporâneos impostos pelo crime, pela violência e pela dinâmica de uma sociedade plural e democrática.
O fato é que o nosso sistema de Justiça e segurança é muito ineficiente em enfrentar tal realidade e funciona a partir de um paradoxo que mais induz a antagonismos do que favorece a cooperação e a troca de experiências. Paradoxo esse que, por um lado, nos faz lidar cotidianamente com elevadas taxas de impunidade, erodindo a confiança nas leis e nas instituições, como têm demonstrado os vários índices do Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo. Por outro lado, as instituições de segurança pública e Justiça criminal, premidas pelas cobranças da mídia e da opinião pública, são regidas pela ideia de que algo precisa ser feito a qualquer custo para conter os "criminosos", abrindo margens para medidas de extremo rigor penal e, mesmo, para reforçar políticas criminais anacrônicas.
Na falta de parâmetros mais modernos sobre como lidar com crime, violência, manifestações e quaisquer ameaças à ordem social, recorre-se ao discurso de que o país tem leis lenientes e que é necessário endurecer o tratamento penal. Todavia, ao fazer isso, as instituições erram no diagnóstico e erram no remédio. Na ausência de uma política de segurança pública pautada na articulação de energias e de esforços para a garantia de direitos, no respeito e na não violência, deixamos de enfrentar o fato de que o nosso sistema de Justiça e segurança necessita de reformas estruturais mais profundas. E não se trata de defendermos apenas mudanças legislativas tópicas ou, em sentido inverso, focarmos apenas na modernização gerencial das instituições encarregadas em prover segurança pública no Brasil. Nosso desafio é adensar politicamente a defesa de que, exatamente, essas são duas faces complementares de um mesmo processo e que nenhuma delas conseguirá êxito permanente sem que a outra seja simultaneamente assumida também como prioridade.
Temos que modernizar a arquitetura institucional que organiza as respostas públicas frente ao crime, à violência e à garantia de direitos. Isso porque, ao contrário do que pensa o senso comum, muitas energias são gastas na busca por soluções e há várias iniciativas que podem e devem ser mais bem estudadas e incentivadas. As melhores práticas na redução da violência e da criminalidade têm se concentrado sobre o tripé aproximação com a população, uso intensivo de informações e aperfeiçoamento da inteligência e da investigação. A questão é que tais práticas, sozinhas, não conseguem dar conta de um elemento central que é a carência de coordenação, de integração e de articulação, marcas registradas da segurança pública brasileira e da arquitetura jurídica que embasa as políticas públicas no país. Sem que ataquemos essa grande fragilidade, o país continuará refém do medo e da insegurança e pouco conseguiremos avançar na transformação de práticas institucionais reconhecidamente ineficazes.
Essa, porém, não é uma agenda utópica ou impossível de ser executada, como alegarão alguns céticos de plantão. O maior exemplo de que é possível pensar segurança pública de modo diferente e mais eficaz foi, exatamente, o esforço feito para garantir a segurança durante a Copa do Mundo e que esteve baseado na proposta de compartilhamento de responsabilidades entre diferentes organizações e esferas de poder e governo, compartilhamento esse que foi o que permitiu uma enorme reversão de expectativas do colapso da infraestrutura e da segurança pública. O fato é que a Copa foi encerrada sem grandes crises na segurança muito em função da centralidade política e institucional que ela ganhou durante sua realização. Governos e instituições sentaram-se no mesmo espaço, articularam suas ações e integraram planejamento e operações, pensando mais nos resultados e menos nas suas lógicas autônomas de funcionamento. E, como fruto desta iniciativa, os índices de criminalidade mostraram-se sensíveis a essa mudança de comportamento e caíram em vários lugares.
Levando-se em conta, porém, que ações ad hoc são insustentáveis, desprende-se dessa experiência a certeza de que resultados de longo prazo só poderão ser obtidos se, como reiteradamente destacado, enfrentarmos estruturalmente alguns temas sensíveis, tais como a distribuição e a articulação de competências entre União, estados e municípios e a criação de mecanismos efetivos de cooperação entre eles e demais poderes e Ministérios Públicos; a reforma do modelo policial e de investigação estabelecido pela Constituição; o financiamento da área e o estabelecimento de requisitos mínimos nacionais para as instituições de segurança pública no que diz respeito à formação dos profissionais, carreiras, transparência e prestação de contas, uso da força e controle externo.
Hoje, temos polícias com acesso às mais modernas ferramentas tecnológicas e formadas por homens e mulheres altamente qualificados e com grande preparo intelectual, muitos com disposição para inovar e construir padrões de policiamento mais eficientes em contextos democráticos. Entretanto, vale frisar que, como pano de fundo, há uma enorme disputa pelo significado de lei, ordem e segurança pública em curso. Sem que assumamos essa disputa, não conseguiremos dizer claramente quais são os mandatos outorgados às instituições de Justiça e segurança e, consequentemente, pouco avançaremos na construção de políticas públicas mais eficientes.
O Brasil, ao largo do notável aprimoramento técnico operacional dos últimos 20 anos, ainda se impõe um silêncio obsequioso frente ao problema da segurança pública, que nos desafia a pensar em um projeto de reforma das polícias que as valorize como uma instituição central do Estado democrático de direito e da cidadania. As polícias, bem como as demais instituições da área, retratam a forma como o Brasil optou por administrar conflitos sociais e de se conceber como nação. Assim, falar hoje de segurança pública significa falar de um projeto de país; significa ter coragem política e institucional para liderar um pacto pela promoção de uma vida digna e em paz para parcelas majoritárias da população, pacto esse que passa menos por enfrentar as necessárias mas não suficientes questões econômicas associadas e mais por compromissos com ações de articulação, coordenação e integração institucional. E, para tanto, é essencial reconhecer que só uma instituição como a Presidência da República dispõe de energias e forças políticas capazes de sustentar um projeto de reformas e modernização da área. Se a integração é o caminho, alguém precisa dar o primeiro passo para percorrê-lo de modo constante e não apenas no de ver segurança como um tabu a ser evitado.
Renato Sérgio de Lima é sociólogo, vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor e pesquisador da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da FGV Direito SP. É também coorganizador do livro Crime, polícia e justiça no Brasil (Editora Contexto); Samira Bueno é socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutoranda na EAESP/FGV.
ARTIGO
Coragem para o primeiro passo
postado em 08/09/2014 18:46 / atualizado em 08/09/2014 18:57
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