Uma única palestra do jornalista e professor Arlindo Corrêa da Silva foi o suficiente para que a estudante Solange Bottaro abrisse mão de seus planos de vida e se dedicasse, integralmente, a um trabalho voluntário no Instituto Ramacrisna. Aos 23 anos, ela saiu de casa e se mudou para a sede da instituição, em Betim, de onde não saiu mais. Hoje, vice-presidente da instituição atuando na área de gestão de projetos, mobilização de recursos e relacionamento, Solange é considerada uma das principais responsáveis pela transformação do Instituto. O ambiente de tristeza que ela conheceu deu lugar a uma atmosfera de harmonia, em que crianças, adolescentes, adultos e idosos compartilham o aprendizado. Mais do que ajudar as pessoas, seu coração buscou libertar as pessoas da miséria, da ignorância, do sofrimento físico e moral. Logo percebeu que se unindo a outras pessoas, organizações e empresas, suas ações poderiam ter um impacto ainda maior. O Ramacrisna sempre foi seu foco de vida, de entusiasmo, amor e dedicação ao próximo. Seu caminhar tornou-se ainda mais proveitoso e útil, recompensado pelo sorriso das crianças, o brilho do olhar do jovem ao ingressar no seu primeiro emprego, a valorização das mulheres ao ver suas criações ganhando o mundo, a vibração das famílias por ver seu mundo transformado para melhor. Com seu trabalho o Ramacrisna cresceu, e os projetos de geração própria de recursos tornaram a instituição conhecida no país como referência nacional em projetos de autossustentabilidade no Terceiro Setor. A missão da instituição é oferecer soluções em educação e profissionalização a pessoas de baixa renda, contribuindo para a subsistência e o crescimento do indivíduo e da comunidade. Em quatro décadas de trabalho, a administradora viu passar por ali mais de 31 mil crianças. Este ano, Solange Bottaro completa 45 anos como voluntária da instituição.
Qual a sua origem?
Nasci em Belo Horizonte, em Santa Teresa, um bairro de que gosto muito e onde tenho pessoas da família morando. Sou filha de Celestino Afonso Bottaro, eletricista, e Geny Rodrigues Bottaro, dona de casa. Meus avós paternos eram italianos, uma família bastante conservadora e tenho orgulho de minha ascendência.
É casada?
Sou casada com Américo Amarante Neto, administrador de empresas, um grande amigo e companheiro com quem divido sonhos, objetivos e uma vida espiritual que nos preenche e cria vínculos perenes. Não temos filhos, pois quando nos encontramos, na maturidade de nossa vida, era uma decisão que já havia sido tomada por ambos anteriormente.
Como foi sua infância?
Tive uma infância tranquila, brincando na rua com minhas duas irmãs e meu irmão e convivendo muito de perto com meus avós paternos. Minha avó, matriarca da família, mulher forte e inteligente, foi minha primeira mestra. Sempre fui muito inquieta, lia muito desde criança, e mesmo com forte influência da família italiana, não percebia o casamento e filhos como objetivo de vida, e minha avó me ajudou muito nessas reflexões. Estudei no Colégio Batista, de onde tenho boas lembranças, me graduei em administração, fiz MBA em administração de organizações sociais na Fundação Getulio Vargas e especialização em desenvolvimento de liderança, na Fundação Dom Cabral.
O que é a Instituição Ramacrisna?
O Instituto Ramacrisna é uma instituição sem fins lucrativos, sem vínculos religiosos ou partidários, gerida por um conselho deliberativo, um conselho fiscal e pela diretoria executiva. O nome é em homenagem a Sri Ramakrishna, filósofo indiano que pregava o trabalho social como forma de crescimento do ser humano. Foi criada em 1959, pelo professor Arlindo Corrêa da Silva, uma pessoa muito mobilizadora e que junto a um grupo de amigos construiu uma obra para educar crianças em situação socioeconômica desfavorável, pois já naquela época, ele percebia que somente através da educação se consegue transformar a vida das pessoas, possibilitando-lhes uma existência digna e produtiva.
Como descobriu a instituição Ramacrisna e o que a levou a ser voluntária?
Conheci o Ramacrisna aos 23 anos e percebi que finalmente havia encontrado meu caminho. O jornalista Arlindo Corrêa da Silva, fundador da organização, me conquistou quando, no primeiro dia em que assisti a uma palestra sua, disse aos presentes: “Vocês não devem acreditar em nada do que lhes falo, senão depois de praticar e descobrir por si mesmos que é a verdade”. A partir desse momento, comecei a conhecer “minha família universal” e a perceber que teria a chance de agradecer por todas as oportunidades que havia recebido de viver em uma família feliz, ter estudado, ter ótima saúde, etc., oferecendo meu trabalho e meu amor a todos que se aproximassem de mim. O professor Arlindo passou a ser meu segundo mestre. Já faz 45 anos que me dedico a servir às pessoas através do que realizo no Instituto Ramacrisna.
Fiquei sabendo que seu pai não aprovou sua participação. Por quê?
No início, meu pai não gostou da ideia de me mudar para um local sem telefone, com estrada de terra que se tornava intransitável quando chovia muito, e sem as comodidades a que eu estava acostumada. Mas, persisti no meu objetivo e ele começou a perceber que era muito feliz e existiam outras formas de viver.
Largou tudo para trabalhar lá?
Sempre fui voluntária no Ramacrisna, mas me mantinha dando aulas e palestras e atualmente sou aposentada. Minha vida e do Américo é muito tranquila, gostamos de ler, de ir ao cinema, meditamos toda manhã e à noite e gosto também de jardinagem. Eu e meu marido somos rotarianos, que é a maior organização do mundo, o que nos possibilita atuar ainda mais em benefícios das pessoas. Toda minha trajetória adulta está mesclada às ações do Ramacrisna, e quando penso em família, percebo à minha volta um número imenso de filhos, filhas, netos, netas, suas famílias e a certeza em meu coração de que apesar de todo o carinho e amor que tenho por cada um deles, eles não me pertencem, mas fazem parte de minha vida, plena de sentimentos, emoções e rica em conquistas que não são materiais, mas têm um valor acima de qualquer possibilidade de mensuração.
Como era o Ramacrisna quando o conheceu?
Foi em 1973, o lugar funcionava como um internato que recebia meninos cujas famílias não tinham condição de cuidar. Chorei muito quando me deparei com as histórias de abandono familiar das 80 crianças que viviam lá. Estabeleci um propósito para mim de melhorar a vida daqueles pequenos, e me dediquei totalmente a esse projeto.
Nesses 60 anos, como está a instituição?
São 60 anos de história, de vidas transformadas, de muitos sorrisos, aprendizados e conquistas. Uma construção realizada a muitas mãos e corações. O legado deixado pelo fundador do Instituto deu frutos, flores e pavimentou uma estrada sem fim de construção de conhecimentos, inovação e determinação. Nossa sede fica em Betim e temos um Núcleo em Belo Horizonte, no Carlos Prates, que tem como propósito oferecer arte, cultura, apoio pedagógico, aprendizagem, formação profissional e geração de trabalho e renda. Promovemos também o desenvolvimento local de comunidades em situação de vulnerabilidade social, promovendo elevação do nível de escolaridade de crianças e adolescentes, qualificação profissional de jovens e adultos e o protagonismo juvenil. Contribuímos com nove dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) sendo eles 10 – Redução das desigualdades, 4 – Educação de qualidade, 8 – Trabalho descente e crescimento econômico, 16 – Paz, justiça e instituições eficazes, 9 – Indústria, Inovação e Infraestrutura, 5 – Igualdade de gênero, 12 – Consumo e produção responsáveis, 1 – Erradicação da pobreza, 3 – Saúde e bem-estar.
Tem alguma história que a marcou em todos esses anos?
São muitos casos relevantes em que crianças e jovens, meninos e meninas se destacam profissionalmente em várias áreas como música, audiovisual, tecnologia, etc., mas dois me são muito próximos por ter acompanhado a transformação desses jovens desde criança, por serem da comunidade e além do aspecto de conquistas profissionais, terem absorvido os valores do Ramacrisna, de compartilhar saberes, cuidados e se interessarem pela transformação dos colegas.
Geisibel Castro, hoje com 28 anos, chegou ao Instituto com 6 anos, em 1997. Estudava na escola pública da região e participava das atividades do Centro de Apoio Educacional Ramacrisna em horário complementar à escola. Terminou o ensino fundamental, fez o ensino médio sempre participando das atividades oferecidas pelo Instituto, com interesse especial pela área de tecnologia. Em março de 2007, foi contratado como funcionário do Ramacrisna nessa área, onde vinha se destacando. Em 2017, se casou com Geise Castro e começou a cursar graduação em administração na Unopar. Este tem sido especial para Geisibel, pois foi selecionado para coordenar o setor de Tecnologia e Inovação do Instituto, compartilhando com as crianças e jovens os conhecimentos adquiridos e aperfeiçoados durante os anos em que está ligado à organização. Também nesse ano foi indicado para fazer especialização no PDD – Programa de Desenvolvimento de Dirigentes na Fundação Dom Cabral e, para coroar tudo isso, nascerá sua primeira filha, Alice.
Outro caso é o de Cledemar Duarte, hoje com 27 anos. Entrou no Ramacrisna com 9 anos e participou de diversos projetos. Em 2007, participou do projeto antenados, de comunicação, que ensinava aos jovens da região conceitos de jornalismo, fotografia, edição e gravação de vídeos. Foi ali que ele descobriu sua profissão, fez faculdade de jornalismo. Depois de formado, teve experiências profissionais em emissora de TV e assessoria de imprensa, entre outros. Em 2014, com mais bagagem e visão de mundo, retornou para o Antenados, para compartilhar as experiências com outros jovens, se tornando instrutor e atualmente é o coordenador da Produtora Antenados. Através da parceria com a Liverpool Hope University, da Inglaterra, Cledemar foi um dos escolhidos para representar o Instituto Ramacrisna e o Brasil no Big Hope 2018, um congresso de jovens realizado a cada 10 anos, na cidade de Liverpool. Uma experiência fantástica, como ele destaca, de um jovem morador em área rural de Betim, sendo representante do Brasil em evento que contou com a presença de mil jovens de todo o mundo.
Vocês atuam sozinhos ou têm parcerias?
Atuamos em parceria com empresas e organizações internacionais e nos últimos dois anos recebemos os prêmios de Melhor ONG para se DOAR – 2017 e 2018. Melhor Organização de Assistência Social do Brasil – Prêmio Itaú Unicef – primeiro lugar em Minas Gerais e finalista no Brasil – GPTW Melhor Lugar para se trabalhar e ainda foi escolhida pelo Criança Esperança. O Ramacrisna é considerado modelo de gestão e isso se deve à parceria com a Fundação Dom Cabral, uma das melhores escolas de negócio do mundo e que aplica sua expertise no POS – Parceria com Organizações Sociais, levando as instituições sociais a um excelente patamar de administração, otimizando o uso dos recursos e gerando mais impacto nas atividades realizadas. Atendemos na sede, em 2018, quase oito mil pessoas de 6 a 80 anos, de 11 cidades da Região Metropolitana de BH e em parceria com a Prefeitura de Betim foram quase 80 mil pessoas, parceria essa que possibilita ampliar o raio de atuação e mais beneficiados.
Quais os planos futuros?
Para o futuro, a previsão é de investirmos em projetos de autossustentabilidade da organização, como a fábrica de telas de arame que desde 1975 tem o resultado das vendas destinado à manutenção dos projetos sociais. Além disso, estamos lançando em 29 de março um novo departamento no Instituto: GIP Ramacrisna – Gestão e Inovação em Projetos, que irá atender empresas, poder público e outras instituições com prestação de serviços em elaboração e execução de projetos sociais e consultorias nas áreas de gestão para o terceiro setor. Em termos de educação, o objetivo é investir ainda mais em tecnologia e inovação, para preparar essas crianças e jovens para acessar o mercado de trabalho com competência.
Você é feliz?
Se sou feliz? Sou imensamente feliz. Se faria tudo novamente? Claro que sim.