Desde que se tornou galerista, a artista plástica Beatriz Abi-Acl dedica o seu trabalho a talentos mineiros. O objetivo dela é dar visibilidade a nomes que não têm tanta oportunidade de exibir a sua obra de arte. Localizada na Rua Santa Catarina, Bairro Lourdes, a Galeria de Arte Beatriz Abi-Acl acaba de completar duas décadas de história. Quando olha para trás, ela lembra que lançou muitos artistas e ajudou a mostrar para o Brasil e para o mundo o melhor de Minas. “Foram 20 anos de trabalho sólido, de qualidade, sério e honesto. Disso tenho o maior orgulho”, destaca a fundadora. Em entrevista ao Estado de Minas, ela reconta a trajetória de menina do interior que gostava de desenhar a professora de artes e, depois de aposentada, dona de galeria. Por todo este tempo, Beatriz nunca parou de pintar.
Conte um pouco da sua história.
Sou de Senhora do Porto, no Vale do Rio Doce, Minas Gerais. Estudei em colégio interno em Conceição do Mato Dentro, depois fiz o segundo grau, como se falava na época, em Guanhães. Saí de casa para estudar quando completei 11 anos. Aí fui saber o que era viver, o que era gente, porque a minha cidade é muito pequenininha, e a minha família tinha o maior zelo com os filhos.
Desde a infância, você se interessava por arte?
Com oito anos, comecei a desenhar. Sentava na escada da minha casa e desenhava o céu, o casario, sempre a mesma coisa. Ficava um pouco irritada porque a minha cidade tinha, no máximo, 100 metros de horizonte, então, quando ia de Itabira para Senhora do Porto, me sentia entrando dentro da terra, sem horizonte. Lembro que ganhei uma poesia do meu tio. Ele escreveu: a tua pintura tem cor e matiz, um dia menina serás tu também pintora Beatriz.
Então, o seu tio estava certo ao escrever que você seria pintora.
Sempre foi o meu desejo trabalhar com artes, me imaginava pintando e desenhando, mas na minha cidade não tinha universidade. A única da região era em Teófilo Otoni e lá só tinha curso de letras e pedagogia. Escolhi letras. Em 1971, surgiu um emprego em Contagem e vim para trabalhar como secretária de escola. Aí conheci a Fundação Mineira de Artes (Fuma) e não saí de lá mais. Tinha um dia para fazer inscrição no vestibular e passei. Larguei o curso de letras em Teófilo Otoni para fazer licenciatura em artes plásticas. Dei aula em vários colégios em Contagem. Era a única professora concursada que estudava artes no município, então era muito procurada. Trabalhei dentro de sala de aula por 19 anos. Depois disso fiz curso especialização em artes plásticas na UFMG, aí me convidaram para trabalhar na assessoria do governo de Contagem. Então, achei por bem fazer comunicação social na PUC e me formei em relações-públicas. Fiquei 10 anos entre a assessoria e a coordenação de RP.
O que mais marcou a sua carreira?
Fui fundadora de uma escola-modelo em Minas, a Escola da Arte e Artesanato, voltada para alunos drogados e miseráveis, que ficavam na rua. Fiquei lá de 1983 e 1988 e, durante esses cinco anos, recebi através do Juizado de Menores 110 crianças. Lá tinha oficina de tecelagem, bordado, madeira, cestaria e tintura de tecido. Recebi prefeitos de todas as cidades polo de Minas e da Grande BH.
Como a arte ajudou essas crianças?
Para construir o prédio da escola, tiveram que cortar vários eucaliptos e ficaram raízes no terreno. Selecionei os alunos mais violentos e mandei que arrancassem da terra as raízes. Entreguei, correndo todo o risco, facão, enxada, pá e eles fizeram desta madeira esculturas. Naquela época, a escola chegou a vender para o Rio de Janeiro. Pensava que o adolescente ia para o caminho do crime e das drogas porque não tinha o que fazer e, dessa forma, curamos muitos do vício. Foi um trabalho muito bonito.
Quando a galeria entrou na sua vida?
Já tinha tempo para aposentar, mas continuei trabalhando. Até que o novo prefeito de Contagem mandou embora mais ou menos 500 pessoas que ocupavam cargos de chefia, e eu estava no meio. Para voltar ao serviço, teria que ser apresentada por um vereador de Contagem, mas preferi sair. Não precisava ser apresentada por ninguém, o meu trabalho falava por mim. Isso foi em dezembro de 1998. Fiquei um tempo na França, Itália, Nova York e me voltei mais para a arte. Quando voltei para BH, decidi aproveitar o imóvel da minha família na Rua Santa Catarina. Em 1999, comecei a galeria Agnus Dei. Depois achei melhor colocar o meu nome. Percebia que muitos artistas bons de BH e Minas não encontravam espaço para mostrar o seu trabalho. Décio Noviello, Mariza Trancoso, Marcelo AB, Mario Bhering, Jarbas Juarez, entre outros. Esses foram os primeiros artistas com quem comecei a trabalhar. Muitos deles estão comigo até hoje. Atualmente, trabalho com 50 artistas, sempre lançando um novo.
Todos são mineiros?
A maioria, sim. Antes dessa crise, que parece que não vai acabar tão rapidamente, buscava de um a dois artistas de fora por ano. Trabalhei com carioca, baiano, capixaba, paulista. Agora ficou muito difícil trabalhar com arte. Além de ser a única coisa que gosto, é o que sei fazer. Então, levo meus artistas para várias cidades de Minas e fora, participando de feira em São Paulo, congresso em Brasília.
Para se tornar uma galeria reconhecida, o que você precisou fazer?
Um trabalho de qualidade e consistente. Além disso, buscar gente de valor, que tenha uma linguagem artística diferenciada. Agora estou expondo uma artista que não tinha feito ainda exposição em galeria comercial, a Juliane Assis. Ela trabalha elementos da natureza, mas não extremamente figurativos, insinua. Trabalha de forma tênue entre natureza e abstrato, mas com uma técnica extremamente apurada. Achei muito válido mostrar este trabalho, tanto é que vários já foram vendidos, apesar da crise.
Como treinar o olhar para as obras de arte?
Viajo muito para conhecer galerias e museus, já visitei os de pelo menos 30 países. Já fiquei três dias no Museu Van Gogh, em Amsterdã, outros dois dias no Museu Guggenheim Bilbao, na Espanha, olhando cada detalhe, lendo cada observação. Você só aperfeiçoa o seu olhar quando estuda, então leio muito sobre artes, visito muitas exposições e de cada museu adquiro um livro com as obras. Converso com as pessoas também. Por exemplo, a Mariza Trancoso, que é mestra em história da arte e pintura.
Você nunca parou de pintar.
Tenho mais de 200 obras vendidas na Itália, pelo menos 10 vendidas em Nova York. Sempre busquei na paisagem o espaço, porque na minha cidade não tinha horizonte, e nessa busca sempre mostrei o que fizeram e estão fazendo com a nossa terra. O meu trabalho tinha também sentido de denúncia, sempre denunciei as erosões, a mineração que acaba com as montanhas, os loteamentos desordenados. Lembro que um dia cheguei em casa e vi o meu quadro na televisão. Na verdade, era o rompimento da barragem de Mariana. Confio muito no que diz Eduardo Peñuela, que foi meu professor: artista é a antena do mundo. No dia 5 de outubro, junto com outros artistas, vou fazer uma interferência em um desses quadros para lembrar o que andam fazendo com as paisagens mineiras. É um trabalho baseado em Mariana e Brumadinho. Por outro lado, tenho um trabalho de pintura com a vegetação brasileira.
O que você anda pintando?
Não preciso mais fazer denúncias, estou num tempo diferente. Pintura hoje para mim é mais desafio que denúncia. Hoje pinto para me desafiar, meu trabalho tem que ser melhor a cada dia. Artista não se completa nunca, cada dia é desafiado com o tanto de tecnologia, de material, de papel que surge. Não estou necessitando mais demarcar o espaço do céu com a paisagem. Estou fazendo um trabalho mais expressivo, mas que no conjunto mostra a natureza. Uso mais a cor para expressar a minha linguagem.
Por que gosta tanto de cores?
A minha infância sempre muito colorida. Na minha terra tem muita flores, frutos, árvores. Dentro da minha casa tinha um jardim de inverno sempre florido, então sempre convivi com muitas cores. Com o passar do tempo, você vai selecionando mais os elementos. A sua paleta não fica tão colorida como antes. Não preciso dizer que montanha é verde, posso buscar outro matiz para expressar a mesma coisa.
Obra de arte ainda é para poucos?
Não. Primeiro pensavam que a galeria cobrava para entrar. Não, só museu que cobra. Depois coloquei interfone e as pessoas só olhavam de fora, tinham receio de entrar porque a porta estava sempre fechada. Fui explicar que bastava tocar o interfone. De certa forma, vamos buscando aproximação do público, porque tem gosto para tudo e tem valor para toda obra. Falo que é a obra de arte que busca o dono. É uma questão de paixão. Além disso, o espaço da galeria fica aberto e à disposição dos nossos artistas para encontros com o público. Eles pode dar oficina de arte ou discutir a composição da obra.
Quem são seus clientes?
Temos alguns colecionadores, mas também recebemos um público jovem. A última escultura vendida na galeria foi para um jovem. Ele queria uma escultura de corpo para decorar a sua clínica de cirurgia plástica. Eu tinha um tronco e ele se apaixonou, nem quis ver outra coisa, e não foi a mais barata.
Qual é a sua missão com este trabalho?
Só de mostrar algo que toca a emoção de uma pessoa já acho demais. As pessoas chegam aqui tão preocupadas com violência, com contas a pagar, e a minha função é fazê-las esquecer o mundo de fora. Dentro da galeria, é para ver coisa bonita, feita com amor. Também gosto de levar artistas para exposições fora, é um prazer mostrar o trabalho deles. A melhor coisa para mim é ligar para um artista e falar que alguém gostou do seu trabalho e quer ficar com ele.
Por que olhar para obra de arte faz bem?
Quando é verdadeira, ela leva consigo muita emoção, intimidade, algum elemento especial. Às vezes, a pincelada na tela foi feita com tanto carinho, tanta expressividade, que se torna diferenciada. Penso que cada obra é um pedaço daquele artista. Então, quem não se apaixona não compra. Comecei a minha coleção particular em 1981, hoje já sinto dificuldade de encontrar um lugar onde colocar. Tenho obras na casa da minha mãe, da minha irmã. Infelizmente, não cabe mais na minha casa.
Imaginava que a galeria chegaria aos 20 anos?
Não, passou tão rápido. Sabe que tenho a vida da galeria numa pasta? Antes, durante e depois de cada exposição. Quando olho para trás, sinto que fiz muita coisa boa, mostrei muita gente boa, ressuscitei algumas, lancei outras e graças a Deus todos os que passaram por mim levaram alegria e felicidade.
Você tem algum sonho que ainda não realizou?
Já fui para Itália, Estados Unidos, mas não queria ir mais sozinha. Quero levar artistas mineiros comigo. Sei que não é hora de fazer isso, o Brasil está em crise, mas tenho o sonho de levar outros artistas comigo para mostrar o trabalho deles. Onde tenho mais obra de arte vendida é na Itália. Lá eles adoram a forma como o artista brasileiro usa as cores, com sabedoria e domínio técnico. E o artista mineiro é respeitado no Brasil e fora do Brasil, tem capacidade de síntese e qualidade. Ainda não tive tempo de construir um ateliê onde possa pintar quadro de três metros. Sonho ter esse espaço para que possa pintar livremente. Como moro num apartamento, só posso pintar tela que cabe no elevador, não posso pintar maior, ainda me sinto limitada neste aspecto. Mas isso vai acontecer, brevemente.
Qual legado você quer deixar?
Sonho em deixar um trabalho bom na qualidade do artista e da obra. Um trabalho de fidelidade do artista com o galerista e do galerista com o artista, os ensinamentos, a troca de ideia e de conhecimento.