Mateus Freire fez história em Minas. De João Pessoa, na Paraíba, o jovem começou a carreira como violinista e trabalhou por 10 anos na Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Ele também ficou conhecido por adaptar músicas dos Beatles e Alceu Valença para concertos em parceira com a Orquestra Ouro Preto. Agora, Mateus começa a fazer história nos Estados Unidos. Decidido, mais uma vez, a mudar o rumo da sua carreira, o músico quer ser compositor de trilha sonora. No seu currículo, já tem a participação em um filme exibido no Festival de Cannes, na França, e o convite para trabalhar no curta The gatekeeper, que será lançado em dezembro. Futuramente, ele pensa em mirar projetos no Brasil.
Você vem de uma família de músicos, certo?
Minha mãe teve formação clássica de conservatório e meus pais, na juventude, tinham uma banda de rock and roll chamada Os Diplomatas, muito conhecida no fim dos anos 1960 e começo dos anos1970. Talvez era a única que existia lá em João Pessoa, chegou a ser conhecida no Nordeste inteiro. Eles não puderam seguir carreira de música – a minha mãe virou arquiteta e o meu pai virou engenheiro civil, mas sempre cultivaram o amor pela música. Então, eu e a minha irmã, violinista também, sempre tivemos muita música dentro de casa, escutando na radiola, assistindo a concertos na televisão ou escutando a minha mãe tocar piano e flauta. Quando tinha reuniões de família em casa, sempre tinha rodas de violão. Meus pais me incentivaram muito a começar a estudar e fui fazer violino com quatro anos. Não escolhi o instrumento, mas adorei a ideia.
Quando entendeu que queria seguir carreira de violinista?
Comecei a estudar por influência dos pais. Música ajuda na disciplina e na concentração, mas eles nunca acharam que a gente ia seguir carreira. Por volta dos 15 anos, levava o violino bem a sério, participava de concursos e já tinha o desejo de seguir carreira de violinista. Fui fazer vestibular no Rio de Janeiro e tive aulas com Paulo Bosisio, um dos grandes nomes do violino no Brasil e no mundo. Concluí o bacharelado de música, com especialização em violino, na Uni Rio.
E o seu interesse pela composição?
Desde pequeno, sempre tive interesses além do violino. Não sabia ler nem escrever, mas já compunha algumas coisas, fazia algumas melodias e comecei a desenvolver o interesse pela composição. Lá em João Pessoa ainda, antes do Rio de Janeiro, participava da orquestra Camerata Brasílica e começaram a surgir as primeiras oportunidades. Nessa época, fui colocado para fazer arranjos e chegamos a gravar alguns CDs, então tive esta escola informal de arranjo e composição. Depois trabalhei em tudo quanto é orquestra. Fiquei oito anos no Rio e mais 10 em Belo Horizonte como violinista. Já estava em posição consolidada na Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, não tinha nem para aonde ir aqui no Brasil, só se fosse tentar fora. Paralelo a isso, continuei escrevendo e fazendo arranjos. Até que a Orquestra de Ouro Preto começou a precisar de arranjos e comecei a ganhar dinheiro com isso. A nossa parceria deu muito certo e dura até hoje.
Fale sobre alguns projetos marcantes.
O primeiro trabalho de sucesso foi o concerto dos Beatles, em 2009. Fez tanto sucesso que rodou o Brasil inteiro e fomos tocar em Liverpool, na Beatles Week International. Dois anos veio o convite para fazer Valencianas. Claro que aceitei, fiquei superfeliz, me lembrava da minha mãe tocando violão em casa. Como sou de família nordestina, escutava Alceu Valença nas rodas de violão. Contei isso para o Alceu e demos muita risada juntos. Era pouco experiente na época, então tinha muito medo, era muita responsabilidade. Todo mundo conhece Alceu, queria fazer um bom traba- lho. Estreamos em 2012 e Valencianas ganhou o Brasil e está sendo tocado até hoje. Em 2015, ganhou como melhor CD do ano no Prêmio da Música Brasileira – assinei todos os arranjos e compus a música de abertura, a minha primeira composição. Agora mesmo estou escrevendo Valencianas 2, que vai ser gravado no início do ano que vem, em Portugal. Depois deste sucesso todo, comecei a ser conhecido no Brasil também como arranjador e compositor e começaram a surgir outros convites que nem imaginava na época. Deram-me a chance na Orquestra da Petrobras, em que tinha trabalhado como violinista e voltei quase 10 anos depois como arranjador. Era o projeto Arca Sinfônica, em que fizemos a adaptação do CD Arca de Noé. Pegamos as músicas de Vinícius de Moraes e fizemos um musical com elas. Senti o mesmo medo na época, mas ter sido violinista e trabalhado quase 20 anos nas orquestras do Brasil me ajudou muito na composição. A Orquestra da Petrobras continuou me chamando para fazer Saltimbancos sinfônico, Balão Mágico sinfônico, aí comecei a dividir a carreira entre tocar e escrever. Inclusive, acho que, num determinado momento, comecei a gostar mais de escrever que de tocar, porque era sempre novidade, tem a questão da colaboração. Violinista tem carreira solitária, você está com o instrumento ali, sempre seguindo a fila na sua frente ou o maestro, não tem muita liberdade. É como se fosse um exército ou time de futebol.
Como foi para você trabalhar com obras de grandes compositores?
Facilitou muito ter contato com música a vida inteira. Alceu Valença, Beatles, Vinícius de Moraes, já conhecia muito todos eles, desde pequeno, mas tem todo um trabalho de pesquisa. No caso dos Beatles, fui pesquisar um jeito de escrever para que o público não sentisse falta das vozes. Os Beatles me ajudavam muito, porque as pessoas conhecem tanto as músicas que vão cantando junto na cabeça delas. Então, é quase como se tivesse um cantor ali na frente.
Por que quis se especializar em trilha sonora?
Isso é outra história. Desde pirralho, assistia a filmes com a minha mãe. Não só os clássicos da Disney, mas E.T., Jurassic Park, Star wars e alguns filmes um pouco mais cabeça, tipo Cinema Paradiso, que marcou muito a minha infância e um dos motivadores de eu ter escolhido o novo desafio da trilha sonora. Ouvia as músicas dos filmes e ficava apaixonado, achava aquilo lindo. Na época, nunca imaginava que iria escrever, mas a composição foi ocupando uma parte maior da minha vida. Chegou o momento em que tive que decidir e tive o apoio da minha família. Sentia-me mais realizado escrevendo que tocando. Tinha medo de desistir da carreira na qual investi a vida toda, mas tomei coragem e pedi minha demissão da Filarmônica em 2016. Queria realizar este sonho de estudar trilha sonora. Acho que, antes de sonhar em ser violonista, sonhava com trilhas sonoras, mas nem sabia que um dia ia ter contato com isso. Na época, comecei a procurar faculdades fora do Brasil, porque no Brasil não existe, e achei este mestrado na University of Southern California (USC) pesquisando na internet. Decidi vir conhecer pessoalmente, pude assistir a algumas aulas como ouvinte e fiquei muito interessado. Você tem que fazer prova para ser selecionado, e é muito disputado. São 20 vagas por ano, uma turma só. Achava que não ia passar, porque o mundo inteiro disputa. Neste ano, concorri com quase 500 pessoas. Era o único brasileiro da sala, tinha peruano, colombiana, americanos, alemães, franceses, italianos, ingleses e chineses, era gente do mundo inteiro. Depois fui tomar conhecimento de que este curso é considerado o melhor e maior do mundo. Então, vim fazer este mestrado de um ano e cheguei aqui sem experiência nenhuma. Nunca tinha estudado filme, trilha sonora.
Como você foi parar no Festival de Cannes?
No fim do mestrado, aconteceu algo inusitado. Tínhamos que trabalhar em conjunto com a escola de cinema, que vinha com os filmes para a gente escrever a trilha sonora. Tínhamos que fazer pelo menos cinco, acredito que tenha feito oito. Um desses projetos, bem no fim do curso, naquela loucura de provas finais, foi selecionado para Cannes. O festival era na outra semana. Sei que na época pensei: eu vou e dane-se, depois vejo como entro de volta nos Estados Unidos. Era uma oportunidade única de participar do festival como músico. Foi uma experiência incrível chegar à festa e estar em contato com o mundo inteiro. Todo mundo da indústria estava lá, Hollywood inteira. Quentin Tarantino, Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Sylvester Stallone e eu no meio no dia da exibição do filme. Foi a maior emoção do mundo ver meu nome na tela de cinema na França. Aquilo valeu todo o meu investimento e me deu gostinho de quero mais. O filme It happened one night é muito centrado na questão do racismo, do preconceito contra a mulher, fala de aborto, é um filme bem político neste sentido, com uma carga emocional forte. Para mim é ótimo. Quanto mais carga emocional, mais posso traduzir para a música.
Como surgiu o convite para fazer a trilha sonora do filme The gatekeeper?
O convite surgiu através do curso, o nosso portfólio fica estampado no site da universidade. Não conhecia o diretor Jordan Martinez. Ele entrou na página, gostou da minha história, do meu trabalho e me chamou para o projeto. É o meu primeiro grande projeto como compositor de filmes. O curta tem quase 20 minutos e vai ser lançado em dezembro. É um drama de guerra, que conta a história de um ex-soldado americano que esteve na Guerra do Iraque e volta cheio de traumas, não consegue se adaptar à vida cotidiana e acaba se suicidando. É um tema bem sensível nos Estados Unidos, então tem uma parte de carga emocional, mas também tem muita ação. Quando vi o primeiro corte, já fiquei muito impressionado, ele é um diretor muito talentoso, estou apostando muito nele e espero que tenha muito sucesso no trabalho. Nesta profissão, temos que apostar nos diretores, eles que vão nos chamar para futuros trabalhos. No caso do John Williams, Steven Spielberg o chamou para fazer Tubarão e ele fez aquela trilha icônica. A parceria ficou para o resto da vida.
Como funciona o processo de criação de uma trilha sonora?
O meu trabalho de compositor é entrar na cabeça do diretor e chegar o mais perto possível da ideia dele. Leio o roteiro todo, depois sento para conversar com o diretor e localizar no filme onde ele quer que a música entre e saia. Quando vou escrever a trilha sonora, tenho que respeitar três elementos: diálogos, efeitos sonoros e músicas. Nunca posso sobrepor um ao outro, tenho que saber equilibrar a trilha sonora com tudo o que está acontecendo ali dentro. Tem também o trabalho do compositor, de escrever as músicas. Faço digitalmente para o diretor ouvir comigo e, assim que ele aprovar, vou para o papel e a caneta transcrever tudo para a orquestra. Tenho que escrever todas as partituras, depois contratar a orquestra inteira. Vou para o estúdio e faço papel de maestro. Depois que gravo tudo, vou para o estúdio mixar e masterizar. Aí sim terminei a trilha sonora.
Na sua opinião, qual filme tem a trilha sonora mais marcante de todos os tempos?
Duas trilhas me marcaram muito, desde a minha infância: a do Star wars e a do Cinema Paradiso. John Williams e Ennio Morricone são meus ídolos.
Qual é o seu sonho?
Meu sonho é viver profissionalmente neste meio. Conseguir projetos como este de agora, que vão nutrir minha liberdade artística e me permitir estar inserido em um processo de criação, isso é o mais gostoso. Espero que consiga ter certa estabilidade e dividir meu tempo entre Estados Unidos e Brasil. Minha família está toda aí, não quero ficar longe.
Você se mudou definitivamente para Los Angeles. Não existe mercado no Brasil?
No Brasil, não existe curso de trilha sonora e o mercado não se compara ao daqui, que é gigantesco. Aqui não falta oportunidade. Los Angeles é o centro do cinema mundial. Se conseguir fazer sucesso aqui, faço sucesso em qualquer outro canto. Mas espero que, num futuro próximo, apareça algum convite do Brasil.
O que a música significa para você?
Música para mim é tudo. É o meu meio de vida, meu passatempo, minha paixão. Faz parte do meu dia como profissão e como forma de relaxamento. Música também me traz memórias da minha mãe, que faleceu, e de outras pessoas que passaram pela minha vida. Desde criança, é como se fosse uma pessoa da família. Deixa-me muito feliz conseguir viver de música. Realizei o sonho dos meus pais, que tiveram que seguir outras carreiras, e para mim é uma realização fazer o que amo.
Qual é a trilha sonora da sua vida?
Depende. Já tive fases de escutar mais MBP, mais rock, hoje em dia estou escutando mais trilhas sonoras. Como tive contato com todo tipo de música, sou muito eclético. Mas, se fosse escolher um estilo preferido, diria que é a música clássica, com a qual tive mais contato.
Você tem tocado violino?
Profissionalmente, nunca mais toquei, desde que pedi demissão da Filarmônica, em 2016. Toco de vez em quando por hobby ou gravando as minhas trilhas sonoras. Mas vou guardar o meu violino para o resto da vida. Muita gente pergunta por que não vendo. Sou apaixonado por ele e, mesmo não tocando profissionalmente, ele não sai de perto de mim.