Feminista não é uma mulher revoltada que vai queimar sutiã na rua e bolar um plano para dominar o mundo. Maristella Iannuzzi, de 47 anos, consultora da ONU Mulheres, entidade que luta pela igualdade de gênero e empoderamento das mulheres, diz que precisamos superar esta visão preconceituosa. Feminista é toda mulher que acredita ter os mesmos direitos dos homens. A própria trajetória de Maristella é um exemplo. Formada em engenharia mecatrônica, a paulistana nada tinha a ver com o estereótipo de “nerd”.
Para começar, fale um pouco sobre você.
A Maristella é uma mulher de 47 anos, casada, tem uma filha de 10 anos e é de uma família 100% italiana. Fui “feita” na Itália, mas nasci aqui em São Paulo. Sou engenheira mecatrônica, advogada, especialista em building automation, marketing digital e tenho uma coleção de MBAs.
Logo cedo você escolheu uma profissão que não era comum entre as mulheres. Por que engenharia mecatrônica?
Sempre fui uma mulher que gostava de exatas. Como tinha que trabalhar para pagar meus estudos, optei pelo colegial técnico em processamento de dados. Isso em 1987, quando começa a abertura da importação, os computadores entram no Brasil e começa a se falar em programação. Em paralelo, era manequim e modelo fotográfico. Isso prova que você não precisa deixar de ser feminina e ter vaidade para fazer engenharia. Então, já começo quebrando paradigmas. Com 16 anos, entro para a faculdade e sou convidada a dar aulas no colegial técnico. Muitos alunos eram mais velhos que eu.
Como era ser mulher, jovem e dar aulas?
Com 16 anos aparentava ser mais velha. Sou alta, tenho 1,75m, e me travestia de mais velha. Colocava sempre roupas mais clássicas e usava aliança na mão direita para dizer que era noiva e não ser assediada pelos alunos. Era muito brava, não deixava ninguém brincar comigo, mas, apesar disso, era muito querida pelos alunos. Dei aulas por oito anos e fui paraninfa de todas as turmas.
Você ocupou a um cargo de liderança mundial na francesa Schneider Electric. Qual caminho percorreu até chegar a uma multinacional?
No fim da faculdade, recebo um convite de um empresa, onde trabalhei durante 15 anos, que na época era líder de mercado no Brasil da área de automação predial. Quando fiquei grávida, decido que, além da licença-maternidade, vou tirar o primeiro ano da minha filha como sabático e saio da empresa, onde era diretora comercial. Depois do ano sabático, já volto direto para a Schneider Electric. Lá monto a área de building automation e nela fico durante dois anos. Até que o presidente me faz o convite para comandar a transformação digital da empresa no Brasil. Foi uma grande transformação na minha vida. Deixava de ser engenheira e comercial, o que fiz nos 18 anos anteriores, para virar corporativa, reportar ao CEO e fazer o que não tinha a menor ideia do que era. Isso em 2014. Então, virei digital customer experience Brasil, onde fiquei por um ano. Depois sou convidada para comandar a área na América do Sul e preciso passar uma temporada sozinha em Hong Kong, onde fica a sede do setor. Deixo a minha filha de três anos com o meu marido e a minha mãe no Brasil, pela primeira vez, nunca tinha ficado longe nem um fim de semana, e vou morar em Hong Kong por quatro meses sozinha, sem direito a retornar ao Brasil. Foram os quatro melhores e piores meses da minha vida. Volto com tudo perfeito, com todos vivos, felizes, saudáveis, a minha filha muito bem cuidada e provavelmente nem sentindo a minha falta – esta é a parte mais triste da minha história. Aí assumo a América do Sul, mais um vez faço um trabalho de destaque e em janeiro de 2016 assumo a diretoria global desta área, responsável pelos 99 países.
Como você se envolveu com diversidade e inclusão?
Empoderamento feminino entra na minha vida aos seis anos, quando meus pais se separam. Naturalmente, há 40 anos, mulher se separar com dois filhos era muito difícil. Ali ganho um grande exemplo de mulher empoderada. Provavelmente baseada nisso, cresci acreditando que uma mulher pode tudo e foi esse o modelo da minha vida. Cresci com uma mãe diferente das outras, que eram donas de casa, mais submissas, e eu tinha uma mãe sozinha que cuidava de dois filhos, trabalhava, decidia tudo. Quando trabalhava na Schneider, por ser mulher e engenheira, acabei ganhando destaque em movimentos feministas e trabalhos na área de diversidade e inclusão. Passo a ganhar muita visibilidade com isso. O fato de ter sido manequim, modelo, professora e da área comercial me facilitou a vida, porque não tinha problema em subir no palco, pegar o microfone e falar em público.
De que forma a consultoria para a ONU Mulheres surgiu na sua vida?
Em junho do ano passado, a Schneider toma a decisão de que todos os diretores globais precisavam se fixar em Boston, Hong Kong ou Paris. Recebo esta proposta, mas ela não faz meus olhos brilharem, então saio em agosto. Me matriculo no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) com a intenção de obter certificação como conselheira, e em setembro abro a minha consultoria, CMI Bussiness Transformation. A sigla CMI é pensada propositalmente para parecer ser Consultoria Maristella Iannuzzi, mas no cartão eu mostro o verdadeiro significado: chance your mindset (em português, mude a sua mentalidade). Aí comento com a minha amiga Adriana Carvalho, que é gerente da ONU Mulheres no Brasil, que tinha aberto a minha consultoria para dar palestras e no dia 1º de outubro a ONU Mulheres contrata a minha consultoria.
Em que consiste a consultoria?
No programa Ganha-Ganha da ONU Mulheres, existe uma plataforma chamada Princípios de Empoderamento das Mulheres. Estes sete princípios foram criados em 2010, em parceria com o Pacto Global, para direcionar especialmente as empresas sobre o que devem fazer para confirmar que empoderam a mulher. O princípio número 1, por exemplo, fala que a alta liderança tem que apoiar o crescimento da mulher em cargos de liderança. Outro princípio fala em dar direitos iguais para homens e mulheres. Se tenho uniforme, ele tem que ser diferente para homem e mulher, não tenho que vestir mulher como um saco. Se tenho alojamento, tenho que ter banheiro para homem e mulher. Esses sete princípios são iguais no mundo inteiro e podem ser utilizados de duas formas. Funcionam como mapa para as empresas que estão começando do zero ou como termômetro para as empresas que acham que estão fazendo muita coisa. No momento em que se torna signatária, como ocorreu com a ArcelorMittal, por isso vim a Belo Horizonte, a empresa vai participar de oficinas fornecidas pela ONU de forma gratuita, receber material para compartilhar com os colaboradores, tem eventos. Passa a fazer parte de um grupo que vai receber conteúdos distintos. Como consultora, tenho desde que convencer uma empresa a assinar, e são grandes empresas e altas lideranças, porque tenho uma pegada de conversa de business, até palestras, oficinas e análises para entender a maturidade da diversidade dentro da companhia.
Como esse assunto tem sido tratado pelas empresas brasileiras?
Levando em consideração o que falávamos há 10 anos, agora está maravilhoso. Mas levando em consideração nossa meta de, em 2030, atingir 50% de mulheres em cargos de liderança, estamos muito longe. Hoje, temos em torno de 26%. Se continuarmos nesse ritmo, vai demorar 180 anos para atingirmos a meta. Por isso, os Princípios de Empoderamento das Mulheres são muito importantes para que as empresas tomem consciência da situação. O que mais ocorre no mundo corporativo é o cara acreditar que na empresa dele está tudo bem, ele vê mulher na empresa dele, diz que não é machista, que não tem preconceito, mas não percebe que praticamente não tem nem uma mulher na diretoria dele. Quando tem, é no recursos humanos, comunicação ou jurídico. Porque é essa herança que a gente traz ao longo da história, levando em consideração que, há 50 anos, o marido tinha que assinar um documento para a mulher trabalhar. Não é culpa de ninguém, mas este é momento de transformação, de dar o tranco para a equidade. Estamos falando de equilíbrio, de igualdade, não estamos falando de dominar o mundo. Existe uma visão preconceituosa, inclusive de mulheres, de que feminista é revoltada, que vai sair na rua queimando sutiã, que se acha melhor que o homem e quer dominar o mundo. Não é isso, feminista é mulher que acredita que pode ter os mesmos direitos que qualquer homem, em qualquer lugar e em qualquer posição. Posso ser uma feminista dona de casa e isso não tem problema nenhum. Mulher empoderada não é só executiva de tailler, salto agulha e pasta na mão, isso é um estereótipo. Mulher empoderada é aquela que toma as decisões que quer, que tem voz.
No momento em que alcançarmos a meta de ter 50% de mulheres em cargos de liderança, o que isso pode ser transformador para a sociedade?
Quando se fala de experiência do cliente, significa criar uma jornada prazerosa de tal forma que quem está do outro lado da mesa seja atendido, fidelizado e retorne. Para que este ciclo se feche, preciso falar a língua dele. Para falar a língua dele, deste lado de cá da mesa tenho que ter todas as tribos. Quem sabe falar com negro é negro, quem sabe falar com mulher é mulher, quem sabe falar com LGBT é LGBT, quem sabe falar com homem é homem. Quanto mais diversa for a composição do outro lado da mesa, mais chance eu tenho de acertar na jornada da experiência do meu cliente. Diversidade não é mais um caso só de direitos humanos, diversidade é também uma questão de sobrevivência dos negócios. Existem pesquisas do Banco Mundial que comprovam que 70% do poder de decisão de compra no mundo de qualquer produto está na mão de mulheres. Preciso falar mais alguma coisa? Quanto tempo você acha que um negócio com uma diretoria de homens vai sobreviver, por melhor que eles sejam? Não estamos colocando em dúvida a qualidade deles, mas eles não pensam como as mulheres. Assim como não podemos colocar só mulheres, por isso é importante o equilíbrio. Uma segunda grande preocupação, talvez a mais importante: não adianta colocar para dentro, por isso se fala em diversidade e inclusão. Se a pessoa não se sentir incluída, ela vai embora. Antes de colocar para dentro, você tem que ser uma empresa inclusiva, tem que preparar esse campo. Conheço empresas da área florestal em que mulheres não podem trabalhar quando vão a campo porque não tem banheiro químico. Quando você fala diversidade e inclusão tem que ser de verdade, tem que ser genuíno, senão fica na história de tirar foto para ficar bonito.
Quais são os desafios de se falar sobre o tema para a geração atual?
O grande desafio é alinhar expectativas. Naturalmente, pela idade eles acreditam que podem tudo e a gente sabe que no mundo não funciona assim. Temos que mudar a cabeça de quem está na liderança, e eles são homens, héteros, brancos, entre 40 e 50 anos. Não temos que fazer nada no grito, temos que ter o apoio desse grupo e convencê-lo da importância desta mudança. Este é o grande desafio desta moçada, saber canalizar a energia deles, mas contendo a ansiedade. Precisamos ter um pouco mais de jogo de cintura, porque no grito não vamos conseguir nada.
Você já viveu alguma situação no trabalho de preconceito por ser mulher?
Tive um caso de um vice-presidente que disse: ‘Se eu fosse fulano, não teria te contratado. Com esta idade, daqui a pouco você me aparece grávida’. Ele estava falando em tom de brincadeira, na frente de todo mundo, e todo mundo riu. Eu já era responsável pela área de diversidade, e ele era meu chefe. Olhei para a cara dele e disse: vou ignorar o que você disse, você não teve a intenção de me ofender, mas tem que tomar cuidado com o que fala. Hoje teria uma postura completamente diferente, faria uma denúncia, porque fui extremamente assediada, foi assédio moral. Lembro-me também de quando estava na faculdade de engenharia e comecei a namorar um rapaz. Entrei na sala de mãos dadas com ele e o professor, em cima do palco, falou: ‘Italiana arrumou namorado, então pode parar a faculdade’. E eu ri. Para mim, aquilo era piada, sem maldade nenhuma. Mas hoje precisamos mostrar que isso não é normal, não temos que rir.
O que dizer para as mulheres que querem ocupar cargos de liderança?
Baseada na minha história, digo duas coisas. Primeiro, por mais medo e insegurança, sempre me joguei. Nunca esperei estar 100% pronta para aceitar desafios, porque acredito em mim. Segundo, sempre acreditei que a minha rede de apoio me empodera muito. Quando falo de rede de apoio, falo de pai, mãe, marido e hoje até a minha filha de 10 anos. Reconhecer que precisa de ajuda não é vergonha para ninguém. Sempre tive a humildade de pedir ajuda e conselhos.
Sobre o dilema de tantas mulheres que se dividem entre carreira e família, como você
lida com esta realidade?
Com o passar dos anos, não ganhei só rugas, aprendi na minha vida que eu nunca vou ser a melhor mãe, a melhor profissional, a melhor esposa, a melhor filha e a melhor amiga simultaneamente. Em algum momento vou ser melhor mãe e vou pisar na bolsa nas outras áreas, e assim sucessivamente, e isso não é um problema, todo mundo vai sobreviver. Vivo isso até hoje. Existem alguns momentos dos quais não abro mão, por exemplo, o aniversário da minha filha. Nesse dia não existe dinheiro ou compromisso que me faça sair de casa. Claro que não dá para imaginar que uma menina que está para ser promovida a gerente vai falar isso para o chefe. Provavelmente, nesta época eu iria, choraria e sofreria. A decisão vai muito da realidade que você vive. Hoje, como consultora, fecho a minha agenda no dia no aniversário da minha filha. Mas, no início, talvez você tenha que ser mais boa profissional do que mãe presente para crescer na carreira, mas o fato de não estar na escola assistindo à apresentação da sua filha não significa que você não é uma boa mãe. Fiquei quatro meses em Hong Kong e fui uma boa mãe.
Quem para você é uma mulher inspiradora?
A Tânia Cosentino, que foi minha CEO na Schneider Electric e hoje é CEO da Microsoft. Ela foi uma grande mentora e é uma pessoa que carrega a bandeira da diversidade onde quer que esteja.