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Estado de Minas entrevista/Fernando Trindade - 71 anos, médico

Referência em excelência

Oftalmologista mineiro é destaque em cirurgia de catarata e hoje atua ao lado dos filhos, que seguem o mesmo caminho, com a criação de implante que é sucesso mundial


06/09/2020 04:00

 Bruno, Fernando e Cláudio Cançado Trindade(foto: juarez rodrigues/em/d. apress)
Bruno, Fernando e Cláudio Cançado Trindade (foto: juarez rodrigues/em/d. apress)
A catarata é a principal causa de cegueira evitável no mundo, e a cirurgia é uma das mais bem-sucedidas da  medicina, sendo a mais realizada no mundo. O oftalmologista mineiro Fernando Cançado Trindade, membro titular da Academia Mineira de Medicina e do International Intraocular Implant Club, é referência no assunto. Atualmente, atua ao lado de seus dois filhos – Bruno, de 41 anos, e Cláudio, de 39. Ambos cresceram no meio da medicina. Bruno se inspirou na beleza e leveza do trabalho do pai, e escolheu medicina e oftalmologia, de forma muito natural. Já Cláudio entrou para faculdade sem muita certeza do que queria, era muito novo, e se assustou muito com as outras áreas da profissão, por isso a escolha pela oftalmologia foi certeira, e viu ali sua redenção. A cada ano se encanta mais com a área de atuação. Não precisa dizer que os jovens médicos são craques no assunto. Afinal, ser um excelente cirurgião de catarata na clínica IOCT é obrigação, e filho de peixe, peixinho é. Mas eles vão além, Bruno é especialista em cirurgia de transplante de córnea e Cláudio, aos 34 anos, inventou o implante estenopeico, que hoje é feito em 56 países, e pode evitar o transplante de córnea. Ambos herdaram do pai a paixão e o talento para a profissão, já fizeram doutorado e pós-doutorado e se casaram com colegas que também atuam na clínica, Daniele, que é especialista em plástica ocular, e Renata, em glaucoma.
 
De onde veio o desejo de ser médico?
Sempre quis ser médico. Gosto muito de trabalhos manuais, trabalhar com coisas pequenas. Na minha época de ginásio, tínhamos aula de artes, onde fazíamos trabalhos manuais com coisas muito pequenas e delicadas, eu delirava com tudo aquilo, construir coisas. Sempre gostei de ciências biológicas, então já fui focado em atuar com cirurgia. Não sofri influência de ninguém, porque nunca tive nenhum parente médico. Meu pai foi dentista, trabalhou até os 90 anos e viveu até aos 100.

Por que a oftalmologia?
Minha influência se deu na faculdade, quando tive aulas com o professor Hilton Rocha. Ele, sim, foi a influência maior e mais direta. Naquela época, começou o primeiro curso de pós-graduação em oftalmologia, e as aulas eram com ele. Era um profissional brilhante, um professor com uma didática apurada e influenciou muito a nossa geração. Felizmente, passamos na prova e começamos na oftalmologia. É uma especialidade fantástica, ela é teoria e prática, pode clinicar, fazer cirurgia, é um campo amplo, e trata de todas as idades, sexos. Não tem restrição nenhuma, é uma especialidade de precisão e muito agra- dável.

O que o levou para a cirurgia de catarata?
Meu turn point foi quando fiz o pós-doutorado nos Estados Unidos, e lá fiz o curso de cirurgia de catarata, que era moderna na época, o implante intraocular, no início da década de 1980. Quando voltei, já era professor da faculdade aqui, e formei muitas gerações de cirurgiões de catarata de vários estados.

Como a pessoa identifica que está começando com a catarata?
Perda da qualidade da visão. A pessoa começa a enxergar embaçado. Todo mundo vai ter catarata mais cedo ou mais tarde. É como cabelo branco. Não é patologia, é acontecimento da vida.
Qual o momento certo para a cirurgia?
O momento mais apropriado é quando a pessoa nota que a visão está prejudicando sua qualidade de vida. Quando começamos a operar, as pessoas esperavam a catarata ficar madura para fazer a cirurgia, mas isso é um conceito totalmente ultrapassado. Hoje, opera-se quando a pessoa está com algum tipo de insatisfação ou quando detesta usar óculos, e faz a cirurgia precocemente, com finalidade refrativa.

Como é a cirurgia?
O olho humano tem duas estruturas que agem como lentes para focalizar a luz na retina. A primeira é a córnea, que fica na superfície do olho, e a segunda, é o cristalino, que fica dentro do olho. O cristalino é quase uma gelatina e com o passar dos anos sofre uma série de modificações em sua composição e estrutura que causam a perda da transparência à luz. Ele endurece e escurece. Essa opacidade é chamada de catarata, que atrapalha a visão e só se resolve com a cirurgia, que tira o cristalino e coloca uma lente artificial no lugar.

E a cirurgia com finalidade refrativa?
A pessoa chega aos 50 anos totalmente dependente de óculos, com um grau de +3 para longe e 6 para perto e, muito infeliz com os óculos, tem a possibilidade de fazer essa cirurgia do cristalino, precocemente, sem ele estar opaco, com finalidade de retirar o grau. Chama-se facectomia refrativa, ou cirurgia do cristalino disfuncional. A melhor indicação é para quem tem hipermetropia, que são as pessoas que não enxergam nem de perto e nem de longe, e é totalmente dependente de óculos. Mas isso é relativamente recente. E quem faz essa cirurgia já está automaticamente operado de catarata. Pode-se dizer que matamos três coelhos com a mesma cajadada.

Todo mundo pode fazer?
São casos específicos, não é para todo mundo. Para pessoas com miopia a indicação é outra. É bom reforçar que toda cirurgia tem suas indicações e contraindicações, tem limitações, riscos e tudo isso tem que ser pesado.

Qual a cirurgia indicada para quem tem miopia?
A que falamos acima é a cirurgia refrativa no cristalino. Para os míopes, a indicação é a cirurgia refrativa a laser na córnea, para pessoas na faixa dos 30 anos. Tudo é com exames e avaliações. Não pode ser indicada a grosso modo. Cada caso tem que ser analisado individualmente.

Quais os riscos da cirurgia de catarata?
Essa é uma cirurgia delicada. O leigo, e às vezes até o médico, acham que se trata de uma cirurgia banal. Ela não é banal. É rápida, feita em grande número – anualmente, operam-se 25 milhões de pessoas no mundo –, mas exige muita precisão, controle emocional, total ciência do que se está fazendo, experiência. Porque as cataratas são diferentes. É como ir daqui para o Rio de Janeiro de avião. Tem dias em que a viagem é tranquila e tem dias em que tem turbulência. As cirurgias são muito diferentes uma da outra. A habilidade manual é muito importante, o equipamento e a indicação.

E os mutirões de cirurgia de catarata que fazem, e várias pessoas chegaram a perder a visão?
São cirurgias feitas em massa, a toque de caixa, sem controle. Deixam um rastro de destruição enorme. A cirurgia não acaba quanto termina. Ela continua, o cirurgião tem que ver o paciente depois. Esses mutirões são feitos geralmente pelas prefeituras, com interesses políticos, e desnecessários. Isso deveria ser proibido, porque o índice de complicações é intolerável e inaceitável. As condições de assepsia têm que ser ri- gorosíssimas. Quando essa cirurgia dá errado é que as pessoas veem o peso e a importância que ela tem.

Antes se operava em hospital e o senhor foi o primeiro a fazer a cirurgia em uma clínica. Teve muita resistência?
Foi no início da década de 1980. Levei para a minha clínica, onde criei um bloco cirúrgico com todo o rigor e equipamentos que têm em um CTI. Entendi que isso era importante para preservar a saúde do paciente da catarata, porque são pessoas saudáveis, não há necessidade de usar um hospital, que é cheio de outras cirurgias que requerem um pós-operatório mais duradouro, pacientes com outras enfermidades. Para que ocupar o hospital com pacientes de catarata que saem horas depois? É muita mais prático, lógico e a satisfação do paciente é muito maior quando opera em uma clínica. A maior oposição foi por parte dos donos de hospitais, que acharam isso uma loucura. Os pares apoiaram, e fizeram o mesmo. Os clientes foram a mola propulsora dessa mudança. Um ambiente muito melhor que hospital, sem pessoas doentes em volta, um clima diferente, um ambiente mais le- ve. A cirurgia não gera nenhuma agressão ao corpo, não interfere no funcionamento do organismo. A estrutura hospitalar é desnecessária.

Fale do avanço tecnológico e o que mudou na cirurgia.
Antes, a cirurgia demorava quase uma hora; hoje, fazemos em 10 a 15 minutos. A primeira referência que temos de catarata é de 4,5 mil anos, no Egito. Eles empurravam o cristalino quando a pessoa perdia totalmente a visão. Era um processo rudimentar. Na década de 1960, a cirurgia demorava cerca de uma hora e a incisão era enorme, abria-se o olho em 180 graus. O corte era de aproximadamente 16mm. Na década de 1980, a incisão foi reduzida pela metade, 8mm. Em 1984, foi lançada a lente intraocular dobrável de silicone, marco importante, a incisão foi reduzida para 3,2mm, sem necessidade de sutura. Nessa mesma década, a técnica de facoemulsificação (trituração e aspiração do cristalino), introduzida pelo norte-americano Charles Kelman, ganhou grande aceitação e passou a ser feita de rotina. Tive o privilégio de receber sua visita em nossa clínica aqui em BH, por duas vezes, e operamos alguns casos juntos. Atualmente, as cirurgias são feitas com incisão de 2,2mm. Pelo fato de a incisão ser muito pequena o olho fica muito mais protegido e o pós-operatório é mais seguro e rápido. Apesar de ser uma cirurgia rápida, ela é extremamente sofisticada, e altamente dependente de tecnologia, o cirurgião tem que ter muito conhecimento técnico, experiência, habilidade manual (o campo operatório é mínimo e as cirurgias são feitas sempre com o microscópio cirúrgico) além de controle mental.

E as lentes?
Felizmente, hoje dispomos de uma grande variedade de tipos de lentes intraoculares, de diversos materiais, cuja indicação varia de caso para caso. Tal assunto deve ser sempre criteriosamente discutido com o paciente antes da cirurgia.

Cláudio, você criou, aos 34 anos, o implante estenopeico. O que é este tratamento e para que serve?
É um novo dispositivo intraocular que criei, um filtro (patenteado no Brasil, EUA e União Europeia e produzido pela empresa alemã Morcher), o qual deve ser cirurgicamente implantado dentro do olho, capaz de melhorar a visão de pessoas portadoras de alguns tipos de doenças da córnea. Muito indicado para pessoas com ceratocone, inclusive as que já foram operadas e não ficaram com a visão totalmente recuperada. Esse filtro é preto, e age na entrada de luz. E a grande vantagem é que sua colocação é feita como se faz uma cirurgia de catarata, ou seja, uma técnica bastante dominada. O filtro é no mesmo formato e tamanho e colocado no mesmo local da lente da catarata, só que é preto. Hoje, já vem sendo usado em 56 países com grande sucesso, e em muitos casos evita o transplante de córnea. Quando temos alguma imperfeição na lente externa (córnea), se não for exagerada, em vez de tratar a córnea deixamos como está e fazemos uma abordagem no cristalino. Se não existisse esse implante estenopeico, essa abordagem no cristalino deixaria muito a desejar. É indicada para um nicho pequeno de pacientes, pessoas que estão na fila do transplante de córnea e não têm outra opção. E os resultados são excelentes.

Bruno – É importante dizer que a cirurgia que o Cláudio inventou carrega, na sua origem, toda a evolução da cirurgia de catarata. Todo o conhecimento que temos dos últimos 50 anos da cirurgia de catarata e toda evolução que ela teve nesse período é o ponto de partida desse implante. Porque ele nada mais é que um implante do mesmo material e mesmo desenho usado na cirurgia de catarata, colocado no mesmo local. A técnica é a mesma. Estamos pegando a melhor cirurgia da medicina e da oftalmologia e utilizando-a para corrigir defeitos da córnea. 

Quais as opções que temos para corrigir defeitos da córnea? 
Antes da existência desse filtro era a lente de contato rígida e transplante de córnea. A lente de contato é muito desconfortável e muitas pessoas não a su- portam. Esse implante é indicado para essas pessoas que não se adaptam à lente. A cirurgia entra onde a clínica acaba. A rejeição não assusta o cirurgião. O transplante é uma cirurgia extremamente complexa, imprevisível, tem uma fila de doação, e os riscos são mais graves, porque a incisão é muito grande.

O que o levou a fazer essa pesquisa?
Cláudio – Foi um clique. Meu pai sempre falou da importância da pupila, e como uma pupila pequena ajuda os pacientes. Essa cirurgia nada mais é que criar uma pupila artificial pequena. Tem uma sobreposição muito interessante com um hobby que eu tenho, que é a fotografia. O pulo do gato desse implante é o fato de o material ser preto. Quando bloqueamos a visualização da parte de trás do olho, criamos um problema, e o clique que eu tive foi que eu queria que esse material preto fosse transparente à luz infravermelha. E esse conhecimento da luz infravermelha veio dos meus estudos de fotografia. Foi uma sobreposição de fatores e de interesses e dessa doutrinação prolongada sobre o tamanho da pupila.

Por que o tamanho da pupila é tão importante?
Fernando – Porque aprofunda o foco. Existe uma situação na senilidade chamada miose senil, que é uma dádiva divina. Talvez seja a única coisa interessante na velhice: a pupila diminui de diâmetro, e com isso aprofunda o foco. É muito comum ver pessoas mais velhas que operam de catarata e não precisam usar óculos para ler, e a lente que colocou foi só para longe. Mas, com a pupila pequena aprofundou o foco e consegue ver de perto.

A cirurgia se baseia em reduzir a pupila?
Também, mas não apenas nisso. Ela dá um resultado bom quando tem uma combinação com a cirurgia do cristalino. Além de reduzir a pupila, neutralizamos o grau errado da córnea dentro do olho. Algumas doenças provocam excesso ou deficit de grau na córnea, ela fica muito curva ou muita plana, e compensamos esse excesso ou déficit acrescendo grau ao cristalino, substituindo-o por um artificial com mais ou menos grau. A combinação dessa troca do cristalino com esse implante (colocação do filtro de pequena abertura) é que dá o resultado espetacular nos casos que são bem indicados.

Ela substitui o transplante de córnea?
Nem sempre. É capaz, sim, de eliminar o transplante de córnea nos casos indicados. Mas vale ressaltar que nunca vai acabar a necessidade do transplante de córnea, porque várias pessoas não se encaixam na indicação desse implante, pois existem diferentes tipos de doenças e imperfeições na córnea. Mas é uma luz no fim do túnel. As duas melhores indicações são para pessoas com ceratocone e pacientes pós-transplantados que não obtiveram um bom resultado.

Esse implante substitui a cirurgia de catarata?
Nos casos em que existem catarata e alterações da córnea, que é relativamente comum e às vezes o paciente nem sabe que tem, pode ser muito útil. Em caso de catarata traumática; em caso de acidente, com laceração grande na córnea; perda de parte da íris, também é ótima indicação.

Como é trabalhar com seus filhos?
Acho excelente. Este sentido de continuidade é fantástico, só quem tem isso é que conhece esta sensação de satisfação que temos. Eu parando de trabalhar, tem gente que vai continuar o meu trabalho, e melhor do que eu. Porque os filhos são melhores do os pais, e têm obrigação de ser. Eles não estão concordando muito com isso, mas são. O sentimento de continuidade é extremamente gratificante, ainda mais vendo que estão progredindo em passos rapidíssimos na profissão. Essa sensação de sucesso e amor pela profissão, de vibrar com o que faz, é muito bom, e para mim é uma maneira de estar sempre atualizado, de me manter vivo. E as noras juntas, é muito bom. E a continuidade de alto nível. Todos estão sempre participando de eventos da especialidade como convidados, sempre com muita alegria e disposição. Em resumo, só tenho que agradecer muito à vida por estes mais de 40 anos ininterruptos de atividade profissional. Aprendi muito e continuo aprendendo, o que é sempre um privilégio. 


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