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Estado de Minas ENTREVISTA

Como ajudar os jovens a lidar com sentimentos provocados pelo isolamento na pandemia

A psicóloga Renata Borja fala sobre a necessidade de alinhar expectativas com a realidade e tentar enxergar o sofrimento como aprendizado


18/10/2020 04:00 - atualizado 18/10/2020 10:56

(foto: Juliana Flister/Divulgação)
(foto: Juliana Flister/Divulgação)

Ainda é cedo para apontar os impactos da pandemia na vida dos jovens, mas que eles existem, existem. O isolamento em casa, sem frequentar a escola e encontrar presencialmente os amigos, tende a gerar efeitos psicológicos preocupantes, que começam a aparecer no consultório de Renata Borja, de 48 anos. A psicóloga prevê aumento de casos como transtorno de ansiedade e depressão nos próximos anos. Antes mesmo da pandemia, ela vinha desenvolvendo estudos para entender o comportamento dos jovens, motivada pelos relatos de pacientes entre 13 e 20 anos que se sentem fracassados e ansiosos. Uma das precursoras da terapia cognitivo-comportamental em Belo Horizonte, Renata fala sobre a necessidade de alinhar expectativas com a realidade e tentar enxergar o sofrimento como aprendizado.
 
Você estudou psicologia e letras. Por que escolheu essas duas áreas?
Desde novinha, minhas amigas que tinham pais separados chegavam com problemas e eu ajudava a resolvê-los. Tinha uns 12 anos quando falei para a minha mãe: Acho que quero ser psicóloga para ajudar filhos de pais separados, eles são muito complicados. Então, a psicologia está dentro de mim desde sempre. Os livros de psicologia também faziam parte do meu cotidiano. O meu pai, que é médico radiologista, e a minha mãe, educadora nata, tinham interesse nessa área para promover autoconhecimento e bem-estar. Comecei a estudar psicologia e, como sempre gostei de literatura, depois fiz vestibular para letras. Letras faz parte do meu trabalho com terapia, a questão do significado das palavras. Se um paciente disser, por exemplo, que problema é algo que não tem como ser solucionado, temos que tratar esta distorção, porque problema é uma dificuldade possível de ser solucionada. Letras me ajuda muito.

Você é uma das precursoras da terapia cognitivo-comportamental em Belo Horizonte. Quais são as vantagens dela?
Na hora em que me deparei com esta abordagem, vi que tinha tudo a ver comigo, é tudo em que acredito. Acredito no poder das palavras, do pensamento e na possibilidade de questionar e mudar crenças. O nosso objetivo é fazer perguntas para o paciente de forma que ele traga respostas que, muitas vezes, racionalmente, não consegue dar. Buscamos o que ele tem de profundo, que não traz verbalmente de forma espontânea. Trabalhamos com o paciente as crenças e a resposta emocional a essas crenças. Vamos ajudar a coordenar as emoções, deixar de sentir não tem como. As pessoas têm a ideia de que transtorno de ansiedade e ansiedade são a mesma coisa, assim como depressão e tristeza. Aí ficam com medo de sentir tristeza, achando que as emoções são negativas, e isso acaba exacerbando os sintomas. O problema não é a emoção, é a forma como você reage a ela, e isso pode ser treinado. Através da mudança de pensamento e do ajuste emocional você pode usar as emoções de forma mais assertiva. Na grande maioria das vezes, você aprende a escolher um novo tipo de comportamento.
 
Na sua pesquisa de mestrado, você estudou o que significa ser bem-sucedido. Como chegou a esse tema?
Quando decidi fazer mestrado, achei interessante estudar diferentes pensamentos dos diferentes grupos da nossa sociedade. Entendia a psicologia da pessoa em si, mas queria ter respostas da psicologia de grupo. Comecei a observar os jovens que atendia com problemas muito graves. Sou psicóloga clínica desde 1997 e, a partir de 2010, os casos começaram a chegar para mim muito mais graves (bipolares, depressivos, borderline). Chamava muito a atenção ver meninos de 13 a 20 anos se cortando, se matando, queria entender o que estava acontecendo. Aquilo começou a me assustar. Uma frase recorrente dos jovens no consultório era: estou fracassado. Pensava: como um menino de 15 anos, que nem viveu a vida direito, pode dizer isso?. Tem alguma coisa errada, muito errada, e é na sociedade. Por isso, fui fazer mestrado on-line na Universidade Aberta, em Portugal, que terminei em 2017. Meu estudo é intercultural e intergeracional e tenta entender o que é sucesso para as pessoas.
 
O que de mais relevante você descobriu?
Tirei várias conclusões muito significativas. Percebi que o que é vendido como sucesso na mídia é a soma de dinheiro, poder e status (ou fama). Só que as pessoas não me responderam isso. Quando falam em dinheiro, se referem no sentido de dignidade, de ter uma vida tranquila, poder viajar, comprar o que quiserem. Fama praticamente não apareceu, poder também não. Pedi para os participantes listarem itens, por ordem de prioridade, relacionados ao que significa ser bem-sucedido. Eles apareceram na seguinte ordem: primeiro, família; depois, realização pessoal (fazer algo que tenha sentido ou significado), trabalho, relacionamentos, superação, dinheiro, fama e poder. O que concluí com isso é que, na nossa sociedade, as pessoas estão perseguindo algo que ensinaram a elas, mas não é o que querem. Estão perseguindo o sucesso de forma automatizada, sem se dar conta de que podem ir contra seus valores. Aí vão surtar mesmo. A questão é que, se a ideia de sucesso é irrealista, muito grandiosa, a chance de fracassar vai ser maior. Você cria alta expectativa de que vai ser o cara e, de repente, se dá conta de que não é tão simples assim, ninguém vira milionário do dia para a noite. É preciso ajustar a noção de sucesso que a sociedade impõe ao que você consegue fazer. Mas a cobrança nos jovens é alta.

Em 2019, você fez outra pesquisa com jovens. O que avançou em relação ao estudo anterior?
Fiz essa pesquisa em uma escola privada com alunos de 14 a 16 anos, e consegui ver o quanto os jovens estão doentes. Quando perguntei se eles se consideram ansiosos, 23% responderam muito; 40%, totalmente. Depois perguntei se eles acham que a ansiedade prejudica: 22% disseram muito; 33%, totalmente. Os jovens estão com a ideia de que as emoções são ruins, que atrapalham, e isso é preocupante. Interpretam a ansiedade como algo negativo, que não devem sentir, e essa ideia é péssima para a nossa so- ciedade. Se você se sente ansioso e começa a pensar que não pode se sentir assim, a chance de desenvolver um transtorno vai aumentar. Você pode sentir tristeza porque teve uma frustração, pode chorar e depois ficar bem. Por que não? Quando eu era criança, ninguém ficava avaliando as emoções como hoje. Eu tinha ansiedade na hora da prova, mas não ficava obcecada com isso.

Como transformar a ansiedade em algo positivo?
Ansiedade gera atenção, mas depende de onde você vai colocar o foco, e isso pode ser uma decisão. Se aprendo que a ansidade pode ser legal, uso-a a meu favor. Se focar no trabalho que precisa executado ou na resolução de um problema, vai funcionar. Agora, se foco na emoção em si e na percepção de que ela é negativa, posso ficar desorientado. Hoje, vemos muitas pessoas em pânico com o que sentem, como se sentir não fosse permitido. Sentir é permitido e necessário, a forma como você vai utilizar a emoção é que tem que ser modificada.
 

"Viktor Frankl, psiquiatra austríaco que passou por campos de concentração, diz que existem três coisas que dão sentido para a vida: alguém para amar, uma obra, e se dedicar ao exercício da espiritualidade"

 

Na pandemia, os jovens estão trancados em casa, sem ir à escola nem conviver com amigos. De que forma isso impacta a vida deles?
O jovem tem a tendência de desorientar se as coisas não acontecem do jeito que ele quer. Pensa nas meninas que não tiveram festa de 15 anos ou nas turmas que estão se preparando para o vestibular. Vamos ver os efeitos disso daqui a alguns anos, mas somos seres sociáveis e precisamos das relações. Uma pesquisa de Harvard comprovou que o que torna a vida boa são os relacionamentos. As pessoas que se relacionam mais vivem mais e com mais qualidade de vida, menos doenças, menos problemas, ou seja, têm uma vida mais longa e mais saudável. Aí vem a pandemia e pega os jovens, que estão no auge do relacionamento, impedindo que eles saiam em grupo. Isso os desorganiza emocionalmente, então vamos ter aumento dos transtornos de ansiedade, depressão. Devagarzinho, esses casos estão chegando ao meu consultório. Tenho atendido alguns adolescentes muito graves. Os pais têm me procurado neste momento dizendo que não sabem o que fazer, como reagir, como podem ajudar.

O que você sugere fazer?
Os pais precisam fazer a validação emocional. O que isso significa? Dizer para os filhos que está ok sentir aquilo. É não fazer julgamento em relação ao que o filho está sentindo, nem chamá-lo de coitadinho nem dizer que ele está errado. Converse sobre a situação que está gerando tristeza, pergunte o que está acontecendo. Se você fala que aquilo não é motivo para tristeza, invalida o sentimento e o jovem começa a achar que é errado sentir. Falo com os pais para validar suas próprias emoções. Assim, a tendência é conseguir validar as emoções dos filhos. Também falo para ter mais paciência. Sei que está todo mundo sobrecarregado, mas vamos estabelecer um horário para a família estar junta, proponha um jogo, assista a um filme. Vamos propor fazer atividade física em conjunto. Dá para utilizar a internet em alguns horários do dia, desde que não seja excessivo, para acessar jogos virtuais, fazer pesquisas, cursos, visitar museus. Você pode estimular os jovens a fazer um clube virtual de livros ou séries, a fazer encontros pelas plataformas on-line com os amigos. É preciso estimular novos contatos sociais.

Como você enxerga que a pandemia vai nos transformar e como podemos usar isso de forma positiva?
Antes da pandemia, pai e filho viviam conectados nas redes sociais e desconectados dentro de casa. Podemos aproveitar este momento para resgatar relações que estavam meio perdidas. Começar a criar hábitos familiares de forma a nos conectarmos com as pessoas mais próximas. Acho que a pandemia ajudou a resgatar contatos. Meus pacientes têm relatado grandes melhoras no relacionamento familiar. Outra questão é usar a tecnologia de forma mais assertiva. Todo mundo, de certa forma, se informatizou e, agora que aprendemos a lidar com a tecnologia, vamos usá-la de forma mais saudável, fazer contatos, cursos, ajudar as pessoas. Eu já atendia on-line porque tenho muitos pacientes fora do Brasil, mas a pandemia me obrigou a fazer todos os atendimentos on-line. Muitas vezes, o paciente, por estar no ambiente dele, dá mais retorno do que quando vem ao consultório.

E do ponto de vista psicológico?
Agora, mais do que nunca, vamos ter que olhar mais para as pessoas. Muitas empresas falindo, gente sem dinheiro. O impacto econômico gera diretamente impacto emocional. Acho que podemos usar isso para nos tornar uma sociedade mais solidária, olhar para o próximo, olhar para o mundo à nossa volta, ser comunidade, nos entender como parte de um só mundo. O momento é positivo para fazer esta transição. A nossa sociedade está muito adoecida, todo mundo está ativado negativamente. Então, espero que isso traga uma nova percepção, de que somos importantes uns para os outros, de que precisamos preservar os relacionamentos.

Qual mensagem você deixa para os jovens?
Todo sofrimento traz crescimento se você souber utilizá-lo. Estamos passando por um sofrimento social, um trauma generalizado, e isso vai gerar problemas psicológicos. Ao mesmo tempo, aprender a lidar com o sofrimento e superá-lo nos faz crescer. Se o jovem usar estes tempos difíceis como mola propulsora para jogá-lo pra frente, isso pode fazer muita diferença. Pensar que já passou por situação difícil, que dá conta, isso pode gerar resiliência. Aprender a ressignificar o sofrimento e usá-lo como aprendizado é um sucesso. Viktor Frankl, psiquiatra austríaco que passou por campos de concentração, diz que existem três coisas que dão sentido para a vida: alguém para amar, uma obra, e se dedicar ao exercício da espi- ritualidade. Trazendo isso para a realidade de hoje, podemos usar este momento para nos reconectar com quem amamos, fazer algo para o próximo que tenha significado, e acreditar que o mundo pode ser melhor. Frankl podia estar preso no campo de concentração, mas ninguém podia obrigá-lo a não pensar em algo, o pensamento era livre. Então, a partir do momento em que estava livre para pensar, escolhia pensar que ia sair de lá. A nossa escolha é feita todos os dias. Podemos escolher o que vamos fazer, em que pensar e como reagir a determinada situação. 


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