Adriano Ramos
Pesquisador e restaurador de obras de arte da empresa Grupo Oficina de Restauro
Neste ano de 2020, comemora-se o tricentenário de nascimento de Francisco Vieira Servas, renomado entalhador e escultor das artes produzidas no Barroco mineiro.
Nascido em Portugal, em 1720, e estabelecido definitivamente nas Minas Gerais a partir de meados dos setecentos, Servas deixou um conjunto de retábulos e imagens tridimensionais que se tornaram parte integrante do conjunto artístico daquele período.
Sua obra, de imensa importância para a compreensão do universo das artes plásticas produzidas nas Alterosas nos séculos 18 e 19, encontra-se espalhada por diversas localidades do estado, em suntuosos templos religiosos de cidades como Ouro Preto, Mariana, Sabará, Catas Altas do Mato Dentro e Nova Era, entre outras.
Estudado e aclamado por diversos especialistas, seu legado excepcional foi reunido em um livro – Francisco Vieira Servas e o ofício da escultura na capitania das Minas do Ouro, com pesquisa, organização e texto meus, coordenação editorial de Angela Gutierrez e publicação do Instituto Cultural Flávio Gutierrez. Lançado em 2002, atu- almente encontra-se esgotado e sua reedição está prevista para o próximo ano.
Francisco Vieira Servas nasceu na Freguesia de Sam Paio de Eira Vedra, Concelho de Vieira, Comarca de Guimarães, Arcebispado de Braga, Portugal. Pelas consultas feitas no arquivo da arquidiocese na cidade de Braga, descobriu-se sua certidão de batismo, inclusive com uma sugestiva referência a seu padrinho, Francisco Vieira da Torre, com quem veio a aprender o ofício de entalhador, e que foi, comprovadamente, em 1729, o responsável pela execução de dois retábulos e da talha do arco-cruzeiro na Matriz de Torgueda, Concelho de Vila Real.
As primeiras notícias em terras brasileiras sobre Servas datam de 1753, em Catas Altas do Mato Dentro, onde, juntamente com Manoel Pinto, Martinho Gonçalves e Feliciano Pereira XXXXX todos na condição de oficiais entalhadores XXXXX, recebeu, da Irmandade do Santíssimo Sacramento, os honorários referentes a trabalhos já executados na Matriz de Nossa Senhora da Conceição daquela localidade. Sua trajetória, desde essa época, foi marcada por diversos contratos profissionais com inúmeras irmandades religiosas da Capitania, e que vieram estabelecer definitivamente a sua condição de mestre do ofício da arte da talha e da escultura.
Em seu testamento, datado de 1809 e escrito por Joam Fernandes Rodrigues de Lima sob sua aquiescência, Francisco Vieira Servas se refere a seus pais, Domingos Vieira e Thereza Vieira, como católicos e já falecidos, e a si mesmo na condição de solteiro e sem filho algum como herdeiro.
No ano de 1793, aos 73 anos, ainda de acordo com o seu testamento, Servas é citado como proprietário de uma roça situada no córrego de São Nicolau, em São Domingos do Prata. Juntamente com Juliana Maria d'Assumpção, casada com um parente do seu padrinho Francisco da Torre, requereu à Coroa portuguesa uma sesmaria de meia-légua de terra no citado córrego, Freguesia de São Miguel de Piracicaba, cujas terras devolutas compreendiam vários matos virgens e capoeiras. Alegava que os dois não tinham área de cultura para seu sustento e de seus escravos e que a terra almejada não estava próxima a nenhum arraial nem capela ou rio navegável, como se fazia necessário para essa requisição.
O patrimônio de Vieira Servas ainda era composto de uma fazenda de roça com seu engenho de bois no Ribeirão do Ferreiro, Freguesia de São Miguel, hoje Rio Piracicaba, e de outros escravos além de José Angola, oficial entalhador, e Antônio Macuco, ambos nomeados no testamento para receber carta de liberdade após o seu falecimento.
Sua morte ocorreu em 1811, como consta em seu atestado de óbito, anexado ao testamento e registrado em Catas Altas do Mato Dentro:
“Aos dezesette de julho de mil oito centos e onze faleceu com todos os sacramentos Francisco Vieira Servas, homem branco, solteiro, natural de Portugal e com solemne testamento: foi enco- mendado e sepultado dentro da Capella de Sam Domingos da Prata, do arco-cruzeiro para cima, e teve acompanhamento do coadjutor Manuel Roiz Souto”.
A produção artística de Francisco Vieira Servas, tanto no que concerne a seus retábulos quanto às suas esculturas, tem forte personalidade autoral e traz em sua essência um leque de informações bastante peculiares.
A postura mais clássica dos seus retábulos, sem muitos entreveros figurativos e ornamentais, sempre foi pautada por uma disciplina estética em que os cânones são fielmente respeitados. Os módulos são bem definidos e espaçados, com destaque para as banquetas, nas quais se apoiam os seus inconfundíveis sacrários, que se apresentam centrados por coração com três artérias superiores, estando a do centro sempre encimada por cruz e lírio.
Quando viável financeiramente para as irmandades, o retábulo contratado contava com a presença de pares de querubins e figuras de anjos distribuídos simetricamente em pontos estratégicos da composição. Também o mesmo ocorria com o coroamento, resolvido pela presença de uma arbaleta, que acabou por se tornar a sua marca registrada no momento em que o estilo rococó predominava na então capitania das Minas. Muito comum ainda são as sequências em motivos fitomorfos usadas por Servas, que, geralmente, decoram os quartelões dos seus retábulos, compostas por camélia, bugarim e flores miúdas.
Nas composições escultóricas que constituem a decoração desses retábulos reside o maior número de referências que, se bem observadas, oferecem ao estudioso os verdadeiros traços de um artista ou do ateliê por ele comandado. Esse exercício inicia-se pela análise comparativa das imagens tridimensionais com as esculturas que compõem os referidos retábulos, cujos autores são nominalmente citados nos contratos celebrados com as irmandades religiosas.
Com raras exceções, praticamente não existia em Minas Gerais documentação relativa ao pagamento ou mesmo à contratação de santeiros, imaginários e/ou escultores para a confecção das suas obras. Nesse contexto, as expressões faciais, a disposição dos panejamentos e o tratamento destinado às cabeleiras das figuras que integram as decorações desses retábulos, com autoria comprovada, são alguns dos importantes dados a serem utilizados pelos especialistas em suas análises atributivas.
As imagens confeccionadas por Francisco Vieira Servas podem ser a ele confiantemente atribuídas por variados aspectos que lhe são inerentes e que demarcam de forma bastante clara os seus estilemas. Na indumentária das suas figuras, observa-se a presença de significativos recortes geométricos nas extremidades dos mantos, com destaque para a resolução em formato retangular, principalmente no barrado das imagens femininas.
Também bastante comum no seu trabalho é a triangulação dos mantos na parte frontal da imagem, proporcionando-lhe acentuada movimentação. As soluções anatômicas adotadas por Servas, igualmente, trazem, em sua composição, características marcantes traduzidas pela simetria da face, igualdade entre as larguras da boca, narinas e olhos, e pela terminação do cabelo sobre a testa em pequena ponta semelhante a uma “vírgula”.
Ao completar 300 anos do seu nascimento, não poderíamos deixar de prestar uma singela homenagem a esse importante artista, que, ao lado de Aleijadinho e de outros renomados artífices do período, foi figura emblemática na criação desse legado das Alterosas. Seu talento para as artes foi construído ao longo de uma impecável trajetória, cuja produção se mescla à evolução estilística ocorrida nas ornamentações internas dos monumentos das Minas do Ouro. Seu nome, definitivamente, está escrito no patamar mais elevado desse cenário artístico, cujas singularidades levaram os estudiosos da arte brasileira à criação da exclusiva e inusitada designação “barroco mineiro”.