A lama levou móveis, roupas, fotos. Mas a tradição continua intacta. Saberes e fazeres de artesãos de Mariana, na Região Central de Minas, ganham visibilidade através da primeira coleção do projeto Minha Casa em Mim, com curadoria do estilista Ronaldo Fraga. “O nosso estado é lembrado pela mesa farta, acolhimento, receitas de família, e é isso que queremos mostrar. Colocar em torno da mesa tudo o que foi criado na região.” No catálogo, tem desde pano de prato bordado até luminária de bambu.
O projeto começou em fevereiro do ano passado, com o objetivo de estimular a criatividade e gerar negócios para 13 grupos de artesãos atingidos direta ou indiretamente pelo rompimento da barragem de Fundão (em 2015). Quem coordena o trabalho é a carioca Mirian Rocha, que vive em Mariana e fundou há 14 anos a Associação de Cultura Gerais (ACG), dedicada ao desenvolvimento de território e economia criativa. “Procuro trabalhar a economia emocional, ou seja, nunca vou na contramão do que a pessoa faz. Dentro do saber e do fazer daquela pessoa, trabalho o pertencimento”, explica.
Não por acaso, Mirian escolheu Ronaldo Fraga para ser o curador do projeto. Como ela gosta de dizer, o estilista faz uma curadoria afetiva. “O meu coração sempre bateu neste local. Pode ser no Vale do Jequitinhonha, no agreste pernambucano, na floresta amazônica devastada, é aqui que me sinto útil. A cultura popular, associada aos saberes e fazeres, é para mim de onde vem a ancestralidade de um povo”, defende o mineiro, que já se envolveu com várias ações de resgate e valorização do artesanato brasileiro.
Segundo Ronaldo, o grande desafio, diante de toda a tragédia, era promover a reafirmação cultural do lugar, gerando, mais que emprego e renda, autoestima. “Lembro-me do primeiro workshop, quando perguntei qual era a peça de bordado mais marcante na história delas. Uma falou da camisola de batismo da tataravó, usada por todas as crianças da família, que a lama levou. Outra disse que, se pudesse ter salvo algo, seria o bordado da avó. Fui ouvindo aquilo e pensando: temos que reinventar o mundo através do que sabemos fazer. Memória, sabedoria e conhecimento já estão aí.”
Até então, a riqueza do trabalho manual da região quase não era explorada. “Ninguém sabe, mas a rainha Maria Ana de Áustria (esposa do rei de Portugal dom João V) morou em Mariana, que foi a primeira capital de Minas, e trouxe muitos bordados. Quem bordava eram os escravos, que aprenderam com a bordadeira da rainha, e esse saber ficou aqui. É uma técnica que vem sendo passada de geração em geração”, aponta Mirian.
Um dos interesses do projeto era resgatar o antigo bordado, que nesta primeira coleção aparece em vários desenhos feitos por Ronaldo. As andorinhas que sobrevoam a praça de Barra Longa estão em almofadas e em guardanapos de linho com o tradicional richelieu da região. Já as plantas usadas pelas benzedeiras de Minas estampam panos de prato. Tem lugar para o bordado até no cartão-postal de pano, com estampa que une desenhos do artista de Mariana Haroldo Elias e do estilista. No verso, frases como “vamos fugir para Minas?” escritas com linha.
Os artesãos receberam consultoria da designer têxtil Ana Vaz, descrito por Ronaldo como “uma artista dos pontos e linhas”, e o designer Marcelo Maia, expert no uso do bambu, material que o curador descobriu ser abundante na região. Um dos produtos que serão lançados em breve é a luminária de bambu no formato das tradicionais peneiras de cestaria feitas no distrito de Cláudio Manoel. Já está nos planos até fazer bordado no bambu. Baba Santana, referência em papietagem, técnica que envolve papel e cola, também participou do projeto.
Há tempos Ronaldo trava uma luta contra a ideia no Brasil de que artesanato é “feito por pobre e comprado para ajudar o pobre”. “Artesanato de um país com formação mestiça como o nosso é muito rico”, pontua o estilista, que mostra para o próprio artesão a beleza e o potencial do seu trabalho.
A artesã Gisele Daman, representante do coletivo Padre Viegas, usava madeira e tecido para fazer brinquedos, e nada mais. Agora enxerga um mundo de possibilidades. “Acho que este projeto tira o nosso artesanato do lugar-comum e ajuda a voltar nosso olhar como artesão para a nossa cultura, o que temos e que pode ser explorado.” É dela a peça utilitária e decorativa inspirada nos antigos mancebos, que serviam para coar café. Nesta versão, ela também pode ser usada como suporte para plantas.
PARCERIAS O projeto, segundo Gisele, também despertou a consciência dos artesãos para o trabalho em conjunto. No mancebo, ela usa a cera de abelha de um produtor da região para envernizar a madeira e o pano para coar o café envolve bordado de outra pessoa. Seu marido faz uma bandeja de madeira com fundo de azulejos criado por um designer gráfico, inspirado nos ladrilhos da Igreja São Pedro. Por cima, doces de leite de uma parceira formam o mesmo desenho geométrico. “Este projeto traz a ideia de coletividade, unindo artistas do nosso grupo e também envolvendo outras associações.”
Defensora da economia compartilhada, Mirian fica feliz de ver o que está acontecendo. “Não acredito num mundo em que uma pessoa só trabalha, o meu intuito é que várias pessoas estejam juntas para dividir este di- nheiro.” Outro exemplo está no prato de vidro e decoupage, com acabamento selante para torná-lo impermeável, que une uma artesã, um metalúrgico e um engenheiro que estavam desempregados. A intenção é essa mesma, montar uma cadeia produtiva de artesanato na cidade.
Um dos legados do projeto será a abertura da primeira cooperativa de artesanato de Mariana, de nome Minha Casa, que será presidida por Marlene Resende Fonseca. Desde que se aposentou, ela faz crochê, tricô e bordado.
A artesã espera voltar a ver o trabalho dos moradores ganhar o mundo, como era antes do rompimento da barragem. “Todos os turistas sumiram de Mariana, achavam que a cidade estava toda debaixo de lama. Tivemos que fechar a loja da nossa associação, que ficava no Centro”, conta a presidente da Feira de Artes e Ateliê de Mariana (FAM).
Com o projeto, a pedra-sabão, considerada o ouro da região, não se resume mais a panela e tábua. Artesãos da FAM produzem um sousplat com fios de linho italiano formando franjas em toda a circunferência.
“Continuamos com as cruzes bordadas, mas agora fazemos de outro jeito. Elas representam os ipês que encontramos no Brasil, em tons de rosa, branco e amarelo”, descreve Marlene.
Todos os objetos estão à venda no site www.minhacasaemmim.com.br, no qual os interessados podem comprar diretamente dos produtores, sem atravessadores. Os últimos lançamentos serão em janeiro (em março o projeto se encerra).
Ronaldo Fraga tem aproveitado o trabalho manual de Mariana em outros projetos. Os produtos compõem a mesa de jantar que aparece no vídeo de lançamento da sua nova coleção, Zuzu Vive, apresentado na última edição da São Paulo Fashion Week.
Ele também acaba de lançar linha de móveis com a mineira Amplio, que tem dossel e almofadas com pássaros bordados por artesãos da cidade.
“Espero que projetos como este sensibilizem novos designers e estilistas a extrapolar os limites do próprio setor. Há tanto tempo falava que a moda tinha que se libertar da roupa, e o projeto é o retrato disso.”