Quando a moda chega ao museu é que se pode sentir o quão relevante ela é para contar a história de uma sociedade em determinada época. E nada mais consistente para registrar essas mudanças do que uma imagem fotográfica. A exposição Arquivo urbano: 100 anos de fotografia e moda no Brasil, que está em cartaz no Museu da Moda de Belo Horizonte (Mumo), é imperdível porque se trata de uma aula magna sobre as transformações dos hábitos e costumes dos brasileiros durante um século, com ênfase na vestimenta feminina do dia a dia.
São cerca de 120 fotos impressas em módulos de tecidos, dispostas em linha do tempo e exibidas em vídeos no projeto expográfico assinado pelo arquiteto Alex Rousset, criado exclusivamente para o espaço, que pode ser visitado por meio de agendamento prévio no site da prefeitura municipal.
Foram escolhidas as imagens mais interessantes e emblemáticas do livro homônimo, publicado pela curadora da mostra, a artista plástica Jussara Romão, que aborda o tema a partir do conceito de década e da premissa de que tudo que acontece na sociedade se reflete na forma de vestir. O acervo apresenta desde fotógrafos anônimos, que flagravam pessoas andando pelos centros das grandes cidades ou em reuniões de família, até trabalhos de profissionais que ganharam notoriedade, como Augusto Malta, Jean Manzon e Márcio Scavone.
Os registros mais recentes, de 2000 em diante, são mostrados em vídeos, simbolizando um novo tempo, a tecnologia e a velocidade que a comunicação atinge o público. “A moda, o lazer, o cotidiano, tudo mudou de forma extraordinária”, observa Jussara. E não são só as roupas que mudam, como ela explica, mas o comportamento dos fotografados à medida que vão entrando em contato com a novidade das câmeras.
No início, posar para as lentes de um fotógrafo era algo raro, cheio de pompa e circunstância. “As famílias se vestiam especialmente para a ocasião. os corpos e atitudes estão bem rígidos. Na década de 1920, percebe-se que as pessoas vão ficando mais relaxadas e espontâneas, passam a sorrir e a interagir com o fotógrafo. Mais tarde, nos anos 1930 e 1940, a fotografia entra nas festas, passa a ser essencial para registrar os momentos mais marcantes”, pontua a curadora.
A sua relação com a imagem é de longa data: graduada em artes plásticas, encaminhou-se para a área das publicações editoriais, colaborando em títulos relevantes como Nova e O Boticário até chegar na Elle – começou como assistente de produção, foi produtora e se tornou diretora de moda. “Fiquei na revista por 11 anos e, quando me desliguei, já estava envolvida com o design de joias. Comecei fazendo acessórios para as produções, isso se ampliou e, quando vi, já estava assentada na bancada de ourives burilando as minhas criações”.
O passo seguinte da carreira de Jussara resultaria no livro (lançado em 2013 pela Luste Editores) e na exposição homônima que o MUMO apresenta. Ela recebeu uma proposta irrecusável da Renner para trabalhar os conteúdos e conceitos visuais das revistas e catálogos das lojas. “Certo dia, a diretora me fez um convite para pensar em um livro que seria patrocinado pela empresa. Eu poderia escolher o caminho que quisesse. A oportunidade foi um grande presente que ga- nhei. A esta altura, já estava completamente inserida no mercado da moda, me senti adulta para encarar o desafio. Verifiquei que faltava um material bibliográfico para contar a história da moda do Brasil de forma mais abrangente e por esse viés”, define.
Até então, ela estava acostumada a lidar com os editoriais espetaculares das revistas, construídos a partir de coleções de estilistas renomados no mercado. E fotografados em cenários igualmente atrativos com o objetivo de despertar emoções. Mas não era esse o tom que desejava. “Não queria o sonho das produções e editoriais fashion, mas falar de moda e comportamento de forma diferente. Então, optei por conduzir a história por meio de imagens fotográficas abordando como as pessoas reais se vestiam no seu dia a dia, no Brasil, década por década.”
Para a pesquisa, que exigiria fôlego, procurou se cercar de pessoas que pudessem seguir esse caminho com precisão. A pesquisa iconográfica, elaborada pela pesquisadora Goya Cruz, demandou tempo e contato com várias famílias, instituições, museus e acervos particulares. Foram resgatadas fotos originaiss, que traçam uma análise social e histórica da sociedade brasileira e sua evolução ao longo de 100 anos. “Eu precisava desse olhar de fora para fugir do meu próprio olhar, muito fashion, e fazer esse resgate”, garante.
O acervo veio de diversas regiões, sempre focando no cotidiano, o que traz uma interessante diversidade cultural ao conjunto. “Não nos restringimos aos tradicionais centros políticos financeiros do país ou a destacar políticos e homens importantes do país”. Segundo ela, a mostra exibida no MUMO representa um tema de interesse para os mais diversos públicos, não apenas historiadores, mas estudantes e curiosos, de forma geral. “As imagens contam a trajetória do país de modo pouco usual”, pontua.
É o que também pensa a secretária municipal de cultura e presidente interina da Fundação Municipal de Cultura, Fabíola Moulin. “A exposição pretende despertar nos visitantes um olhar para a trajetória da moda e de sua indústria, relacionando-a com a cultura brasileira. Ao apresentar uma parte importante da história do Brasil por esse viés, o museu cumpre seu papel de referência para o setor em Belo Horizonte”, afirma.
Evolução da estética
Jussara Romão frisa que é a fotografia que conduz todo o processo de narração, registrando as mudanças estéticas que aconteceram no setor. O público percebe as características de cada período: formas ajustadas ou amplas em determinada época, ombros estreitos ou largos, comprimentos longos, mídis ou muito curtos, a entrada das calças do vestuário feminino. “Fica muito fácil sentir as transformações, entender as informações que a exposição oferece”, ressalta.
É possível perceber também a evolução da estética feminina por meio de acessórios, como luvas, chapéus, bijuterias, calçados. O mesmo acontece com o quesito da beleza, particularmente os cortes de cabelo adotados em larga escala pelas mulheres. Assim como é possível identificar a moda no contexto dos fatos políticos, econômicos e sociais de cada década e como eles inspiraram as vestimentas.
Exemplo: nos anos 1920, as roupas foram muito influenciadas pela prática dos esportes. O advento da iluminação elétrica incentivou e redimensionou a vida noturna. O hit do momento era o estilo à la garçonne com a cintura se deslocando para o quadril e as saias subindo – uma ousadia incrível. O chapéu clochard se eterniza como ícone da época e o cinema se consagra como o grande difusor das novas tendências e hábitos para as massas.
O visitante perceberá, percorrendo a exposição, que cada década tem o seu charme especial. Os anos 1960, em outro exemplo, tornaram-se muito relevantes para o universo da moda. Vários valores tradicionais foram desconstruídos, como a chegada do prêt-à-porter, que vai impactar os ateliês. Se na primeira metade ainda há predominância da elegância tradicional, a segunda é marcada pela rebeldia.
A descoberta da pílula anticoncepcional provoca uma reviravolta nas práticas sexuais e, na estética, se mesclam o design gráfico da swingin’ London, o futurismo espacial idealizado pela ficção científica e a psicodelia hippie. A minissaia é a estrela e as fibras sintéticas surgem como novidade para compor os tecidos e vestimentas.
Em outro recorte, a partir dos anos 1990, a moda caminha para a democratização e para novos conceitos. Ao lado dos efeitos da modelagem, predomina a estética do “menos é mais”. No Brasil, a realização das semanas de moda no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte são determinantes para a profissionalização do setor, cujo crescimento é evidente a partir da década de 2000.
Os últimos 20 anos englobaram a revolução digital encabeçada por nomes conceituados, como Bill Gates e Steve Jobs. Notebooks, smartphones e tablets passam a fazer parte do dia a dia das pessoas, culminando com as redes sociais, que estão transformando completamente a sociedade. O antropólogo norte-americano Ted Polhemus cria o termo “supermercado de estilos” para designar o comportamento social em vigência, baseado nas misturas e personalização dos looks.