Jornal Estado de Minas
entrevista/Juliana Nunes Carneiro Machado - 40 anos, Advogada

Bolinho de sucesso



Juliana Nunes se espelhou no avô para escolher a profissão. Queria fazer a diferença como advogada. Fez carreira em busca de estabilidade, mas sempre buscando estar em um local onde pudesse ajudar as pessoas. Porém, uma reviravolta na vida da família mudou toda a sua história, para melhor. Na busca de tirar a mãe e o irmão da depressão, decidiu participar de uma feirinha dos servidores na Cidade Administrativa. Foi sorteada entre 17 mil pessoas, e decidiu fazer bolinhos para vender. A empreitada virou a alegria do trio, e se transformou em um lucrativo negócio. Nasceu ali, em dezembro de 2014, a Fofíssimo Bolos.
Seis meses depois ela deu adeus ao direito e hoje se dedica a deliciar os clientes com quase 30 sabores de bolos e uma linha completa de chocolates.
 
 
 
 
Fale um pouco da sua infância. 
Nasci em Ubá, mas vim para Belo Horizonte com 3 anos. Meu pai era engenheiro de estradas. Meus pais se separaram e ficamos aqui, na casa de meus avós maternos. Depois, minha mãe se casou de novo, teve mais um filho, que é 10 anos mais novo que eu. E seu segundo marido me criou, é ele quem considero meu pai. Fui muito sonhadora, gostava de história de princesa, castelo. Gostava de brincar e sempre fui criativa, mas era muito estudiosa também.
Pela diferença de idade, meu irmão era meu bonequinho, depois me tornei irmã dele, como eu costumava falar.

O que queria ser quando crescesse?
Era muito apegada ao meu avô materno, ele foi uma figura muito querida. Era procurador de Justiça, e vivia me contando as histórias de júri. Isso me influenciou muito e decidi que queria fazer direito para ser igual a ele. Queria ser juíza, promotora, e acabei seguindo isso mesmo, até o dia em que me deu a louca e larguei tudo.

Chegou a exercer a profissão?
Sim, por 16 anos. Fiz pós-graduação, trabalhei em escritórios de advocacia. Depois, no Tribunal de Justiça, na assessoria de desembargador na área criminal, mas não era concursada, era cargo de confiança. Gostava muito do trabalho, sempre amei o direito, gostava de escrever. No direito, temos que ler e estudar muito, então eu adorava.
Mas teve uma situação que mexeu muito comigo. Um desembargador, que eu admirava muito, foi acusado de venda de habeas corpus. De um dia para o outro a Polícia Federal chegou recolhendo todos os computadores, fechando tudo. Todos os assessores foram exonerados e ele foi aposentado. Você se acostuma com uma estabilidade que não tem. Decidi sair e estudar para concurso, para ter uma estabilidade.

Conseguiu a estabilidade?
Sim. Casei-me cedo com Daniel Freitas Morais, que é médico intensivista. Passei no concurso para analista, e fui trabalhar na Cidade Administrativa, na Secretaria de Planejamento de Finanças.

Estava realizada?
Estava indo bem, mas meu pai teve um câncer de tireoide. Ninguém espera que uma pessoa vá morrer desse tipo de câncer, por ser muito simples. O dele foi diferenciado, e em seis meses definhou e faleceu.
Isso acabou com a minha família. Minha mãe e meu irmão ficaram deprimidos. Eu tendo que ir trabalhar naquela lonjura. Ficava com o coração na mão de deixar os dois desamparados, e já tinha usado todas as licenças a que tinha direito para ajudar no tratamento da doença do meu pai.

O que você fez?
Na época do Natal, fazem uma feirinha dos servidores, só podem participar servidores e familiares diretos para ajudar. Pensei que seria uma boa oportunidade para tirar minha mãe e meu irmão de casa. Tinha que me inscrever, mas era sorteio. Apenas 60 vagas, para 17 mil pessoas. Achei aquilo impossível, mas me inscrevi e fui a quinta sorteada. Era para ser mesmo. Meus colegas disseram para colocar comida, porque assim minha mãe e meu irmão trabalhariam das 11h às 14h e depois ficariam livres para passear, subir e ficar com a gente lá no setor.
Não sei cozinhar, fiquei pensando o que poderia levar. Só me lembrei do bolo de cenoura que eu fazia no fim de semana, quando estava de bobeira, e meu marido gostava. Decidi fazer o bolo, mas de uma forma diferente. Fui em algumas lojas de festa procurar forminhas de cupcakes, comprei as menos feias que achei.

Quando foi isso?
No final de 2014. Fiz bolo de cenoura, de chocolate e de limão, todos com cobertura cremosa de chocolate. Coloquei dois bolinhos dentro de um saquinho plástico, amarrei uma colherzinha, mas ainda não estava legal, ninguém ia querer comprar aquilo. Meu irmão tinha se formado em design gráfico, pedi que inventasse um nome e uma marca para eu colocar um adesivo. Ele disse que meu bolo era muito fofinho, e sugeriu Fofíssimo. Aprovei e ele fez a etiqueta, igual até hoje, marronzinho escrito Fofíssimo. Levei os dois comigo, e eles acharam muito divertido, porque foi uma coisa muito diferente da nossa realidade, virou um momento de alegria. Essa mexida deu um brilho novo em todo mundo. Eram só cinco dias. No primeiro dia, eu levei 30 saquinhos, porque achei que não venderia nada, e em meia hora acabou tudo, foi um sucesso. Tive que aumentar a produção. Minha mãe não ficava na barraquinha, visitava todas as barracas da feira, conversava com todo mundo, ria de um jeito que tinha muito tempo que eu não via. Só por isso já tinha valido a pena, ver o brilho em seu olhar era imensurável. Ver os dois alegres foi o máximo. E as pessoas elogiando e gostando do bolo que eu fazia, foi muito bom. Meu marido, que ama cozinhar, ficava brigando comigo querendo saber que dia teria sua cozinha de volta. Só tinha bolo em tudo que era lugar. A feirinha foi no início de dezembro, mas aí as pessoas me descobriram e começaram a ligar querendo encomendar para dar de presente. Pensei, “só este mês, depois acaba”, e peguei as encomendas. Para não ficarem me ligando no trabalho, pedi ao meu irmão para fazer uns cartões com meu WhatsApp. Porque não podia ficar interrompendo meu serviço toda hora. Tinha os processos para analisar. Na hora do almoço, quando abria o celular, estava cheio de mensagens. Ficava pensando o que estava fazendo ali, queria estar em casa batendo um bolo. E eu, no meio dos processos. A parte em que eu trabalhava era muito difícil, prestação de contas, e tem muita falcatrua, a gente vê muita coisa errada. Época de troca de governo, muda diretriz. Quando você faz concurso público procura independência no seu fazer, pensa que vai poder agir conforme seus princípios, que não vai ter interferência, mas tem. E isso me machucava muito. Cheguei a comentar com meus colegas que tinha feito concurso para a área errada, porque fiz para o Executivo, e é uma área muito política. Não temos independência, estava muito frustrada. Uma pasta com muito dinheiro, que estava me deixando muito chateada, achando que tinha rasgado meu diploma e jogado no lixo. Por outro lado, o bolinho era um sucesso.

E seu marido não achou ruim de ficar sem a cozinha por mais tempo?
Falei com ele que seria só em dezembro por causa do Natal. Entraria de férias em janeiro, e ninguém compraria nessa época. Estava muito feliz de as pessoas terem amado o meu bolinho. Ele tolerou, mas aniversário tem todo dia, e as pessoas já tinham meu WhatsApp pessoal. Em janeiro, continuaram ligando e fazendo pedidos. Aquilo me divertia.

Foi quando você abriu a empresa?
Ainda não. Estava apenas me divertindo. Coincidiu de uma amiga do direito decidir largar tudo e começar a trabalhar com fotografia. Estava fazendo um curso e precisava fotografar comida, me pediu uns bolinhos. Por causa das encomendas de Natal, tinha criado um bolo grande, o Piscininha de chocolate, e mandei também. As fotos ficam lindas, ela disse para eu criar um Instagram e postar as fotos. Ela me ajudou, porque eu não entendia nada disso. Postamos as fotos em um domingo. Na quarta-feira, o marketing da Mares entrou em contato marcando uma reunião para conhecer o produto. Queriam fazer um chá da tarde toda semana na loja, e mandar uns bolinhos de presente para os melhores clientes do mês. Apresentei meu produto, elas gostaram muito. Saí de lá com contrato de um ano. Não me cabia de tanta felicidade. Disse ao Daniel que ele ia ficar mais tempo sem a cozinha. Ele me chamou de louca, que eu não tinha curso de confeitaria, como podia vender isso. Mas não tinha enganado ninguém, fui lá com o meu bolinho, no saquinho. Como ele gosta muito de design, disse que eu tinha que melhorar o produto e a apresentação. Criou uma caixinha com uma cartolina, que achávamos linda, cabia quatro bolinhos. Elas acharam linda também. Surpreendeu. Mandamos para a primeira cliente.
 
Como foi quando retornou para o trabalho?
Começou a apertar, porque eu só podia olhar as mensagens no meu horário de almoço ou antes de ir para o trabalho, e fazia tudo depois do trabalho. Começava na Cidade Administrativa às 10h. Passei a fazer os bolinhos até de madrugada para poder atender as clientes e o contrato dos chás, deixava na loja antes de ela abrir. Começou o boca a boca. Uma jornalista ganhou um bolinho meu da Adriana Vasconcelos, que me conheceu porque ganhou um bolinho da Mares. Essa jornalista me convidou para participar de seu estande no Minas Trend. Aí foi um boom. O negócio tomou uma proporção que eu nunca imaginei. As marcas que estavam expondo viram e me contrataram.

E como você fez?
Eu já não estava dando conta mais, porque fazia tudo sozinha na minha casa. Minha mãe não me ajudava, só comia. Chegou uma hora em que eu tive que definir o que eu queria da minha vida. Ou isso tinha sido uma brincadeira, acabou e pronto, e eu continuaria na minha carreira de advogada, seguiria no meu concurso, ou largaria tudo e faria do bolo um negócio, faria virar uma empresa. Lembrei-me do episódio do meu pai, que morreu cedo, de repente, na época que era para ele curtir a vida. A gente tem que ser feliz agora, eu estava amando o novo trabalho, conhecendo pessoas diferentes, indo a lugares que nunca imaginei por causa de um bolo. Aquilo estava me satisfazendo pessoalmente. Ficar presa em um lugar por causa de um concurso? Eu não estava muito feliz com o andamento das coisas no trabalho formal. Decidi pedir exoneração e apostei no bolinho, que estava me dando prazer. Eu tinha largado um emprego que me pagava muito bem, para ter a estabilidade de um emprego concursado, e agora ia largar isso para ficar na instabilidade de vender bolinho em casa, era muito incoerente. Mas eu estava lúcida, segura, Daniel me apoiava. Escolhi arriscar na instabilidade por causa da alegria que estava me proporcionando.

A receita do bolo é a mesma que fez para a feirinha?
Do bolo de chocolate, cenoura e limão, sim. A partir do momento em que decidi abrir uma empresa, precisei criar sabores. Aprimorei, estudei bastante. Precisei de pessoas mais capacitadas que eu para me ajudar, desenvolvemos novas receitas. Mas sempre com o meu toque. Nunca gostei de bolo com muito açúcar, sempre falei que é preciso diminuir ao máximo o açúcar e o óleo. Acho que tiram o gosto dos ingredientes e pesa o bolo. Gosto de bolo fofinho. Outra premissa é usar tudo fresco. Legumes do dia, frutas do dia. Levei isso para a empresa, de sempre fazer o bolo no dia. Não uso nada congelado e nem massa pronta. Esse é nosso diferencial. Continuei na parte criativa. Não sei cozinhar, mas sei comer, então faço um trabalho de sabor muito intuitivo.

Foi muito difícil profissionalizar o bolinho?
À medida que fomos crescendo, contratei consultorias para aprender como gerir uma cozinha, padronizar as coisas, porque os processos são muito organizados. Tem ficha técnica de tudo, as receitas são em fichas, não são mais anotadas a mão. Tudo tem um padrão para que seja sempre o mesmo produto. Muita gente da área de engenharia de produção sugeriu introduzir massa congelada para baixar custos. Não aceito de jeito nenhum. Meu sucesso é o frescor, fornadas de hora em hora. A perda faz parte. Essa é a essência do negócio. É caro manter isso, mas não abro mão.

Em quanto tempo precisou contratar alguém?
Demorou seis meses para eu tomar a decisão de largar tudo e investir no bolo como negócio. Assim que abri a empresa já contratei uma ajudante na cozinha, e outra para eventos, porque inventei os carrinhos. Era tudo ainda na minha cozinha, mas não conseguia mais fazer sozinha.

O crescimento foi muito rápido?
Foi, e eu me assustei, principalmente com a internet, porque ela tem um alcance nacional. De repente, estava recebendo pedido de abrir franquia em outros estados. Isso me assustou, um negócio que eu fazia em casa, não tinha loja, e as pessoas estavam vendo como um produto escalonável, que pode virar uma franquia. Todos os dias recebia uns 10 pedidos, de vários estados. Tinha que abrir uma loja e criar um modelo.

Foi quando abriu o café em Lourdes?
Foi. E passei minha produção toda pra lá. Isso foi em 2016. Aí já era um espaço para as pessoas irem, tomar um café com bolo, conversar. A loja era pequena, mesmo assim foi muito bom, e em 2019 abrimos outra loja no Mangabeiras. Recebemos convite para abrir uma loja temporária em shopping, uma Pop Up no Natal, foi muito legal e ficamos até o Dia das Mães. Depois ficamos com um quiosque até o Dia dos Namorados. Testamos vários modelos para ver qual funcionaria melhor. Contratamos uma consultoria para fazer plano para expandir com franquias, antes da pandemia, mas com este novo cenário mudou tudo.

Quando descobriram que esquentar o bolinho no micro-ondas dava certo?
Foi uma cliente. Ela perguntou se eu já tinha experimentado, porque ela gosta de comer bolo quentinho no café da manhã, e disse que o meu é na medida certa. Quando ela tira da geladeira, coloca por 15 segundos no micro-ondas, quando deixa dormir em temperatura ambiente, esquenta apenas por 10 segundos. Experimentei e ficou uma delícia, a sensação é de ter acabado de sair do forno, fofinho e com a calda cremosa. Decidimos colocar a dica na caixinha para todo mundo saber. Testei com todos os sabores, deu supercerto. Experimentei no bolo grande, e se servir com sorvete fica igual a petit gateau. Nosso bolo grande não pode ir na geladeira, porque tem muito chocolate. Se gelar, endurece. Esquentando no micro-ondas, o chocolate interno derrete. Fica maravilhoso.

Os clientes contribuem muito?
Demais. Falo que nosso negócio tem vida própria, as demandas vão acontecendo de forma espontânea. As sugestões dos clientes vão moldando o negócio e criando novos produtos. Hoje, trabalhamos com chocolate. Começamos no ano passado, em plena pandemia, porque vários clientes perguntaram se não teríamos ovos de Páscoa. Queriam comer um ovo com a cobertura do nosso bolinho. Lançamos três sabores e esgotou, não conseguimos atender todo mundo. Amei esse universo do chocolate e criamos uma linha.

A pandemia não prejudicou seu trabalho?
Não. Mudou nossa visão. O negócio vai se direcionando. Acredito que não teremos mais a mesa para o cafezinho com bolinho. 

Desde que começou, sempre ajudou todas as instituições beneficentes de BH.
Isso é muito meu. Sempre tive a noção de que tudo que temos é emprestado. Não teremos nada se não dividirmos e compartilhar. Quem tem condições de comprar um bolo fica tão feliz em receber, imagina quem não tem? 

O instável já deu estabilidade?
Graças a Deus. Já estou querendo tirar o Daniel da estabilidade dele. Mas o trabalho dele é missão também, ainda mais neste momento. 
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