Jornal Estado de Minas
Sensibilidade

Gustavo Penna encara o projeto mais complexo da sua carreira em Brumadinho

Gustavo Penna une técnica e emoção no projeto - Foto: Pedro Nocoli/Divulgação
Um projeto que envolve cabeça, alma e coração. Gustavo Penna fala do Memorial Brumadinho com a sensibilidade de quem se solidariza com a dor das famílias e se coloca como parte desta história. Inserido nas montanhas de Minas Gerais, o espaço, que há dois meses saiu do papel, materializa a difícil missão do arquiteto de denunciar todos os horrores que aquelas terras testemunharam. Um memorial para ninguém se esquecer da tragédia e conhecer as 272 vidas engolidas pela lama.
 
 
Gustavo deixa claro que o projeto não celebra a morte. Pelo contrário, cria um espaço para valorizar a história da vida daquelas pessoas e ajuda a transformar a dor em uma força construtiva.
 
Refletindo sobre o papel do memorial, o arquiteto fala em duas mortes. A biológica, que ocorreu naquele dia, quando pessoas com datas de nascimento diferentes tiveram a mesma data de morte, em segundos. A outra morte, para ele ainda pior, seria o esquecimento. “É aqui que o memorial encontra sua missão.
Nenhuma daquelas famílias vai sossegar enquanto não existir um lugar que reverencie as pessoas queridas que elas perde- ram. Senão a vida não serviria para nada.”
 
O monumento, chamado de 'cabeça que chora', terá as curvas de nível de Córrego do Feijão impressas em suas faces - Foto: GPA&A/Divulgação  
O memorial não deve ser visto pelo ponto de vista da matéria. O que se quer, com o projeto, é criar o que Gustavo chama de continente, onde o que mais importa é o seu conteúdo. Nesse caso, como ele diz, um conteúdo de dor, denúncia, alerta, revolta, menos-valia, frustração. “Comparo com a história do vaso. Você olha para um belo vaso, mas o que dá sentido a ele é o seu conteúdo, o que ele carrega.”
 
Mesmo para um arquiteto vivido e com muita história, que sabe bem trabalhar simbolismos, o desafio de materializar sentimentos em Brumadinho é “imenso”. Gustavo chega a dizer que este é o projeto mais complexo da sua carreira, o que mais exigiu dele e da equipe.
“Como é difícil transformar algo imaterial, que é um sentimento, num ambiente tridimensional. Você não chega e fala: me dá uma garrafa de saudade, um pacote de amor, três quilos de amizade. Essas coisas não são quantificadas.”
 
O mais importante em um projeto como este, na visão do arquiteto, é se entregar, ter humildade, despojamento e estar pronto para ouvir. Para ele, a escuta é fundamental. São as conversas que vão ditando a tridimensionalidade e erguendo as construções. “Não são as pessoas que fazem arquitetura, são as palavras. Meu avô era poeta, então sou ligado à história da palavra e acho que ela te dá pistas maravilhosas”, analisa. “Se falar leveza, levanto toneladas de concreto no ar.”
 
As obras começaram em maio e a previsão é inaugurar o memorial até o fim de 2022 - Foto: GPA&A/Divulgação
As conversas envolveram familiares das vítimas, a comunidade e os bombeiros que “trabalharam naquele chão no momento seguinte, que mergulharam naquela lama quando tudo virou uma mesma cor”.
Gustavo conta que já chorou abraçado a eles, ouvindo depoimentos impactantes. “Colecionamos todas as pessoas no melhor lugar do nosso coração. Foram elas que, de alguma maneira, ampliaram a nossa capacidade de observar. Nos sentimos gratos e absolutamente homenageados por isso.”
 
O projeto, no fim das contas, não é só do arquiteto. Todas as pessoas envolvidas na tragédia são, de alguma forma, autores do projeto. Afinal, escolheram ser representadas através dele. E isso deixa Gustavo realizado. “Tudo foi compartilhado, em uma atitude de escuta, de presença, de estar junto, de considerar valores, de ser capaz de se solidarizar, de se transferir para o lugar deles. É quase uma fusão.”
 

Espaço de paz

A ideia de construir o memorial partiu da psicóloga Kenya Lamounier, de 54 anos. Quando enterrou seu marido, Adriano, 30 dias depois do rompimento, vivendo um “luto muito pesado”, pensou em um espaço que pudesse trazer um pouco de paz para familiares que, assim como ela, vivem uma “história de terror” sem fim.
Dez corpos ainda não foram encontrados.
 
“O memorial busca trazer outro significado para aquele lugar e dignidade para a memória de todos os que perderam a vida de forma brusca. Que este espaço venha a fazer reverência a todos os trabalhadores que foram massacrados. Nós, brasileiros, não podemos deixar este crime, que matou 272 pessoas em menos de um minuto, passar em branco”, defende a psicóloga, que faz parte da diretoria da Avabrum, associação das famílias das vítimas.
 
Quando iluminada por um feixe de luz, a drusa de cristais vai provocar uma explosão de cores no ambiente escuro - Foto: GPA&A/Divulgação 
Para Kenya, que tem dois filhos, o mais importante é não deixar a tragédia cair no esquecimento. E o projeto escolhido, na opinião dela, representa bem o sentimento de quem ficou. “O Gustavo Penna conseguiu colocar no papel, de forma muito harmônica, tudo o que imaginávamos para o memorial. Que fosse um lugar de paz e que contasse a história daquelas pessoas.”
 
A intenção é que o memorial seja um lugar ocupado por todos. Que lá as famílias das vítimas encontrem paz, os moradores da região aproveitem a área aberta como um parque e os visitantes reflitam sobre tudo o que ocorreu. “O memorial começa em um ambiente de montanhas longes e distantes e termina no grande teatro da tragédia, que tira seu fôlego. É como se fosse uma epifania”, descreve Gustavo, com a certeza de que a experiência será inesquecível.
 

A mesma cor da lama

Segundo o arquiteto, os elementos usados são muito potentes simbolicamente, capazes de gerar emoções e contar histórias.
A começar pela escolha do material (concreto misturado com a terra da região) que constitui parede, chão e teto. Tem a mesma cor da lama que tingiu toda aquela paisagem no dia do rompimento da barragem. “Usamos recursos simples, que formam uma espécie de concerto de ideias e, juntas, criam esta potência.”
 
O ipê-amarelo foi escolhido por ser símbolo de superação. No verão, ele se enche de folhas para fazer sombra. Quando chega o inverno, as folhas caem para deixar o sol passar. Já na seca, fica todo florido para lembrar que a vida continua. “O ipê é a própria história do renascimento, ideia que precisamos ter todo o tempo da nossa vida, senão nos sentimos completamente abafados e desesperançados.” No total, serão 272 ipês, representando cada uma das vítimas.
 
O uso da água e da luz também é carregado de simbolismos.
 
Os ipês-amarelos, escolhidos para representar cada uma das vítimas, simbolizam o renascimento - Foto: GPA&A/Divulgação 
Em toda visita ao local da obra, Gustavo se emociona. Volta o sentimento do dia da tragédia, à qual se refere como descompromisso com a humanidade. “Me senti envergonhado, indignado, absolutamente impotente. Além de ter nascido em Minas Gerais, sou mineiro, aquele que trabalha nas minas. Somos lembrados disso desde o dia em que nascemos e o que me estarrece é que deixamos isso acontecer com as nossas serras. A sensação é de que não sabemos trabalhar com isso.”
 
Quando pensa sobre o futuro da obra, Gustavo expressa um desejo. Que não seja mais um memorial, que ninguém mais visita depois de um ano. Que ele seja relevante como qualquer outro, pois a dor de Brumadinho é a mesma das perdas pelo apartheid ou pelas perseguições nazistas. Nem maior, nem menor. “Tenho essa esperança, que não acho que seja muito ilusória, de que o que estamos fazendo para as famílias, para o Córrego do Feijão, para a região, é algo que vai durar.”
 
A construção do memorial, financiada pela Vale, por exigência da Avabrum, está na fase final de terraplanagem e a previsão é de que termine no fim do ano que vem. “É uma obra muito rápida. Quando a engenharia terminar, a arquitetura vai estar pronta. Não tem revestimento, acabamento, é o que é. Simples e direto.” Depois disso, enquanto não for concluída a elaboração do conteúdo, Gustavo espera que o espaço já possa receber visitantes em uma etapa intermediária.
 

“Não dá para perdoar”

Cada detalhe do projeto faz lembrar a tragédia. Intencionalmente, o arquiteto procura congelar no tempo e no espaço o momento do rompimento da barragem, para que nunca seja esquecido. “Não dá para perdoar”, ele diz. O pavilhão de entrada, com formas irregulares, evidencia os estragos provocados pela invasão da lama, que destrói, esmaga, arranca, desfigura, distorce. Uma onda de força avassaladora.
 
O início da caminhada pela fenda será marcado por uma frase da poetisa Adélia Prado - Foto: GPA&A/Divulgação 
Dentro do edifício, o ambiente é escuro, comparado a uma penumbra. A claridade passa por pequenos recortes no teto, formando feixes de luz. “Queremos reproduzir a escuridão do momento em que a parede de lama encontrou as construções, e fendas apareceram nas paredes e tetos. Por alguns milésimos de segundos, a luz atravessou o ambiente por essas fendas”, explica.
 
Todo 25 de janeiro, às 12h28, dia e horário em que ocorreu o rompimento da barragem, a luz do sol vai passar por uma das fendas e iluminar uma drusa de cristais, provocando uma explosão de cores no ambiente escuro. “As famílias já chamavam os entes falecidos de joias e, por coincidência, nós demos ideia da drusa de cristal. Não é uma joia preciosa de alto poder de venda, mas uma formação geológica emocionante. Qualquer mineralogista sabe que é um capricho maravilhoso da natureza.”
 
A drusa de cristais é um conjunto de pedras em tamanhos e formatos diferentes, que são agrupadas ao acaso pela natureza. Ali, em destaque no pavilhão, a peça vai representar aquelas vidas que tiveram o destino entrelaçado de forma trágica e definitiva. A equipe ainda está em busca da pedra para o projeto. Gustavo gosta de dizer que ela, a drusa, vai encontrá-los na hora certa.
 
Do mirante, os visitantes avistarão o local onde a barragem se rompeu - Foto: GPA&A/Divulgação 
Dali os visitantes vão partir para uma caminhada por uma fenda abaixo do nível do terreno, com 220m de comprimento e 4m de largura, que aponta para o lugar onde era barragem. A fenda representa o momento exato em que a massa de lama ruiu, uma cena que não sai da cabeça de Gustavo. “A ideia vem daquele momento de ruptura. Na hora em que a fenda surgiu, a tragédia estava pronta. Aquela fenda existiu durante segundos, mas existiu, e quis materializá-la no tempo e no espaço”, aponta.
 
No ponto de partida, uma frase de Adélia Prado, que a própria poetisa cedeu ao projeto: “O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível”. Ao longo do trajeto, surgirão na parede os nomes dos mortos, iluminados por uma peça em formato que lembra a pomba da paz. O projeto de sinalização é do designer Gustavo Greco.
 

"Cabeça que chora"

Os visitantes passarão pelo Espaço Memória, onde serão contadas as histórias das vítimas. A forma de apresentar o conteúdo ainda está sendo pensada pelas famílias. Neste mesmo ponto, olhando para cima, estarão diante da base da “Cabeça que chora”. O monumento é para ser uma pedra no meio do caminho, literalmente, como diz Carlos Drummond de Andrade.
 
A ideia vem da conclusão de Gustavo de que o homem não inventou a roda, porque a roda está na natureza, numa melancia, jabuticaba, na Lua. Para ele, invenção humana é a estabilidade das forças verticais e horizontais, formando um vão onde pode se abrigar. Nada na natureza tem ângulo reto. “Imaginei que o homem onipotente, que acha que domina a técnica, que tem controle sobre a natureza, ruiu com a barragem, levando inocentes.”
 
As 'lágrimas' escorrem pelas paredes do monumento, correm pelas laterais da fenda e vão parar em um lago - Foto: GPA&A/Divulgação
Todo branco, o monumento, um quadrado tombado, tem as curvas de nível de Córrego do Feijão impressas em suas faces. As lágrimas saem de um poço artesiano, escorrem pelas paredes da cabeça, correm pelas laterais da fenda e vão parar em um lago. No fundo dele, 272 pontos de luz. “O choro tem beleza, é uma maneira de extravasar a dor. Ele começa pela cabeça, pelo Córrego do Feijão, vai sendo somado e vira pranto de todos. Não é um choro sozinho, é de todos que se solidarizam com a dor.”
 
A fenda propõe uma imersão na tragédia, com potencial de provocar reações sensoriais. “As paredes vão aumentando, chegam a quase 5m de altura, te comprimem lateralmente e o céu praticamente se transforma em uma linha. Continuando o percurso, as paredes diminuem e a paisagem começa a se descortinar. É quando você vê aquele cenário terrível.” O caminho termina em um mirante, um lugar de contemplação e reflexão.
 
Diante do palco da tragédia, não tem como não se emocionar. É como chegar a um campo de guerra. Hoje, quase tudo está coberto de verde, mas dá para ter a dimensão exata do rompimento e pensar em todas as pessoas atingidas. “Quem são essas pessoas? Os que morreram, a comunidade de Córrego do Feijão, que assistia aos corpos sendo colocados ao lado da igreja. Depois, Brumadinho e região, que sofreram com bloqueios. Minas, que carrega essa vergonha, o Brasil e o mundo. Sofremos nós todos.”
.