Lucia Helena Monteiro Machado
Meu pai era admirador de óperas. Costumava, juntamente com o pai e as irmãs, ir para o Rio durante a temporada operística. Contava, com certo orgulho, que havia sido preso uma vez. Servia no Exército em Juiz de Fora e fugiu para o Rio, a fim de ver o Caruso cantar. Foi em cana, mas ouvira o que era considerado o maior cantor de todos os tempos. Falava muito, também, de uma cantora italiana, Gabriella Besanzoni, que abandonara a carreira brilhante pára se casar com um milionário brasileiro chamado Henrique Lage.
Ouvia essas histórias quando menina sem suspeitar de que, muitos anos depois, me tornaria amiga de uma sobrinha-neta da referida cantora.Marina Colasanti já escreveu as memórias de sua infância passada na Itália durante a Segunda Grande Guerra. O livro se chama “Minha guerra alheia” e vale a pena ser lido.
Agora se debruça sobre a fase em que veio para o Brasil, ainda criança, com os pais e o irmão, para morar no Rio, no palacete de sua tia-avó Gabriella Bezansoni. Justifica o livro dizendo: “Este livro é o cumprimento de uma promessa nunca feita. É meu testemunho de gratidão. É a narrativa da intimidade entre mim e minha tia-avó, que sempre chamei de tia. São fatos que habitaram minha vida. Posso dizer que é um livro da família.” O livro se chama “Vozes da batalha”.
As pessoas que passeiam no Parque Lage, uma das maravilhas do Rio de Janeiro, que entram no majestoso palacete que hoje abriga um museu e outras atividades culturais, ignoram a grande história de amor que deu origem ao lugar.
Quem era Gabriella Besanzoni? Era uma cantora lírica famosa por sua beleza e sua voz. Uma verdadeira diva! Sua fama a levara a se apresentar em todos os grandes teatros do mundo. Dela diria Mario de Andrade: “Gabriella Besanzoni, a que deveria ser ouvida de joelhos, foi a última contralto que a Itália teve”.
Quem era Henrique Lage? Empresário bem-sucedido, dono de considerável fortuna, homem culto, fino e bonito. Devia ser assediado por todas as moças casadoiras do Rio de Janeiro. Mas iria se apaixonar loucamente pela cantora de ópera, gênero musical que ele apreciava.
O primeiro encontro se deu em 1918, quando ela se apresentou no Teatro Municipal do Rio. Acabara de cantar “Carmem”, um de seus maiores sucessos. Ele enviou flores ao seu camarim com um convite para jantar. Ela recusou esse e outros mais convites. Estava apaixonada por Arthur Rubinstein. A perseverança de Henrique iria custar muito tempo para dar frutos. Um novo encontro se daria em 1921, com insistente pedido de casamento. Ela seguia os conselhos da mãe, que achava que ela não devia se casar, mas sim se dedicar inteiramente à carreira. Finalmente, o charme de Henrique ganhara a partida. O casamento se deu em 7 de fevereiro de 1925, em regime de separação total de bens, exigência dela. Não queria que pensassem que ela queria a fortuna dele. Não precisava. O poeta Gabrielle D’Annunzio, seu grande admirador, mandaria um telegrama que dizia: “Invejo o Orfeu de além-mar que engrinalda uma Euridice muito mais melodiosa e deliciosa que a antiga. Envio aos dois uma estrela da noite de Brescia e uma rosa do Vittoriale”. O retrato dos noivos é encantador, ambos mostrando um ar de grande felicidade.
Na Chácara Lage, de propriedade de Henrique, ele faria construir o enorme palacete, obra do arquiteto Mario Vodret, em estilo eclético, mas de tendência claramente italiana. Muito mal comparando, foi uma espécie de Taj Mahal, com a diferença de ter sido erigido quando a mulher amada ainda estava viva. Os jardins apresentavam floridos canteiros geométricos. Árvores frutíferas de todas as espécies formavam um bosque onde brincavam soltas as crianças Colasantis, Marina e Arduino. Não custaram a descobrir que os cipós eram mais frágeis do que os do Tarzan. Arrebentavam facilmente.
Marina descreve magistralmente os diversos cômodos, finamente decorados com rico mobiliário, mármores, tapeçarias e obras de arte. O cômodo que mais atraía os irmãos era o salão onde estavam guardados os objetos da cenografia das óperas: “Numa arara, pendiam dos cabides trajes de cena há muito sem uso, alguns de Gabriella, outros de apresentações e cantores já esfumados no tempo. Um véu de poeira amansava o brilho de bordados e cetins. As gavetas de dois armários desemparelhados/sobras de antigas decorações guardavam adereços. Brincos enormes, broches, correntes com medalhão. Em cima de um deles despontava uma coroa.”
Como é comum numa casa tipicamente italiana, havendo espaço, os parentes e amigos são sempre bem acolhidos. A família Colasanti foi aí instalada, como outros parentes. A harmonia e a alegria eram sempre presentes. Marina descreve: “A chácara cochilava quieta nas primeiras horas da tarde. Começava a se espreguiçar lá pelas quarto e, dali em diante, era pura animação. Os homens da família chegavam do trabalho por volta das cinco da tarde, com seus ternos brancos de panamá, as gravatas de cor pastel afrouxadas nos colarinhos, e um ar de cansaço acalorado que logo desaparecia. Os amigos também iam chegando. E as visitas. Os porteirinhos corriam a cada toque de campainha, o garçom começava a circular com a bandeja cheia de xicarazinhas ou de copos.
A música estava sempre presente e Gabriella, rainha absoluta de seu castelo, cantava. Muitas vezes, canções de Caymi que ela adorava. Havia sempre um jantar”. Isso acontecia nos dias comuns. Mas havia as recepções. “Em dias de recepções, a casa fazia-se encantada. Acendiam-se as grandes lanternas da galeria. O reflexo brilhava no mármore encerado do piso, refletia-se nas folhas das samambaias diante de cada coluna. A água que corria em canos de cobre ao redor da piscina era liberada, e esguichos ligeiros encrespavam a superfície, desenhando escamas de luz. As portas envernizadas dos apartamentos, as folhas dos jasmineiros, os portões de cristal da sala de jantar cintilavam. Os garçons iam e vinham levando bandejas, as vozes da festa repercutiam nas arcadas, as luzes do salão transbordavam porta afora.”
Gabriella gostava de joias. Henrique não se fazia de rogado e a cobria com as mais caras e preciosas gemas. Ela usava frequentemente, em cena, essas joias verdadeiras. Em seu testamento, destinaria essas preciosidades à sobrinha-neta querida.
Pelo seu depoimento, foi um casamento feliz: “Henrique era um marido que me atendia como uma rainha, cuidando, com rapidez, de qualquer desejo meu. Educado, disposto a me demonstrar satisfação durante os anos de ‘assédio’. Organizado até nos menores detalhes, trabalhador incansável e, ademais, dono de uma grande fortuna, razão pela qual não se podia dar-lhe o título de ‘marido da diva’.”
Mas Gabriella era mulher dinâmica demais para se tornar apenas uma dona de casa a receber a alta sociedade do Rio. Durante o primeiro ano de seu casamento, participou de vários concertos beneficentes. Na volta de uma longa viagem pela Europa com o marido, reapareceu na cena lírica como membro da Grande Companhia Lyrica Italiana.O jornal noticiava: “O reaparecimento, ontem, do maior contralto da atualidade, a Sra. Gabriella Besanzoni Lage, motivado pelos instantes pedidos de nomes do mais realçado destaque da sociedade carioca, marcou um acontecimento memorável para a história do nosso Teatro Municipal”. Nessa temporada cantou “Carmen”, um de seus maiores papéis. No intervalo entre o segundo e o terceiro atos, foi inaugurada no Municipal uma placa de bronze: “A Gabriella Besanzoni Lage – Homenagem de seus amigos e admiradores”.
Em 1936, entrega-se de corpo e alma a outra empreitada: começa a elaborar a estruturação de uma companhia lírica brasileira. Como era encantada com a musicalidade dos brasileiros, funda o S. A. Teatro Brasileiro, que mais tarde formará a Companhia Lírica Nacional. Tudo isto daria bons frutos.
Esse é o resumo de uma historia de amor que resultaria em um dos lugares mais bonitos e agradáveis do Rio de Janeiro: o Parque Lage.