Marta De Divitiis
Finalizado, o SPFW N52 - São Paulo Fashion Week número 52 reflete a aceleração que a pandemia e o consequente isolamento por quase dois anos proporcionou à vida. Nada mais é igual. Antes elitista, hoje a moda pode e deve ser ferramenta de inclusão. É o que ficou claro após o evento terminar (aconteceu de forma presencial e virtual entre os dias 16 e 21 de novembro, no Pavilhão das Culturas Brasileiras no parque do Ibirapuera, em São Paulo).
Depois do impacto inicial ao chegar ao Ibirapuera - para entrar havia a necessidade de apresentar o passaporte da vacina, ter a temperatura medida e não era permitido retirar a máscara (embora em alguns desfiles externos muitos espectadores teimaram em retirá-la ou usá-la de forma inadequada) o visitante se deparava com apenas uma sala de desfiles e uma decoração bem enxuta, diferente das demais edições. De acordo com Paulo Borges, o ordenador do evento, “nesses dois anos muita coisa aconteceu, houve muitos processos que estão causando vários impactos, desde o emocional (por estarmos nos vendo presencialmente outra vez), econômico, intelectual, um novo público, apaixonado por moda, tudo está nos impactando”, disse.
A diversidade se destacou na passarela. Rita Carreira, modelo plus size, esteve presente em praticamente todos os desfiles presenciais, ao lado de um cast que continha modelos negros, indígenas, cis e trans. A forma do evento, que mesclou desfiles presenciais e virtuais confundiu um pouco o público, ainda tentando voltar à velha forma. As marcas, algumas resultantes de projetos sociais e de aceleração paralelamente à marcas novas e outras, renomadas, todas ainda trazendo as cicatrizes desse período sabático forçado.
Luiz Cláudio, do Apartamento 03, apresentou a coleção Cura, uma celebração dessa volta à vida. Segundo o designer, vem com muitas peças que foram desenvolvidas ainda durante a pandemia. “Às vezes eu pensava que uma peça deveria aguardar porque se eu a colocasse no site ela perderia pontos uma vez que não se perceberia a preciosidade do tecido, do trabalho de costura”, diz. A passarela do Apartamento 03 veio com peças amplas e confortáveis, de algodão, cetim e palha, que utilizou pela primeira vez.
Já Ronaldo Fraga celebrou a indústria têxtil nacional com uma coleção apresentada num filme fashion.”Acredito que o papel do designer é tecer pontes entre o Brasil feito à mão e o Brasil industrial,” fala. Confeccionada toda em jacquard (que, segundo Fraga, muitos confundem com estampas), o vídeo mostrou ao lado de modelos profissionais, colaboradores da empresa Renaux Vieux, inclusive o funcionário mais antigo da empresa, hoje com 99 anos. No filme uma celebração divertida, com peças trabalhadas em formas confortáveis e cabeças com adereços.
Moda como instrumento
de renovação
Resultado do Projeto Cria Costura, Aceleradora Criativa, da prefeitura de S. Paulo, o desfile inaugural do evento veio em forma de manifesto, com as 23 mulheres da Cidade Tiradentes, bairro da Zona Leste da capital paulista, desfilando seus próprios modelos. Capacitadas pelo designer e consultor Jefferson de Assis, elas tiveram aulas para se desenvolver em design e gestão. “O grupo é bem diverso, tem desde estudantes de moda que tiveram que parar durante a pandemia e recorreram aos cursos da prefeitura para não ficar parados, até costureiras mais experientes e outras que nunca tinham trabalhado com costura,”explicou Assis. “Esse é um projeto piloto e esperamos que o resultado gere novos projetos,”justifica o consultor. Cada aluno desenvolveu 12 peças sozinho.
O desfile da Ponto Firme inaugurou o espaço no centro de São Paulo, onde estão previstos cursos de crochê para egressos e egressas do sistema prisional, sob a coordenação do estilista Gustavo Silvestre. O projeto, que vem acontecendo desde 2015, ficou parado durante a pandemia e recentemente voltou (Silvestre dá aulas de crochê a presidiários da Penitenciária Adriano Marrey em Guarulhos). O aperfeiçoamento técnico e a informação de moda, que em desfiles anteriores não se mostraram, agora ficaram latentes. Vestidos leves, camisetas de malha com inserção de crochê em trabalho vazado, regatas de jacquard em crochê, tudo muito bem confeccionado. Destaque para o vestido longo em tela e linha acetinada e os bonés de crochê desenvolvidos por adolescentes da Zona Leste de São Paulo (Crochê de Vilão). Outro ponto de destaque foram as jaquetas de sacas de trigo, açúcar, numa "estética da escassez", segundo Silvestre.
Empreendedores racializados
no Projeto Sankofa
Já na segunda participação o Projeto Sankofa trouxe sete novas marcas, que passaram por processo de mentoria e marcas madrinhas. O movimento, que tem por objetivo colocar designers negros e indígenas em destaque, tem coautoria do Pretos na Moda, fundado por Natasha Soares e Rafael Silvério, da startup VAMO - Vetor Afro Indígena na Moda. O termo racializado, usado por eles, tem origem nos movimentos de defesa da representatividade racial.
Na passarela a mistura de estampas exuberantes da Meninos Rei, Naya Violeta e da Santa Resistência, os trabalhos manuais como o crochê primoroso do Ateliê Mão de Mãe e o macramê da marca As Marias se destacaram, assim como a alfaiataria de Silvério. Mille Lab trouxe conforto em peças de moletom, embora tenha ficado submerso ante o eloquente discurso anti racista, declamado num rap no início do desfile e num poema falado no fim (“São 500 anos nos vendo como ameaça,” dizia de forma enfática.)
Conforto, alfaiataria,
tradição e vibe esportiva
As peças confortáveis predominaram entre as coleções. Puderam ser observadas em À La Garçonne, na Ellus (que completa 50 anos) e na ALG, segunda marca de Alexandre Herchcovitch e Fábio Souza. Os três desfiles, virtuais, mostraram a influência das ruas na passarela. Modelagens mais amplas, tecidos como moletom e xadrezes que nos remetem ao Grunge dos anos 1990 além dos jeans, alguns com cintura um pouco mais baixa.
A estreante Baska, encabeçada pelo blogueiro e empresário alagoano Carlinhos Maia, ao lado do diretor criativo Dudu Farias trouxe looks monocromáticos, que misturou alfaiataria com parcas e moletom. Casacos com mangas removíveis e no feminino, vestidos e macacões com cintura marcada e detalhes de amarrações.
João Pimenta trouxe conforto à alfaiataria, com calças de pernas amplas, barras italianas altas e saias pregueadas. O xadrez veio em pied-poule e príncipe de Gales, acompanhados de risca de giz em costumes e sobretudo longos. Jaquetas e sobretudo em matelassê acetinado pontuaram alguns looks. Modem, de André Boffano, ampliou seu leque oferecendo peças para atender ao público masculino. Gloria Coelho também inovou por meio de algumas peças em moda praia, numa coleção que nos remeteu às suas outras, sempre um tanto parecidas, mas nem por isso menos belas.
Weider Silvério trouxe vestidos e saias ajustadas em malha felpuda, proporcionando conforto em modelos mais sofisticados. A cintura, marcada com recortes verticais. Além do branco, estampa floral em fundo preto. Os casacos brancos ganharam forros cor de rosa, elegantes. O tricô veio amplo e aconchegante, como a necessidade do momento sugere. Outra que também trouxe a sensação de aconchego foi Lilly Sarti, com peças mais leves em vestidos fluidos e macacões, jaquetas de couro numa cartela de cores em que os tons terrosos vieram ao lado do rosa. Walério Araújo se auto homenageou graças aos 30 anos na moda, mostrando peças de seu acervo, customizadas com cristais.
No Centro Cultural São Paulo, Fernanda Yamamoto inaugurou uma exposição por meio de um desfile/performance com modelos da comunidade Yuba, de Mirandópolis, interior de SP. A equipe de estilo escolheu três quimonos utilizados nos espetáculos de dança e fizeram interferências em organza de seda e a inclusão de morim, tela de algodão usada em modelagem. Alguns quimonos foram desenvolvidos totalmente em seda, todos com belas combinações de cores.
Ao fim da semana de moda, a sensação é de que, aos poucos, tudo voltará ao normal. Um normal que já não é mais o mesmo e vem carregado de emoções, um certo cansaço e muita expectativa.