Andar por aqueles corredores é uma provocação aos sentidos. A luz ofuscante que atravessa os cobogós, o cheiro envolvente de comida e os ventos inspiradores de criatividade. Ventos esses que nos levam a uma moda mineira autoral e disruptiva.
O Mercado Novo, no Centro de Belo Horizonte, virou ponto de encontro de nomes que repensam a forma de fazer roupa e acessórios. Ali, em um ambiente efervescente e diverso, as novas ideias pulsam e apontam caminhos inesperados.
Ronaldo Fraga sentiu uma “baforada” de contemporaneidade quando visitou o segundo andar no início da sua reocupação. Ele havia estado ali 15 anos antes, imprimindo os convites para o lançamento de uma coleção.
Na época, lamentou-se por ver o lugar ocioso e decadente. De volta ao mercado, percebeu que aquela faísca ia “pegar fogo” e não pensou duas vezes ao ser convidado para ocupar o terceiro andar.
“Pensei no momento da moda no Brasil e no mundo, que pede um jeito novo de fazer as velhas coisas, de falar com o diverso, de deselitizar, e aquele lugar era perfeito.”
Logo, dá para imaginar que o projeto não seria padrão. O estilista decidiu montar um ateliê aberto, o Ronaldo Fraga Para Todos, para que os visitantes possam vivenciar todo o processo de criação da roupa, desde o desenho até a modelagem, a costura e a finalização.
Quem passou por lá nas primeiras semanas pôde acompanhar a produção do figurino de Milton Nascimento para a sua turnê de despedida.
Quando tudo ainda estava no campo das ideias, alguém perguntou a Ronaldo se ele não tinha medo de cópia, ao que ele respondeu: “Primeiro, o que você pensou está no ar, não te pertence mais, ou pertence a todos. Segundo, as pessoas precisam entender que copiar uma estampa é fácil, mas copiar a identidade e o estilo de uma marca, não. Então, nunca tive medo e nunca me incomodou ser copiado.”
O ateliê ocupa seis lojas. À esquerda, fica a mesa do estilista. Pouco usada, ele confessa, já que as pessoas se aproximam para conversar e tirar foto. Mas isso é o que dá sentido ao espaço. “A moda ocupou, historicamente, um lugar de soberba, de distância, de inalcançável, poucos falam com o criador, como se ele fosse Deus, mas isso ficou para trás. Temos que estar todos juntos na vida real.”
Do outro lado estão as máquinas de costura com a mesa de corte, ferramentas, tecidos e aviamentos. Dois equipamentos ficam sem costureiras para que estudantes tenham a possibilidade de se sentar e aprender na prática a fazer roupa.
Roupas que flutuam
Uma porta nos fundos conecta o lugar da produção com a venda. A loja exibe araras suspensas, que fazem as peças flutuarem, envolvidas por uma instalação criada por Ronaldo com tela feita de fibra de pneu, que vai do teto ao chão.
No meio do ateliê, bem de frente para a entrada, encontramos um piano, emoldurado por uma parede com retratos e enfeites. A sensação é de estar na sala da casa de Ronaldo. O instrumento fica disponível para quem quiser tocá-lo. “Não dá para criar roupa sem ter um piano tocando”, brinca o estilista, que já conta a real intenção daquele espaço: ser palco para todo tipo de arte, não só moda.
Saraus, shows, lançamentos de livros, oficinas, festas, exposição de arte e desfiles. Esses são apenas alguns dos usos possíveis listados por Ronaldo. “Acho que ninguém precisa comprar mais roupa, mas as pessoas devem comprar roupas que falam de outras coisas. Esse ateliê é vivo e é um exemplo, na prática, da tão falada economia criativa”, diz o estilista.
Na conversa, fica escancarada a empolgação de Ronaldo com a ocupação do mercado. Segundo ele, estar ali todos os dias tem sido um estímulo para a sua criatividade. “Minha alma entra em festa e me enche de orgulho quando vejo nos corredores a Zona Norte se encontrando com a Zona Sul, cabelo pink, black power, cabeça raspada, rastafári, casal LGBT cruzando com velhinhos”, descreve.
Além de “abraçar” a diversidade, o estilista destaca que, por reunir marcas genuinamente locais, o mercado é, em sua essência, um raio-x da cultura de BH. Um lugar que deve dar orgulho aos mineiros e ser para os turistas uma síntese do que a cidade tem para oferecer.
“Esse movimento faz com que o mercado seja um lugar único no país”, comenta. “Aqui sentimos uma ‘baforada’ de futuro e nesse futuro todo e qualquer projeto que não falar em inclusão vai remeter ao século passado, vai ter cheiro de bolor.”
Convivência com o diferente
Conhecida pelos sapatos diferentes, Virgínia Barros diz que encontrou seu público no Mercado Novo. Para uma marca que não se rende às exigências da indústria da moda, que não segue tendências, fazia todo o sentido ocupar um centro de compras fora do padrão e que atrai pessoas interessadas em ver o novo e o inusitado.
“Encontrei quem aprecia o meu produto. São pessoas com a cabeça aberta, que querem ver coisas novas e conviver com o diferente.”
O segundo andar estava todo ocupado quando a sapateira foi ver de perto esse movimento no mercado. Ela ficou tão encantada com a proposta que só sossegou quando conseguiu uma loja (por sorte, uma pessoa desistiu de alugar).
“Antes de finalizar a obra, a pandemia chegou e a loja ficou fechada um ano inteiro, mas nunca pensei em desistir, porque sabia que o lugar ia voltar a ficar legal”, relembra.
Nessa loja funciona o outlet da marca. Virgínia não trabalha com coleções, mas, como sempre tem novidades, as mercadorias giram rapidamente. Lá, as clientes conseguem comprar os sapatos pela metade do preço, ou menos.
A sapateira acredita tanto no mercado que acabou de abrir a Casa Virgínia em um ponto de destaque no terceiro andar. A nova loja, que fica de frente para as escadas, é toda revestida com azulejos antigos em azul e branco, tem chão de taco, pé-direito alto e muita história.
“O outlet é um sucesso, só que é muito pequeno. Não estava planejando expandir o negócio, mas surgiu a oportunidade de ter uma loja maior, mais arejada, com mais conforto e todos os lançamentos”, explica.
A Casa Virgínia divide parede com um espaço de experiências para crianças idealizado pela própria designer e projetado pelo arquiteto Rodrigo Sgarbi, onde os visitantes podem deixar seus filhos enquanto fazem as compras no mercado.
Assim como os sapatos, ele foge totalmente do comum. Entre as atrações, brinquedos de madeira, teatro de bonecos, tenda de circo, contação de histórias e oficinas de tricô e aquarela.
Virgínia também quer unir moda e cultura. Ela entende que ali não é um lugar de venda por venda, o produto tem que ter sentido, história e permanência. E aproveita a diversidade do mercado, que tem de bar a galeria de arte, para oferecer uma experiência completa ao cliente.
“Mercado neste formato não existe em nenhum outro lugar do Brasil. Você vai a um lugar inusitado, pode comer comidas diferentes, comprar presentes e consumir uma moda totalmente autoral.”
Pelo que observa a sapateira, turistas de outras cidades, estados e até de fora do Brasil estão descobrindo cada vez mais o mercado. Pensando nesse público, ela e outros lojistas planejam abrir as portas também às segundas (a maioria das lojas funcionam a partir de quarta).
Lugar de criação (e produção)
“Nunca vi tanta economia criativa num lugar só, e olha que já rodei o mundo”, comenta o designer de bolsas Rogério Lima, que acompanhou desde o início a reocupação do mercado. Diante de toda essa efervescência, ele tomou uma decisão ousada: transferiu toda a sua produção para o terceiro andar, exatamente na área onde funcionou o projeto cultural Mercado das Borboletas.
A fábrica está a pleno vapor. Como não tem paredes, dá para ver a movimentação da turma que produz presentes corporativos (que virou o foco do negócio), as bolsas da Diwo (marca da filha de Rogério, Marcella Lima) e produtos desenvolvidos em collabs com outras marcas.
Daqui a dois meses, a área ao lado da fábrica vai se transformar em um espaço de experiências, que tem como destaque uma cozinha-show com dois fogões e um minimercado. O designer gosta muito de cozinhar e quer que ali a comida seja o grande atrativo. “A ideia não é tirar de circulação o cliente que está andando por aqui, mas trazer mais pessoas para conhecerem o mercado”, pontua.
A programação já tem temas predefinidos, que mudam diariamente, e os ingressos serão vendidos pelo Sympla. Domingo será dia de feijoada. Na segunda, um chef convidado vai cozinhar para os participantes.
O espaço ficará reservado para encontros de mulheres na terça, e na quarta será a vez dos homens se reunirem para comer, beber e conversar sobre futebol. De quinta a sábado, a agenda estará aberta para eventos particulares.
Desde o tempo em que teve a Casa Rogério Lima, no Bairro Santa Lúcia, que funcionava com hora marcada, o designer entendeu que não bastava vender bolsas.
“Mais que produto, as pessoas estavam em busca de experiências.” E é o que ele quer proporcionar no Mercado Novo, deixando claro que não se trata de uma loja para atender ao varejo, e sim um lugar para fazer uma imersão pelo seu universo.
Rogério vai receber quem tiver interesse em passar o dia com ele na fábrica para produzir sua própria bolsa. Além disso, o público que participar dos eventos no espaço de experiências terá a oportunidade de comprar bolsas e produtos de marcas parceiras, como objetos de casa e decoração.
A ida para o mercado mudou a vida de Rogério. Não só porque ele concentrou produção e venda num só lugar, a cinco minutos de casa, para onde vai de moto elé- trica. Mas também porque sente que rejuvenesce em um lugar onde a criatividade é pulsante e a diversidade, inclusiva.
“A minha inspiração sempre foi a rua e aqui encontro várias tribos, vejo a moda e o comportamento de cada uma, então consigo falar para todo mundo. O Mercado Novo é muito diferente de todos os outros porque é vivo.”
Os planos do designer não param por aqui. Ele tem vontade de criar uma rádio do mercado e montar um projeto social para resgatar a autoestima da população em situação de rua que vive no entorno.
Abrir-se para o novo
Quando Ana Lima visitou o terceiro andar, nem uma obra tinha sequer começado. Os corredores estavam escuros, sujos e vazios. Mas ela não teve dúvida de que ali era o lugar onde deveria recomeçar sua história. A gerente de projetos na área de tecnologia deu, então, vida a uma esquina com o instigante trabalho de impressão botânica e tingimento natural.
O espaço da Savia chama a atenção pela vitrine do ateliê, que fica ao lado da loja. Ana expõe nas prateleiras as plantas que usa para estampar manualmente as roupas, feitas em tecidos naturais, entre eles eucalipto, carqueja e casca de cebola.
“Acho que o mercado tem o diferencial de ser realmente um lugar para criação. Em nenhum outro shopping você vê alguém fazendo roupa.”
Por definir a Savia como uma marca mutante e desbravadora, Ana entende que o Mercado Novo é o seu lugar. Assim como o espaço, que vem experimentando o novo, a própria artista se abriu para o novo ao mudar de vida e se dispor a levar inovação para a moda (na busca por aviamentos sustentáveis, encontrou recentemente botões de papel reciclado).
Ao mesmo tempo, ela enxerga que ambos estão conectados ao passado. “O mercado resgata uma história antiga, enquanto eu resgato técnicas ancestrais, que muita gente não conhece e que não imagina ver materializadas em roupas coloridas”, compara.
Ana quer que o seu espaço seja tanto uma vitrine para as roupas da Savia quanto um lugar para compartilhar conhecimento em oficinas e workshops.
Velho mercado, novos cliente
O Mercado Novo surgiu com uma salvação para a Libertees. Até então, a marca produzia as roupas dentro do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto e vendia exclusivamente para o atacado. Mas aí chegou a pandemia, os pedidos foram cancelados, o estoque se multiplicou e as detentas não podiam mais trabalhar.
A solução foi abrir no novo espaço criativo da cidade a primeira loja física para o varejo e a primeira fábrica fora da cadeia.
“Já tivemos muita vontade de desistir, porque, sem mão de obra, que é o nosso propósito, qual seria o sentido? Mas, para manter a marca viva, mudamos o modelo de negócio e antecipamos o sonho de ter uma fábrica externa”, explica Marcella Mafra, que é sócia de Daniela Queiroga nesta empreitada.
Há seis meses, a Libertees ocupa uma loja no segundo andar. O que era uma tentativa de fazer o estoque girar acabou se tornando uma interessante estratégia para impactar o consumidor final e ampliar o alcance da marca. Para se ter uma ideia, mais de 90% das vendas são para outros estados.
Marcella conta que há muito interesse em conhecer a história por trás da roupa, que envolve o trabalho de mulheres em situação de cárcere. “Ali está o público da marca. São pessoas antenadas, que valorizam o empreendedorismo social e entendem que não é a roupa pela roupa. Buscam a compra pela experiência, pela essência da marca.”
Com a fábrica, que deve ser inaugurada na semana que vem, a expectativa é, literalmente, dar mais visibilidade ao propósito da marca.
Os caminhantes poderão observar neste espaço, que vai ficar no terceiro andar, o trabalho de costura de mulheres que estão no regime semiaberto (passam o dia trabalhando e dormem na cadeia) e egressas do sistema prisional (que já cumpriram suas penas e encontram dificuldade de inserção no mercado de trabalho).
“Entendemos que essas mulheres já tiveram muita falta de oportunidade, então, quando investimos na formação, damos a elas dignidade e empoderamento.”
Por enquanto, serão 10 mulheres na fábrica, sendo duas costureiras profissionais, para garantir o reabastecimento das araras com a urgência necessária, depois de mais de dois anos sem produção. As sócias planejam desenvolver pequenas coleções e utilizar a técnica de upcycling para transformar peças do estoque. A mão de obra também terá disponibilidade para produzir para outras marcas.
Segundo Marcella, a Libertees encontrou o seu lugar. “Estar no mercado é se sentir em casa. Estamos ao lado de outras marcas autorais e com propósito, que também trabalham com calma e carinho. Isso é o que acreditamos na moda”, comenta.
Lugar afetivo
Célio Dias, da LED, tem uma ligação de afeto com o Mercado Novo: foi o primeiro lugar onde desfilou, há 10 anos, quando a marca ainda levava o seu nome. O movimento de reocupação daqueles corredores coincidiu com a expansão do negócio, que passou a desenvolver acessórios, assinados pela designer e sócia Priscila Gouthier, e a necessidade de abrir uma loja.
O estilista sempre quis ter um espaço físico, mas não achava que a LED poderia estar em um centro comercial comum. O mercado caiu como uma luva. “Aqui é um lugar efervescente, onde você vai encontrar coisas inusitadas, que não está esperando. Isso gera desejo, e moda para mim é isso”, comenta.
Segundo Célio, estar no mercado com a Casa LED, exposto a uma diversidade enorme de público, é uma oportunidade de “furar a bolha” e fazer o que a marca realmente se propõe, que é vestir todos os corpos, gêneros e idades.
Também significa se conectar com quem valoriza o criador local. “Percebo que o belo-horizontino está mais interado do que é da cidade. Está mais bairrista, vamos dizer assim, quando se fala em novos designers”, analisa.
Além disso, ele fica feliz de fazer parte de um novo capítulo da história criativa de BH ao pertencer a um lugar que até pouco tempo estava abandonado. O estilista espera, inclusive, que este modelo seja replicado em outros pontos da cidade.
Diversidade nos corredores
No mesmo corredor onde fica a Candê tem loja de pão de queijo, doces, brechó, bolsa, joalheria, restaurante com fogão a lenha e pizzaria. Alexandre Franco escolheu esse ponto para abrir sua primeira loja justamente pela diversidade de negócios. “Queria que a marca fosse conhecida fora do circuito por onde anda e o mercado atrai a circulação de pessoas muito diversas”, aponta.
A loja não tem nem dois meses e Alexandre diz que vem conseguindo alcançar seu objetivo, já que o mercado funciona como uma vitrine para chegar a um público completamente dife- rente. Muitas pessoas conheceram a marca lá e já voltaram para comprar de novo. “A abertura superou todas as expectativas, tanto de aceitação do público quanto de divulgação da marca e de vendas.”
Para ele, também é interessante estar em um ambiente que reúne tanta gente criativa. A convivência diária, leve e sossegada, faz com que se sinta em um “eterno happy hour”.