Jornal Estado de Minas
ENTREVISTA

Tina Descolada: boneca cadeirante completa 10 anos como agente de inclusão

 

 

Tina Descolada é uma jovem moderna, extrovertida, que gosta de sair com os amigos e aproveitar a vida. Nem parece que precisa de cadeira de rodas para se locomover. Já rodou o Brasil, viajou para vários países e teve até um namorado em Portugal. Por trás da personagem, que acaba de completar 10 anos, está a psicóloga Marta Alencar.

 

 

Motivada por uma indignação com o preconceito e pelo desejo de lutar por um mundo mais inclusivo, ela deu vida à boneca que tem sido uma poderosa agente de inclusão. Para as pessoas com deficiência, fala sobre aceitação e representatividade. Mesmo não sendo real, sua missão na sociedade é ajudar a quebrar barreiras e estimular a convivência com as diferenças. Hoje Tina Descolada vive cercada por uma turma de mais de 100 amigos que representam a diversidade de forma mais ampla. Entre eles, pessoas obesas, negras, com deficiência, idosos e LGBTQIA+.

 

Como você se envolveu com a causa da inclusão?

Sou psicóloga desde 1986. Comecei a trabalhar com pessoas com deficiência na época de estagiária e, depois que me formei, continuei trabalhando com essas pessoas, sempre como psicóloga clínica. Quase sempre atendia crianças com deficiências físicas, intelectuais e transtornos como autismo. Desde o início, sentia que a diferença me atraía, ao invés de me gerar repulsa. Tinha curiosidade e vontade de conviver e ajudar. Passei por várias instituições nesse tempo, escutando o quanto essas pessoas sofriam com preconceito, discriminação, rejeição, curiosidade, pena e via que a sociedade causava muito sofrimento com esses olhares e comportamentos. Isso foi me causando um sentimento de indignação e a indignação me levou para a ação.

Comecei a fotografar as crianças em situações positivas. Queria criar uma imagem positiva das crianças com quem trabalhava na Associação Mineira de Reabilitação (AMR). Fotografamos 115 crianças em situação de inclusão. Fizemos exposições em algumas empresas e, em 2011, lançamos o livro “Inclusão: olhares e possibilidades”, que teve bastante repercussão. Foi um livro muito marcante para as crianças e as famílias, abriu novos pensamentos e poderes. Isso foi me alimentando e me estimulou a provocar um olhar mais positivo para as diferenças.

 

Qual personagem do livro mais marcou você?

Tem a história do João, um menino de 10, 11 anos. A mãe queria que ele fosse fotografado dando alguns passos e combinamos de fazer a foto na Serra da Moeda.

Ele estava começando a caminhar sozinho, apoiado na parede. Na hora H, ele travou, não conseguia caminhar, até porque tinha plateia, e ficou muito inseguro. Sentou e começou a olhar o voo dos parapentes. Aí me aproximei dele e perguntei: João, você tem coragem de voar? Ele disse sim. Então, resolvemos fazer a foto dele voando. Quando o instrutor passou bem perto da gente na rampa, o João gritou: para que pernas se posso voar? Depois fui saber que era uma frase da Frida Kahlo. Até hoje me arrepio e sinto muita emoção ao contar essa história.

 

Como surgiu a ideia de criar a personagem?

Uma paciente estava com dificuldade para aceitar a cadeira de rodas. Pesquisando, descobri uma amiga da Barbie de cadeira de rodas, a Becky, e comprei pela internet. Ela já tinha saído de linha, não era fabricada há muitos anos, mas consegui comprar de um colecionador em um site norte-americano.

Custou mais de R$ 300. Quando comprei a boneca, veio o insight de criar uma personagem. Já tinha uma veia para a arte e guardava dentro de mim todas aquelas histórias das famílias, de rejeição e sofrimento. Aí chega a Valentina, Tina Descolada, que nasceu de um desejo meu de fazer um trabalho com as crianças com mais criatividade. Poucos meses depois, em junho de 2012, sem pretensão nenhuma de causar grande barulho, comecei um blog. Decidi levar a Tina para onde fosse e fazer fotos em perspectiva, como se ela fosse gente. Foi quando enxerguei o potencial dela de encantar as pessoas. Começamos a sair em muitas matérias e ganhar repercussão em vários países. A personagem era uma boneca, mas tinha por trás o conhecimento de uma psicóloga que queria tentar transformar a realidade dessas pessoas.

 

Por que o nome Tina Descolada?

Valentina vem de valente, corajosa, que superou.

Já Descolada mostra que ela é jovem, moderna, extrovertida, que tem muitos amigos, usa as roupas da moda. Descolada também no sentido de deslocar, de não se prender a uma cadeira de rodas. A Tina quer ser como uma jovem qualquer.

 

- Foto: Túlio Santos/EM/D.A Press 

 

A Tina Descolada deixou de ser simplesmente uma boneca para se tornar um projeto de inclusão. Você imaginava que esse seria o caminho?

Não, as coisas foram acontecendo. Só tinha o desejo de ajudar e transformar uma realidade. Isso me moveu o tempo todo. Muito mais do que ser uma influenciadora digital, a Tina é uma agente de transformação, que colabora com a educação para um pensamento inclusivo. Ela aborda um tema, que ainda é pesado para muita gente, de forma leve e lúdica. Nesses 10 anos, venho pensando que a gente precisa ver as diferenças com olhar positivo, valorizar a diversidade, educar contra o preconceito, que faz muitas pessoas sofrerem. Depois começaram a surgir outros bonecos que representam a diversidade, a importância da representatividade, de falar sobre as diferenças e mostrar o quanto somos plurais, únicos e diversos. Tenho bonecos de quase todos os grandes grupos que sofrem discriminação: pessoas obesas (gordofobia), negras (racismo), com deficiência (capacitismo), idosos (idadismo ou etarismo) e LGBTQIA (homofobia). Estou sempre comprando e aumentando a coleção. Tenho mais de 100.

 

Você compra os bonecos prontos, ou tem que customizá-los?

A maioria são customizados. Pego uma Barbie, coloco óculos escuros e bengala e crio uma boneca cega, que não existe ainda. Tenho várias com próteses feitas em impressão 3D. Nas obesas, coloco preenchimento. Já montei também uma com nanismo. Fiz uma boneca com vitiligo muitos anos antes da Mattel (fabricante da Barbie). Agora existem algumas com prótese e negras, muito em função de um público mais consciente, que começou a exigir isso. Também junto a cabeça de uma boneca com o corpo de outra e vou montando de acordo com o que quero. Praticamente todos os bonecos são no padrão Barbie porque, por acaso, comecei com uma Barbie. Faço as roupas também. Às vezes, vou dormir e, no meio da madrugada, acordo pensando em alguma ideia.

 

Quais encontros interessantes a Tina já proporcionou a você?

Com o ativista americano Dr. Scott Rains, que era cadeirante e viajava o mundo para falar sobre turismo acessível. Ele já tinha morado no Brasil. Um dia, ele me procurou, admirado com o trabalho, e me pediu fotos da Tina para mostrar para as pessoas em uma palestra que ia fazer no Nepal. Cheguei a conhecê-lo no Rio de Janeiro e a gente conversava muito pela internet. Ele era uma pessoa fantástica. Sofri muito com a morte dele. Outra história interessante é de uma pessoa de São Paulo que me procurou dizendo que eu deveria conhecer um outro personagem. Quando cliquei no link, apareceu um boneco que morava em Lisboa, o Herge del Rio. Ele não tinha deficiência, ia a todos os lugares para falar de cultura. Cinco meses depois, fui para Portugal para levar a Tina para namorar com o Herge del Rio. Eles passearam por todas as praias de Lisboa. Até hoje converso com o criador dele, que é um advogado.

 

Nesses 10 anos, qual momento foi mais marcante?

Estava em Maceió, durante uma viagem de férias para Alagoas. Tinha voltado da praia de São Miguel dos Milagres e, enquanto estava em um restaurante, alguém arrombou o carro e levou tudo, minhas roupas e a Tina. Quando soube, me sentei no meio fio e chorei. Depois de registrar a queixa na delegacia, postei na internet, indignada, falando que a Tina tinha sido sequestrada. Só sei que a notícia se espalhou para todo lado. O amigo dos Estados Unidos, o namorado de Portugal, todo mundo indo atrás da polícia. Saiu até matéria no Estado de Minas contando que a Tina tinha sido sequestrada. O título era “Volta, Tina”. A Tina nunca voltou, mas as crianças conseguiram trazê-la de volta de várias maneiras na imaginação. Pedi para elas escreverem histórias de como a Tina teria voltado desse sequestro e fotografei cada uma das cenas. Roubaram a boneca, mas não iam roubar meu sonho de um mundo mais inclusivo.

 

Quais lugares a Tina mais gostou de conhecer?

Os lugares onde a Tina se sentiu melhor e mais à vontade foram Madrid e Nova York. São cidades muito acessíveis, onde ela consegue andar com muita facilidade e a deficiência passa mais imperceptível. Até o olhar das pessoas é diferente. Sei que ela gostaria de viver uma aventura em uma trilha no alto do Himalaia para ver o Monte Everest, mas isso não é possível, só na imaginação. Levei a Tina para o Deserto do Atacama com uma cadeira especial e estou sempre pesquisando sobre a acessibilidade dos lugares, se alguém com deficiência já foi, como é, como lidam. As pessoas com deficiência têm todo o direito de conhecer as belezas naturais do mundo. Mas já não levo mais a Tina para todo lugar. Estive no Jalapão e o dono da agência me disse que seria muito difícil para um cadeirante, então não a levei. Não dá para fazer só como se fosse na imaginação, temos que colocar o pé na realidade.

 

Apesar de ser uma boneca, a Tina também conversa com os adultos?

Todas as pessoas já foram criança um dia e brincaram com um boneco, então isso já está na memória. Acredito que a Tina traz um conteúdo afetuoso e informativo para todas as idades. A reflexão sobre as diferenças, acessibilidade, sobre um mundo mais inclusivo serve para adultos e crianças.

 

Você falou da Tina como agente de mudança para a sociedade. E para as pessoas com deficiência, qual tem sido o ganho?

Um dos meus princípios com a Tina é não fazer para, mas com as pessoas com deficiência. Nunca soube de uma pessoa com deficiência que fizesse alguma crítica, que nao aceitasse ou não entendesse a importância da Tina. Isso para mim é muito legal e muito importante. Sempre tive o apoio de pessoas com deficiência justamente porque a Tina vai muito além de uma boneca, ela traz todo um significado. Muitas pessoas me procuram e falam o quanto a Tina foi importante para elas. Uma senhora de Recife me mandou mensagem pelo Facebook contando que odiava Barbie quando era criança porque a boneca era perfeita e ela usava cadeira de rodas. Quando comecei o trabalho com a Tina, ela passou a gostar dela e de bonecas. Me lembro também da história de uma criança que entrava debaixo da coberta e ficava olhando a Tina antes de dormir de tanto que gostava dela. Um casal com nanismo me pediu para fazer bonecos que os representassem. Consegui fazer a montagem e você não imagina a felicidade deles.

 

Qual é o sentimento de chegar aos 10 anos?
A sensação é de que nem parece que tem tanto tempo assim. O trabalho é leve e criativo. Nesse meio tempo, me aposentei e tive mais tempo para fazer atividades presenciais com a Tina. Também fico feliz de ver que estou conseguindo fazer alguma coisa para tornar o mundo melhor.

A sua motivação continua a mesma?
A essência se mantém, de querer transformar uma realidade e lutar por um mundo melhor para todos. Mas a empolgação foi amadurecendo, já estou com 60 anos. Depois de 10 anos com a personagem, hoje estou mais no pé no chão, mais madura e serena.

Quais são os planos para a Tina?
Fico pensando em criar mais produtos para o universo infantil. Tenho muita vontade de fazer livros de histórias e brinquedos que sejam mais universais. Quero também promover mais ações presenciais em escolas, museus e eventos. Precisamos muito de educação para o pensamento inclusivo.

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