Yuri Guerra, de 28 anos, foi o único brasileiro a participar do Festival della Valle d'Itria, em Martina Franca, no Sul da Itália, um dos maiores eventos de música clássica do país. Cantor lírico do time dos baixos (com voz grave), recebeu elogios da crítica especializada por sua atuação na estreia mundial da obra “Ópera Italiana”, em julho.
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Como você se envolveu com a música?
Não nasci em família de músicos, todo mundo é servidor público. Mas os meus pais, por mais que não fossem envolvidos com o mundo da música, sempre me levavam para concertos. Com três anos, assisti a minha primeira ópera, no Palácio das Artes. Ficava lá quietinho, superempolgado. Amava escutar a música. Logo de cara, isso foi me influenciando. Com seis anos, já estudava piano clássico. Meus pais não esperavam que eu fosse desenvolver uma paixão tão grande pela arte. Queriam para mim o caminho da medicina, do direito, dos trabalhos mais estáveis, mas não teve jeito.
Quando você começou a cantar?
A minha primeira experiência com canto foi em uma aula de música na Fundação Torino, escola onde estudava em BH. Tinha seis anos. A professora me chamou para cantar e ficou encantada com a minha voz. Disse que já era muito natural, já bem empostada e me convidou para gravar um CD do coral que ela tinha. Foi o primeiro convite da minha carreira. Depois a paixão pelo canto foi se tornando cada vez maior. Meus recitais de piano começaram a se tornar de canto. Pedia para a professora de piano tocar para eu cantar. Não consegui participar da gravação do CD, porque estava fora do país. Fiquei arrasado, achando que tinha perdido a única oportunidade de fazer um trabalho. Brinco que já era dramático desde pequeno, o que para ópera é ótimo. Mas aquela não era a única oportunidade. A Fundação Torino abriu um coral, quando estava no ensino médio, e me tornei o primeiro solista da escola. Comecei a ter aulas com professores de canto quando tinha 12 anos. Falam que crianças passam por instabilidade vocal, a voz fica subindo e descendo, mas a minha não. Já tinha tido muita aula de canto e técnica.
O que fez você se apaixonar pelo canto?
Com seis anos, quando cantei pela primeira vez na frente da turma, vi que o canto tinha o poder de provocar uma reação nas pessoas. Os meus colegas vieram me parabenizar, ficaram curiosos. Então, quis estudar mais sobre música. Tinha 12 anos quando entendi que queria cantar o resto da vida. Expliquei para os meus pais que o canto era a minha paixão e seria a minha profissão. Para eu ter mais experiência, quando a gente viajava, a minha mãe me fazia cantar em tudo quanto é lugar. Cantei em Israel, República Checa, Inglaterra e em uma série de lugares na Itália. Eram momentos extremamente espontâneos. Na igreja do Menino Jesus de Praga, devia ter uns 15 anos, a minha mãe falou com o padre que eu era cantor e ele me falou: “então, canta”. Cantei para uma quantidade imensa de turistas. Cantei assim também na Gruta da Natividade, que marca o lugar onde Jesus nasceu. Tive a oportunidade de ver como a música poderia afetar as pessoas de forma positiva. Essa possibilidade de compartilhar algo com o público, uma mensagem de amor e paz, foi uma das coisas mais importantes que vivi. Isso me convenceu a seguir.
Quando você se tornou um cantor lírico profissional?
A carreira de cantor lírico é muito longa. Como em qualquer outra profissão, você precisa ter uma base de estudo técnico para melhorar cada vez mais e entrar em outros estágios profissionais. É um pouco diferente do canto popular, em que começar desde pequeno não é um problema. Mas comecei a minha carreira jovem. Meu primeiro concerto oficial foi quando tinha 16 anos, na antiga Casa Fiat de Cultura.
Por que você decidiu se mudar do Brasil?
Chegou um momento em que senti necessidade de buscar algo fora e me mudei para o Canadá quando tinha 15 anos. Naquela época, não se investia em música clássica no Brasil e a maior parte dos profissionais me sugeriram buscar outro tipo de estudo fora. Assim, teria mais possibilidades. Meus pais não queriam que eu viesse para a Itália, porque era praticamente a minha segunda casa, e não teria a oportunidade de me aprofundar em outra cultura. No Canadá, me aprofundei no estudo do inglês e do francês. Cheguei lá como cantor lírico. Já estudava técnica desde pequeno. Fui para a St. George's School, que está entre as cinco melhores escolas de música do Canadá. Morava sozinho, no internato da escola, e o que me dava força para continuar era a paixão pela música. Fiz diversos concertos, inclusive no consulado do Brasil em Vancouver. Quando terminei o primeiro ano, me ofereceram bolsa para permanecer. Fiquei nas nuvens. Depois entrei no ensino superior na Vancouver Academy of Music, também com bolsa. Estudei lá por dois anos fazendo a preparação para o bacharelado. Depois senti que precisava mudar de novo. Nesse momento, surgiu uma pessoa que me serviu de ponte para vir para a Itália. Ela era uma grande violinista e me indicou o professor de canto com quem estudo há quase 10 anos, o português Fernando Cordeiro Opa. Fiz a transferência para a Itália em 2014, tinha acabado de fazer 19 anos, e me formei no conservatório de música Giovanni Battista Martini, em Bolonha, onde também fiz meu mestrado. Ambas as teses foram sobre Villa-Lobos.
Fale um pouco sobre a sua paixão por Villa-Lobos.
A minha relação com Villa-Lobos, que é de muito amor, começou quando ainda estava no Canadá. Queria entrar em contato com músicas brasileiras e cantar repertórios que não fossem só de base europeia. Estava com saudades do Brasil. Villa-Lobos surgiu como um dos grandes compositores para encontrar uma morada brasileira enquanto estava no exterior. Nisso, comecei a estudar as músicas de câmara dele e criei um projeto de re-internacionalização da vida e obra de Villa-Lobos pela Lei Rouanet com o concerto “Um espetáculo para Villa-Lobos”. Me apresentei em BH entre 2014 e 2015, no período de mudança para a Itália. Depois criei um projeto para cantar esse mesmo repertório com voz e piano (não era voz e orquestra de câmara, como o outro). O primeiro concerto desse projeto foi no Rio de Janeiro, depois na Casa Verdi, em Milão, em parceria com o consulado geral do Brasil na cidade.
Existem muitas oportunidades de trabalho na Itália?
Sim, principalmente para os jovens que querem construir um currículo. Graças a Deus, tive a oportunidade de realizar concertos e apresentações desde pequeno e, quando vim para cá, estava com o desejo de realizar o sonho de construir a minha carreira e conseguir um espaço mais fixo. Só que tudo na vida requer paciência e construção. Esse meu percurso tem me ensinado isso. Preciso ter muita paciência e amor por tudo o que já consegui realizar. Tenho que agradecer muito. A minha primeira ópera foi com o projeto Stradella, em 2019. Participei da estreia mundial dessa ópera em tempos modernos. Ela já tinha sido executada em 1600 e depois nunca mais. O projeto redescobriu essa ópera e a trouxe para cantarmos. Fizemos uma turnê pela Itália. Daí comecei a construção do meu currículo como jovem profissional. Continuo nessa estrada e estou sempre em busca de novas oportunidades.
Qual é o seu diferencial por ser brasileiro?
Sem dúvida, o fato de ser brasileiro surpreende. Não existem muitos por aqui. No meu percurso, encontrei pouquíssimos. Então acho que isso surpreende e gera curiosidade.
Como é a sua rotina?
Nunca tenho rotina. Geralmente, as oportunidades são fora de casa, então viajo muito. Estava em Martina Franca, no Sul da Itália, em julho e agosto. Depois fui para a Áustria, voltei para Bolonha e agora estou em Roma fazendo outra produção. Na sequência, vou para Potenza, no Sul da Itália, para participar de outra produção. É sempre um vai e vem. Já estive duas vezes na França. Vou para onde surgem as oportunidades de trabalho, sempre dentro da técnica do canto lírico e da música clássica.
Como a pandemia afetou o seu trabalho?
Fiquei praticamente dois anos parado. Para um jovem profissional, é muito desmoralizante, por diversos pontos de vista, inclusive psicológico. Continuei estudando repertórios, comecei a fazer cursos na universidade de musicologia, aulas de outras línguas. Tentei não perder tempo. Agora a agenda voltou a ficar cheia, o que nos permite trabalhar em diversas realidades teatrais.
Qual foi, até agora, o momento mais marcante da sua carreira?
Posso falar que foram alguns momentos marcantes. Da minha carreira jovem, sem dúvida, foi a participação de um evento com o papa Francisco, em Roma. Sou músico voluntário da Morhan Brasil e da Itaka Escolápios, que oferecem aulas gratuitas para crianças e adolescentes, e me convidaram para cantar para o papa. Outro momento muito marcante foi quando substituí o meu colega, o italiano Andrea Mastroni, que já tem 40 anos e uma carreira muito célebre. É um dos baixos mais requisitados na Itália e no mundo. Ter sido chamado para substituí-lo foi uma honra. Fiz a estreia mundial da ópera contemporânea “Ópera Italiana”, escrita em 2010, em Martina Franca. Isso é muito raro, não temos tantas oportunidades de fazer estreias mundiais de óperas. Ainda são poucas as oportunidades de novos compositores se apresentarem em espaços culturais de renome, mas acredito que isso vai mudar ao longo dos anos. Tive a oportunidade de interpretar o personagem pela primeira vez. Fui o primeiro a cantar, então dei a minha própria realidade vocal e musical a ele. Esse é um dos grandes momentos da minha carreira até agora. Em Martina Franca, também participei da ópera “Le joueur” e do “Concerto per lo Spirito” com Federico Maria Sardelli, um dos grandes maestros da música barroca. Fiquei muito feliz com os comentários da crítica italiana sobre os concertos. Estou ficando conhecido.
Quais são os seus planos?
Pretendo me colocar em todas as oportunidades que surgirem na minha estrada, que sejam interessantes para o meu percurso artístico. Agora que sou um cantor lírico formado, gostaria de ter a oportunidade de trabalhar no Brasil e com novos compositores brasileiros, para executar as músicas deles aqui na Europa. Fiquei distante do Brasil por um bom tempo. A pandemia me trancou na Itália e fiquei três anos sem ver a minha família. Tinha diversos projetos no Brasil, mas não tive oportunidade de realizá-los. Estava para lançar um projeto sobre o cantor Vicente Celestino antes da pandemia. Gostaria de recuperar esses projetos e buscar novos compositores, a nova música brasileira.
Você enxerga alguma dificuldade de aceitação da música clássica no Brasil?
Acho que o desafio maior está na questão de oportunidade. Já realizei concertos de música clássica em várias escolas públicas no Brasil, como voluntário, e encontrei uma relação de muito amor por esse repertório. Os jovens se mostraram curiosos e interessados e isso me surpreendeu. Imaginava uma receptividade completamente diferente, mas foi muito calorosa. Outro exemplo é o da “Sinfônica ao Meio-Dia”, do Palácio das Artes. Os concertos ficavam lotados de pessoas de todas as classes sociais, que estavam curiosos para escutar o repertório. Música clássica é para todos, e não só para um grupo.
Quando você olha sua trajetória, o que mais te orgulha?
A busca constante por linkar a minha paixão pela música com a possibilidade de comunicar uma mensagem para as pessoas. Isso é motivo de grande felicidade para mim. É o presente maior por poder realizar essa profissão. Quero fazer isso para o resto da minha vida.
Você enxerga o seu futuro na Itália?
O meu sonho seria ficar seis meses na Europa, seis meses no Brasil e um pouco no Canadá também. Se conseguir levar a carreira para um estágio mais internacional, vou ficar muito contente. Amo muito o meu país, o Brasil está no meu coração. É muito importante mostrarmos que o Brasil tem muito a oferecer, não é só aquilo que o turista vê. Por isso, me traz muita alegria encontrar colegas brasileiros e quando surge alguma oportunidade de fazer um trabalho no Brasil.
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