Isabela Teixeira da Costa
Enquanto me dirigia para a casa de Nieta Palhano para entrevistá-la pelo lançamento de sua biografia, fui me perguntando o que aquela senhora teria de tão especial para escrever um livro sobre sua vida. Ainda não tinha lido o livro, mas havia recebido um material que instigou minha curiosidade. Assim que ela abriu a porta, fui atraída por seus grandes, vivos e lindos olhos azuis. De uma maneira cativante e muito simpática me cumprimentou se desculpando pelo excesso de caixas na sala – está de mudança para outro apartamento.
Nieta é uma contadora de causos nata. Quando começa a falar nos envolve de tal maneira que prende a atenção. Talvez, por isso, seus sobrinhos tenham guardado na memória todas as histórias e músicas que ela contava e cantava para cada um, desde a mais tenra infância.
A ideia de fazer um livro foi das sobrinhas Alexia – que mora com ela –, e Lúcia Castro Souza. “Lucinha escreveu as histórias que eu contava para meus sobrinhos, imprimiu e deu para eles de presente, daí nasceu a ideia do livro”, explica, “mas eu pensava que seria algo de âmbito familiar, se soubesse que seria editado em grande quantidade e colocado à venda teria sido mais discreta nos meus relatos. Coloquei nome e sobrenome das pessoas e falei certas intimidades”, conta Nieta um pouco constrangida, já pensando nos problemas que o livro pode trazer com alguns amigos.
Outra surpresa que tive foi descobrir que ela era irmã do querido José Palhano Júnior, muito conhecido em Belo Horizonte, afinal, ele atuou por décadas na área cultural e social do Minas Tênis Clube.
O lançamento do livro Nieta: Um chão todo meu" (editora Livros de Família) foi bastante prestigiado, na unidade 1 do Minas Tênis. Além do grande número de amigos, um em especial ela pede registro: Miguel, um senhor de pouco mais de 70 anos, que ela conheceu quando ele era criança, e teve muita vontade de criá-lo. Mas Miguel não conseguiu ficar longe de sua mãe. Mesmo assim Nieta acompanhou sua vida, foi madrinha de casamento e de batisou seu filho.
A família compareceu em peso, inclusive a sobrinha mais velha, a atriz Regina Braga, com o marido Dráusio Varela e o filho, o também ator, Gabriel Braga Nunes. Regina surpreendeu os convidados ao ler trechos da obra, e lembrou, ao lado dos primos, várias canções que a tia cantava para eles quando eram pequenos. “Eu cantava um monte de música, quase todas eram tristes, e colocava entonação. Uma elas era um fado que dizia 'ninguém sabe a dor que sinto dento de mim'. Um dia Regina chegou muito preocupada, e perguntou que dor era aquela que eu sentia. Nunca pensei que uma criança, nova daquele jeito, prestasse atenção nas letras”, relembra Maria Antonieta, surpresa.
A obra contou com a colaboração da conhecida jornalista Marta Góes que ajudou na escrita do livro, e fez questão e vir para o lançamento. “Faço parte da equipe de escritores da editora Livros de Família, e fui contatada pela Lúcia Castro, sobrinha da Nieta, para escrever seu relato autobiográfico. Era um presente da sobrinha por ocasião de seus 90 anos. Eu já conhecia Nieta, pois sou amiga da vida toda de outras sobrinhas dela, Bia e Regina Braga. Regina encenou minha peça “Um porto para Elizabeth Bishop”. Ao saber que eu assinava, com Fernanda Montenegro, sua autobiografia Prólogo, ato, epílogo (Companhia das Letras, 2018), Lúcia teve a ideia de me chamar para essa parceria com a Nieta”, conta a jornalista. “Nieta é uma mulher incrível, diferente da maioria de suas contemporâneas. Fez de sua solteirice um ato de liberdade, e não um fracasso – mulheres que não se casavam eram vistas como fracassadas. Sua beleza, sua alegria e seu amor à vida eram visíveis na noite do lançamento do livro”, completa.
Silvia, mãe de Maria Antonieta, era da Amazônia e o pai, José Martins Palhano, era do Maranhão. Eles se conheceram quando sr. José foi estudar em Manaus, e se casaram. Ele era advogado, e veio trabalhar em Minas como delegado. Depois foi professor. Tiveram dez filhos e passaram grande parte da vida em Lavras, antes de fincar raízes em Belo Horizonte. Em Lavras tinha a escola Agrícola, e duas filhas se casaram com estudantes. Uma se mudou para a Paraíba e outra para São Paulo.
padrões sociais Ainda criança, Maria Antonieta gostava de fincar pauzinhos no chão, brincando que construía uma fazenda. Na contramão dos padrões sociais, ela dizia que quando crescesse não iria se casar e que queria mesmo era ser fazendeira: “arranjo uma galinha, ela põe ovo, eu vendo; vai nascendo mais galinha, elas botam mais ovos e eu vendo”, explicou certa vez para sua mãe. Não virou fazendeira. Namorou, foi noiva, mas o casamento não aconteceu, e ela garante que não foi por trauma nem por causa de sua opinião infantil. Foi por simples acaso. Mesmo assim, Nieta aproveitou a vida e ajudou as irmãs a criarem os 22 sobrinhos, e os 52 sobrinhos-netos, e por isso é tão amada e querida por todos eles.
Estudou até o fim do ensino fundamental. Alice, sua irmã caçula, estava noiva e descobriu um curso de economia doméstica, que existia na Gameleira. Chamou Nieta para fazer o curso com ela, mas precisavam ficar internas. A ideia não agradou Alice que pulou fora, mas, determinada, Maria Antonieta continuou, com a condição de poder ir para casa nos finais de semana. Depois de formada, passou a trabalhar na empresa, que mais tarde se transformou em Saps e depois passou a fazer parte do MEC. Após 18 anos de formada Nieta cursou História na PUC.
Perguntada se conseguiu contar tudo o que queria no livro, ela diz que não, e dispara a contar casos. O primeiro foi de um amigo da família, que morava no interior e sempre que ia visitar seus pais ficava hospedado na casa e esquecia de ir embora. “Minha mãe estava grávida da minha irmã que é um ano mais velha que eu. Minha mãe teve o bebê, fez o resguardo e ele não ia embora de jeito nenhum. Meu pai inventou que teriam que viajar para o Rio de Janeiro, e nada. Tiveram que viajar de verdade, para que o senhor Zoroastro voltasse para sua casa.” E emenda com casos da empregada que levava tudo ao pé da letra: “Minha mãe pedia a ela para tirar a mesa e ela queria empurrar o móvel para trocá-lo de lugar. Uma vez pedimos para ela levar uns botões para forrar e embrulhamos os botões no retalho do tecido que deveria ser usado. Ela voltou sem fazer o serviço e disse que não havia sido possível porque o rapaz não tinha o tecido. Perguntamos sobre o retalho, ela respondeu na maior tranquilidade que tinha jogado fora, porque teve vergonha de chegar com aquele trapo, no armarinho.”
Regina Braga registrou no livro: “Nieta é a tia que nunca faltou para nenhum de nós, sempre atenta, alegre, amorosa, linda, bem-vestida e disposta a cuidar de quem precisasse. Nenhuma economia de emoções, mulher festiva que sempre gostou de brindar. Sou a sobrinha mais velha. Lembro dela ainda adolescente, dando aula em escolas rurais no interior de São Paulo, onde eu morava, entretida em ensinar os alunos a costurar sacos de estopa para fazer casacos que os protegesse nos dias frios.
Na família, Nieta cuidou de três gerações de sobrinhos. Noah, sobrinho bisneto, está com meses.
Todos nós temos a Nieta em comum, seu sorriso e sua cumplicidade deu todos a sensação de sermos amados e compreendidos. Nós, sobrinhos, temos em comum seu repertório de histórias para crianças, cantadas por ela. Como conseguia nos encantar, fazer com que chorássemos de tristeza e sono com a música do pobre peregrino “que vai de porta em porta com sua perna torta pedindo esmola”. Ou com a alegria da história do pintor que cantava: “na cozinha quero cor de bananeira para alegrar o coração da cozinheira”? E ainda ser capaz de nos levar para “o alto da caixa d’água onde morava um moço moreno, noivo da Iracema que de tanto trabalhar morreu envenenada. Seu noivo que envenenou.”