Jornal Estado de Minas
ENCONTRO DE CRIATIVOS

Tiradentes: designers e artesãos se unem para criar produtos com identidade

Só sorrisos: o encontro com Bela Ladeira transformou a vida do artesão do couro Nôca - Foto: Eugênio Sávio/Divulgação
Coletivo, colaborar, união. Palavras que não saem da boca de quem participa da Semana Criativa de Tiradentes (SCT). Realizado desde 2017, o evento promove o encontro de designers e artesãos da região para a troca de conhecimento. O resultado se materializa em produtos que unem técnicas tradicionais e desenhos inovadores. Na semana passada, as criações desta edição, a sexta, foram apresentadas ao público, na cidade histórica.

 
Nas visitas a Tiradentes, Simone Quintas, uma das idealizadoras da SCT, via muita gente talentosa, mas um artesanato repetitivo. Segundo ela, a iniciativa de organizar os encontros tem como objetivo, no fim, criar uma identidade verdadeiramente brasileira.

“Se usarmos as nossas técnicas e o nosso talento a nosso favor, vamos criar um design que não existe em nenhum outro lugar do mundo”, aponta a jornalista de São Paulo, que se juntou ao produtor de eventos tiradentino Júnior Guimarães.
 
Em quatro dias, a STC apresenta os resultados de uma imersão que ocorre ao longo do ano. Designers e artesãos se encontram para trocar experiências e desenvolver produtos juntos.

Nesta edição, o time de designers era formado pelo carioca Gustavo Bittencourt, a mato-grossense Karol Suguikawa, a paulista Luly Vianna, o mineiro Pietro Oliveira e o alagoano Rodrigo Ambrosio.
 
'Tenho fome de aprender', diz o marceneiro Valcir Barbosa, que participa da SCT desde 2019 - Foto: Eugênio Sávio/Divulgação 
“A força do trabalho está em colher insights de todos os lados”, opina Karol Suguikawa, que trabalha para a fábrica de móveis de São Paulo Breton.

Ao contrário do que muitos pensam, os designers não chegam com respostas prontas. As ideias surgem justamente com a troca, de entender como os artesãos trabalham e quais são seus desejos e expectativas.
Por isso, ela diz que a riqueza do encontro está no processo; o produto é um “mero” resultado.
 
O que acontece, como observa Karol, é que os artesãos costumam ficar com a “vista cansada” de tanto trabalhar com o mesmo material. O olhar de fora acaba mostrando novas possibilidades.

Edna de Santana e os filhos Tatiane e Wellington, de Prados, fazem flores com palha de milho. Nunca tinham pensado em usar luzes nos arranjos. Na imersão, surgiu a ideia de criar luminárias e um novo caminho se abriu. As lâmpadas são instaladas no miolo das flores, apoiadas em vasos de cerâmica.

Não é diferente a história de Carlos Henrique Barbosa, Leonardo da Silva e Tiago César, de Tiradentes, que fizeram joias pela primeira vez com lata. Na exposição “Design feito a mão”, com produtos criados nesta edição, eles apresentaram brincos e enfeites para a cabeça em formato de flores.
 
Quando fala sobre a potência da SCT, Karol usa outra palavra: transformação. Não só dos materiais, mas também da vida.

O goiano Marcus Camargo desenvolve um trabalho com artesãos de Cidade de Goiás, terra da poetisa Cora Coralina e da artista plástica Goiandira do Couto (ao fundo) - Foto: João Bertholini/Divulgação
Como exemplo, ela cita Nôca, que tinha desistido de fabricar sapatos de couro e hoje se alegra em ver seu trabalho valorizado.
“A palavra transformação é muito importante na minha vida. Já passei por isso”, comenta a designer, que é uma mulher trans.
 
Nascida em Barra das Garças (MT), Karol se formou em arquitetura antes de estudar design em Milão. Demorou para encontrar seu lugar no mercado, mas agora não esconde a felicidade por estar entre profissionais que tanto admira.

Ao criar o Método Vértice, passa a discutir sobre gênero no design. Transforma curvas (associadas ao feminino) de móveis conhecidos em linhas retas (sem gênero definido).
 
O sapateiro Cláudio Ferreira, conhecido como Nôca, hoje tem o riso solto. Nem parece que andava desiludido com o ofício, que aprendeu com o pai. “Santo de casa não faz milagre”, conclui o artesão do couro, que precisou do olhar de fora para encontrar motivação para seguir com a tradição da família. Na sua cidade, o trabalho era pouco valorizado.
 
A transformação se deu pelo encontro com a agrônoma Isabela Ladeira. Bela é de Prados e usa os sapatos de Nôca desde criança.
Anos depois, com a ajuda dele, montou uma oficina itinerante para viabilizar seu plano de rodar o Brasil em uma Kombi. Na pandemia, ela voltou a morar na cidade e decidiu chamar o artesão para trabalharem juntos.
 
Parte do time de designers desta edição, Karol Suguikawa mostra sua mesa de centro Cunha, inspirada no apoio e na solidez da família - Foto: Snapcomm/Divulgação
Nôca topou, só que tinha jogado todos os moldes fora. Alguns estavam enterrados no seu quintal. Já fazia três anos que não produzia nem um sapato.

Com o incentivo de Bela, eles recuperaram e restauraram os modelos. Moradores ajudaram, levando os sapatos que tinham em casa. “A cidade inteira tinha sapato dele. Só uma pessoa levou 13 modelos. De alguns ele nem se lembrava”, ela conta.
 
Desse encontro nasceu a marca Aripuá. Um ano depois, surgiu o convite para participar da SCT. Na troca com os designers, eles desenvolveram peças inéditas de couro, como cadeiras e bolsas.

“Isso ampliou nossa visão e nos estimulou a ir além”, aponta Bela.
Os dois são assim: se lançam um desafio, eles não sossegam até conseguir. Nôca comenta: “É muita ideia para pouco tempo”.
 
O encontro não é só de afinidades, mas também de gerações. Ele tem 66 anos e ela, 32. Um aprende com o outro o tempo inteiro. Nôca brinca que Bela é “uma pedra no seu sapato”. “Todo dia, depois do almoço, ia pescar. Bela tirou meu sossego.” Mas a verdade é que ele está feliz da vida. Sorridente, conta que agora anda pelas ruas e recebe os parabéns e pedidos para tirar foto.
 
Completam o time de artesãos desta edição, que formam o coletivo LAB, o marceneiro Alisson Nascimento, de Tiradentes, e a bordadeira Camila Mendes, de São João del-Rei.

Teia colaborativa

Pela primeira vez na SCT, o goiano Marcus Camargo tinha muita história para compartilhar. O designer e artista visual desenvolve um trabalho parecido em Cidade de Goiás, onde nasceu, terra de Cora Coralina, uma de suas inspirações.

Em uma das oficinas da SCT, o artesão Expedito Jonas de Jesus ensinou a entalhar pedra-sabão - Foto: Eugênio Sávio/Divulgação
Segundo ele, o evento reforça o poder da teia colaborativa. “A semana comprova que é possível haver uma relação respeitosa e sensível entre artesão e designer.”

Além da arquitetura colonial, Marcus enxerga outra semelhança entre Tiradentes e Cidade de Goiás: estavam longe de ter um artesanato com identidade.
Na sua cidade, onde existem muitas olarias, o trabalho com barro se resumia a panelas e utensílios de cozinha. Em 2018, quando ele conheceu o artesão seu Castrinho, a história começou a mudar.

Juntos, eles criaram a coleção Pertencimento, que estreou com os vasos Rita (nome da avó de Marcus). Ambos são de barro, modelados a mão, e têm uma argola de latão.

“Como designer, nunca estou satisfeito e sempre quis usar outros materiais para valorizar ainda mais o trabalho. Escolhi o latão, um metal nobre, mas que não rouba a cena.” O plano agora é usar pedra-sabão.

Outra peça icônica desse encontro entre design e artesanato é o pote Coralinas, resultado da união entre duas artesãs da associação Mulheres Coralinas. Enquanto uma faz esculturas realistas, com expressões faciais detalhadas, a outra sempre se voltou para utilitários.

Artesãs de Carapicuíba assinam coleção de máscaras de renda renascença que representam personagens folclóricos da região - Foto: Rinaldo Martinucci/Divulgação
O pote, que pode ser usado como vaso, tem uma ciranda de rostos de pessoas (vivas e mortas, conhecidas e anônimas) de Cidade de Goiás.
 
Desde que se aproximou dos artesãos, Marcus vê mais sentido no seu trabalho. “Entendi com a primeira coleção que o coletivo é muito mais valioso”, aponta. “A nossa missão não é ser salvador da pátria, mas trazer outra perspectiva para o trabalho deles. Depois de várias gerações, surge um frescor.”
 
Entre as exposições que se espalharam por Tiradentes, destaque para a “Rendando histórias”, das rendeiras de Carapicuíba, no interior de São Paulo. O grupo de mulheres assina uma coleção de máscaras de renda renascença, que representam personagens dos festejos do cavalo-marinho, uma das manifestações culturais mais representativas da região.
 
A designer têxtil mineira Ana Vaz participa do projeto como diretora criativa. Convidada para ajudar as mulheres a desenvolver uma coleção autoral, ela sugeriu as máscaras.

Até então, o grupo da Aldeia Jesuítica de Carapicuíba (fundada em 1580 pelo padre jesuíta José de Anchieta), que aprendeu o ofício com uma rendeira de Pernambuco, tinha um trabalho mais convencional.
 
Edna, Tatiane e Wellington de Santana, de Prados, lançaram luminárias de flores de palha de milho com vaso de cerâmica - Foto: Cacá Bratke/Divulgação
São elas que desenham e tecem as máscaras com fio de algodão. Depois lavam, engomam, passam e estruturam em uma barra de cobre.

O mestre do couro Vasique Leôncio, de Dores do Campo (MG), que já participou da SCT, faz a base. “Existe um sentido simbólico para o uso desse material. As primeiras máscaras eram de couro e ainda hoje muitas são feitas assim pelos mestres mascareiros”, revela Ana.

Ligada a vários projetos que resgatam e divulgam saberes artesanais, a designer têxtil diz que precisa haver um encontro para que algo seja verdadeiramente construído.

“O primeiro contato pode ser desconfortável, um precisa entender o outro, mas é sempre um aprendizado. A cada encontro, a cada experiência me sinto transformada, já não sou mais a mesma”, analisa.

Eterno estado de criação 

Para o público, a SCT se resume a quatro dias. Mas o que se vê exposto na cidade vem sendo desenvolvido ao longo do ano e os trabalhos nunca acabam. Artesãos e designers que já participaram de edições anteriores podem continuar criando juntos, para que a mente esteja em eterno estado de criação. Produtos dos veteranos estavam na exposição “Desdobramentos”.
 
Com a SCT, os idealizadores Simone Quintas e Júnior Guimarães querem valorizar e divulgar o artesanato de tradição - Foto: Eugênio Sávio/Divulgação
O marceneiro Valcir Barbosa participou da imersão em 2019 e não parou mais. “Tenho fome de aprender. Quero melhorar a cada dia mais e continuar a criar com os designers. O que me motiva são os desafios”, justifica. O que aprende, diz, leva para a vida.
 
De três anos para cá, ele enxerga muita evolução no seu trabalho. Antes, só fazia móveis rústicos com madeira de demolição. Além de aprimorar os desenhos e os acabamentos, passou a misturar materiais. Bandejas com alça de couro, aparador com tampo de pedra-sabão e pratos com detalhe em estanho são alguns dos exemplos.
 
Em um passeio por Tiradentes, Valcir mostrou, todo orgulhoso, seus produtos, incluindo cadeira, banco e luminária. Ele também fez as estruturas da exposição e móveis para a loja da SCT.

Nunca faltou serviço, mas o marceneiro diz que agora passou a ser mais visto. “Falo que é igual o casulo e a borboleta. Eu era só uma lagartixa e a SCT me deu um par de asas para voar”, compara, com os olhos cheios d'água. Ou, em outra comparação, uma janela enorme, com vista para o Brasil todo. Para ele, esta é a prova de que sozinho não se vai a lugar nenhum.

A Escola da Semana vai ocupar uma escola municipal na área rural de Tiradentes desativada há seis anos - Foto: Semana Criativa de Tiradentes/Divulgação 
Participante da edição de 2021, o artista da marchetaria Luciano Jaques levou para a exposição seu trabalho autoral.

Em destaque, uma mesa com pelo menos 12 tipos de madeiras de reaproveitamento, como pau-brasil, jacarandá baiano roxo e pinho-de-riga, que chegou ao Brasil há mais de 500 anos, com as primeiras embarcações. Essa, especificamente, era assoalho de um museu no Rio de Janeiro.

A arte de criar mosaicos com madeira salvou sua vida. Há 15 anos, ele sofreu um acidente de moto que o impossibilitou de ser marceneiro. “Um dia, resolvi dar um presente para a minha mãe: peguei uma madeira que ia ser queimada e fiz um trevo de quatro folhas no tampo de um bufê”, conta Luciano, que se encontrou em um trabalho minucioso e detalhista.
 
Dizem que a vida começa aos 40, e essa é a sensação do artista. Aos 43, ele se sente animado pela oportunidade de apresentar seu trabalho e descobrir novas possibilidades.

A continuidade do trabalho da SCT está perto de se materializar através de um projeto ousado: a construção da Escola da Semana, prevista para ser inaugurada em janeiro do ano que vem.

Design e artesanato se encontram no pote Coralinas, desenvolvido por Marcus Camargo com artesãs da associação Mulheres Coralinas - Foto: Marcus Camargo/Divulgação
Em parceria com a Prefeitura de Tiradentes, uma escola municipal desativada há seis anos na comunidade Caixa D'Água da Esperança será transformada em um espaço de cursos rápidos de designers e artesãos, com foco na preservação de técnicas artesanais de tradição.

Como tudo na SCT, o projeto da escola é resultado de uma criação coletiva. Bel Lobo, Alex Rousset, Paulo Alves, Ligia Agostini, Ana Vaz, Henrique Oliveira, Paulo Biacchi e Lufe Gomes formam o grupo de profissionais que estão à frente da obra.
 
“Acredito muito no colaborativo. Tenho seis irmãos, então aprendi desde cedo que fazemos parte de um todo, que não podemos ser felizes sozinhos”, comenta a arquiteta Bel Lobo, visivelmente empolgada com a iniciativa.

Como ela destaca, assim como a STC “ilumina” o trabalho dos artesãos “escondidos”, a escola vai “jogar luz” em uma área (rural) da cidade pouco conhecida.

Durante o encontro dos criativos, surgiu a ideia de criar um cobogó para a Escola da Semana. O desenho é uma adaptação da logomarca da SCT, criada pelo estúdio Hardy Design, de BH. Mais de três mil peças de barro serão produzidas pela Divina Terra, de Turmalina, no Vale do Jequitinhonha. 
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