A literatura acaba de ganhar um belo presente, o livro “Lina Bo Bardi Designer, O Mobiliário dos Tempos Pioneiros 1947-1958”, volume 1, escrito pelo sociólogo, colecionar, pesquisador e galerista Sérgio Campos. A obra retrata o pioneirismo conceitual da rica produção de design do mobiliário modernista assinado pela multifacetada arquiteta Lina Bo Bardi.
Os mais velhos e quem atua na área da arquitetura e das artes já ouviram falar dessa importante mulher e conhecem sua extensa obra, mas, para a geração mais nova, vamos contar quem foi Lina, para que entendam a importância deste trabalho.
Achillina Bo, mais conhecida como Lina Bo Bardi, nasceu em Roma, em 5 de dezembro de 1914 e morreu em São Paulo, no dia 20 de março de 1992. Era arquiteta modernista ítalo-brasileira, já que foi naturalizada no Brasil após a Segunda Guerra Mundial e se tornou uma das mais importantes arquitetas do país. É dela o projeto do complexo cultural Sesc Pompeia, em São Paulo, inaugurado em 1982, e o do Museu de Arte de São Paulo (MASP), fundado em 1947.
Lina estudou na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, mas se mudou para Milão, onde trabalhou para Giò Ponti, fundador de uma revista chamada “Domus”. Já com escritório próprio, conheceu o arquiteto Bruno Zevi durante a Segunda Guerra Mundial e, juntos, fundaram a revista semanal “A cultura della vita”. Ela entra para o Partido Comunista Italiano e participa da resistência à invasão alemã em 1943. Três anos depois, casa-se com o jornalista Pietro Maria Bardi e, por causa dos traumas da guerra, vem para o Brasil. Vai morar em São Paulo e projeta e constrói para ela uma casa no Morumbi, que ficou famosa, a Casa de Vidro. Logo que conheceu Assis Chateaubriand, ele pediu que ela fizesse o projeto de um museu. Ela aceitou o pedido e nasceu assim o prédio do Masp.
Além dos projetos arquitetônicos, Lina também desenhava móveis, que ficaram famosos por seu design pioneiro modernista. Esse seu lado foi pouco falado e agora ganha destaque nas páginas do livro escrito pelo curador Sérgio Campos, com o apoio do Instituto Bardi. A obra foi editada pela Artemobilia Publicações e será lançado, nesta quarta, 26, às 18h, na loja Pé Palito, no icônico edifício projeto por Oscar Niemeyer, o Condomínio JK, localizada na Rua dos Timbiras, 2500 - loja 101.
PESQUISA
O primeiro volume tem 356 páginas e é fruto de uma pesquisa que começou em 2013, durante os preparativos para a exposição homônima no Instituto Bardi/Casa de Vidro, que integrou as comemorações do centenário de nascimento de Lina em 2014, com curadoria do autor. Esse trabalho vem preencher uma importante lacuna na obra da multifacetada arquiteta e procura mostrar, através de farta documentação escrita e fotográfica, a riqueza e o pioneirismo conceitual da produção de design de mobiliário de Lina Bo Bardi. “Desde sua primeira criação, a cadeira do MASP 7 de Abril, Lina influenciou decididamente a primeira geração de designers modernos, como Sérgio Rodrigues, que a admirava e que certa vez me disse em depoimento: pode escrever aí xará, a Lina foi “a primeira estrangeira que vestiu a alma com a camisa do Brasil”. A cadeira foi desenhada em 1947 para ser usada em um pequeno auditório da primeira sede do Museu de Arte de São Paulo, que ela ajudou a fundar, com seu marido Pietro Maria Bardi e Assis Chateaubriand. A cadeira já traz elementos da nossa cultura popular, como o assento em couro de sola selvagem costurada com barbante, a moda das vestimentas dos povos do sertão, dobrável e empilhável, assim como as populares cadeiras dos circos itinerantes”, conta Campos.
Perguntado sobre o motivo que o levou a escrever o livro, Sérgio afirma que foi necessário dentro de um contexto maior de valorização do design moderno brasileiro. “Sabemos que a arquitetura moderna brasileira, desde a década de 1940, já era famosa internacionalmente. Tivemos grandes exemplos com a escola carioca, Niemeyer sendo o principal deles, e depois, a partir dos anos 1950 e 1960, com a arquitetura paulista com Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi se inclui nessa turma paulistana. Porém, o design brasileiro não teve o devido reconhecimento, ficou na penumbra e nos últimos 20 anos começou um reconhecimento internacional pela genialidade, qualidade e quantidade de mobília moderna concebida e produzida no Brasil. Era necessário, dentro desse contexto, fazer a pesquisa com relação a Lina Bo Bardi, porque ela foi uma das precursoras e protagonistas desse processo de criação.”
CULTURA
Campos conta que Lina foi muito profícua e abraçou com sua alma nossa brasilidade. “Ela foi muito antenada. Assim que chegou ao Brasil, em 1946, começou a perceber a riqueza da cultura e arte popular brasileiras e conseguiu, a partir dessa percepção, aplicar esse conhecimento que estava adquirindo do Brasil, somado ao conhecimento acadêmico racionalista italiano na criação de mobiliário, com a cadeira 7 de abril. O primeiro projeto dela no Brasil foi em 1951, a Casa de Vidro. Ela fez o móvel antes disso. Geralmente, era a casa e depois os móveis para ocupar a casa. Com isso, ela influenciou toda a primeira geração de designers”.
O autor relata, em detalhes, a impactante atuação do Estúdio de Arte Palma, o primeiro escritório de design e arquitetura de interiores do Brasil, cujos móveis, muito adiantes de seu tempo, em boa parte foram inspirados em um dos mais perfeitos instrumentos de descanso, segundo Lina: a rede dos indígenas, os povos originários. Esses móveis diferiam de tudo que já havia sido produzido no Brasil e no mundo e eram encomendados por clientes e arquitetos visionários, como Vilanova Artigas, Rino Levi e Gregori Warchavchik.
Em plena era atômica, Lina Bo Bardi utilizou materiais vernáculares e totalmente inusitados na concepção de muitos dos seus móveis, como sola de couro selvagem, cordas náuticas, conduítes elétricos, cunhas de carro de boi, compensado de pinho, entre outros. O livro procura mostrar como esta leitura e atitude reverberaram profundamente entre os designers contemporâneos, como os geniais Irmãos Campana.
O livro também aborda a editoria de Lina na revista “Habitat”, referência fundamental entre as publicações ligadas à cultura e arquitetura no século 20 no Brasil, espaço em que assume o compromisso com temas que a acompanharam em toda sua trajetória profissional, em seu país de escolha. Um capítulo é dedicado à lendária Casa Bittencourt, em São Paulo, residência da família de Mario Taques Bittencourt, que a encomendou ao arquiteto Vilanova Artigas e que, por sua indicação, foi mobiliada com peças autorais do Estúdio Palma, em 1950. “É um projeto único que teve a felicidade em reunir o que se tinha de mais vanguardista na arquitetura e no design modernos. Depois de 70 anos, o mobiliário original foi encontrado, restaurado e reinserido na casa para um ensaio fotográfico que eu fiz”.
Sérgio buscou material do seu conhecimento em restauro dos móveis, que estuda profundamente o material com o qual trabalha, e com uma grande pesquisa feita nos aquivos do Instituto Bardi/Casa de Vidro, e esses documentos, manuscritos e desenhos estão sendo apresentados ao público pela primeira vez. O segundo volume, que será lançado ainda este ano, apresentará o mobiliário que Lina Bo criou para sua Casa de Vidro, em 1951, a internacionalmente famosa Bowl Chair, também chamada por Lina como “Tijela”, bem como os móveis que desenvolveu no período em que viveu na Bahia e aqueles especialmente desenhados para o Sesc Pompeia.
Perguntado se ele se surpreendeu com o resultado do material, Sérgio diz que sim e não. “O livro em si foi exatamente como eu imaginava, porque tive um grande lastro de documentos, sólidos, e ficou leve de ler e bem ilustrado. A combinação do lado acadêmico com essa leveza deu muito certo. O que foi surpreendente foi a repercussão. É gratificante ver o grande interesse que as pessoas têm com a história e o trabalho de Lina Bo Bardi”, conclui.