Jornal Estado de Minas
IMERSA NA LITERATURA

Enquanto vive o luto e a sucessão na agência, Carla Madeira escreve livro

“Estou vivendo uma montanha-russa.” Carla Madeira, de 58 anos, faz uma comparação com os altos e baixos da grande atração dos parques de diversão para descrever sua vida neste momento. Ao mesmo tempo em que vive o luto pela perda da mãe e de Simone Moreira, sua sócia na agência Lápis Raro, ela se entrega aos prazeres de escrever e ser uma escritora.


Nessa busca por equilibrar sentimentos e demandas, a publicitária sentiu a necessidade de começar o seu quarto livro, que, sem pressa, vai ganhando forma. Carla foi a autora mais lida do Brasil nos últimos dois anos, com “Tudo é rio”, “A Natureza da Mordida” e “Véspera”, mas não se deixa influenciar por toda a expectativa em torno do seu trabalho.

Não importa se a próxima história vai fazer sucesso. Para ela, o mais importante é se dedicar, com toda a intensidade, à literatura. Carla não consegue viver sem arte e vem se preparando para viver de arte.
 
Como anda a sua vida?
Está super intensa. No carnaval, perdi a minha sócia, a Simone, que estava comigo há muitos anos. A gente era muito amiga. Venho de um ano de luto, não só da Simone, mas da minha mãe e do meu psicanalista.
Estou vivendo um momento de equilibrar as perdas, o trabalho e o meu desejo de viver a literatura. Há dois, três anos, estamos construindo o fortalecimento das lideranças na agência, dando autonomia para as equipes, mas, ainda assim, tenho uma presença e agora estou fazendo isso sem a Simone. Ao mesmo tempo, a literatura está me demandando muito. Então, esse é um momento muito intenso, tanto por causa das perdas quanto dessa coisa maravilhosa que é a literatura. Estou vivendo uma montanha-russa, de viver o luto, de respeitar essa dor, de ter momentos em que posso acolher isso, ao mesmo tempo lidar com muitas alegrias, muito afeto, encontros extremamente ricos, trocas intensas. Então, brinco que esse é o momento mais esquizofrênico da minha vida.

Isso acaba sendo combustível para a sua escrita?
Acredito que sim. Nesse processo de adoecimento da Simone (ela teve um diagnóstico de câncer de pâncreas no ano passado), ainda não estava escrevendo o quarto livro e estava decidida a não começá-lo.
Não tinha aberto formalmente o arquivo, só estava anotando algumas ideias. Mas, durante esse processo, não dei conta: abri o arquivo e comecei a escrever. Ficou claro pra mim um certo desejo de me envolver com um projeto para dar conta do real. De buscar na linguagem artística alguma possibilidade de elaborar o que estava sentindo. Comecei a escrever o livro antes da hora, mas senti uma necessidade enorme de estar no nível de envolvimento em que a escrita me coloca.

Você se arriscaria a dizer que virar escritora foi a melhor coisa que aconteceu na sua vida?
Já tive experiência com música, de cantar e compor, que me levava para lugares de intensidade. Gosto de pintar também, tenho momentos incríveis pintando, é muito bom. Agora, escrever romance talvez seja uma das experiências mais intensas artisticamente. Vivo uma intensidade nos processos, nas consequências, no fato de os livros terem acontecido e serem reconhecidos.
Como autora, é maravilhoso. Todo autor quer que isso aconteça, mas aí entro em outro território, que é um pouco diferente da criação artística propriamente dita. Acho que essa parte do sucesso e do reconhecimento estão em outro lugar, que é maravilhoso também. Tem a ver com você sentir que aquilo ali afetou muito as pessoas, que não ficou só restrito ao espaço de um grande gozo criativo. Juntando tudo isso, talvez tenha sido a experiência artística mais completa. Não tinha nenhuma pretensão com os livros. Foi muito mais um exercício de linguagem. Fiquei ali imersa e comecei a gostar de fazer aquilo. Fui experimentando, muito nesse lugar do compor, do pintar, muito despretensiosamente. Com o primeiro livro, “Tudo é rio”, foram oito meses de uma intensidade que vivi poucas vezes na vida, de dedicação, de ficar tomada, completamente imersa naquilo, de muita entrega, algo muito visceral.
Tinha momentos assim com a música, mas não eram oito meses. Quando o “Tudo é Rio” ficou pronto, não sabia o que queria fazer com ele. Fiquei pensando: “acho que tenho um livro, será que é o caso de publicar?” Para você ter uma ideia, não tive coragem de imprimir nem mil exemplares, imprimi 700. Fiquei muito sem saber, querendo ver a reação das pessoas.

Você já se sente realizada só de escrever, não se importa com o que vem depois.
Isso é a coisa mais importante até hoje. Vivi o mesmo com o segundo livro. Queria experimentar, com o mesmo nível de intensidade e envolvimento. Não é uma coisa da ordem do que funciona, da fórmula. Me joguei em outra experiência, completamente diferente do ponto de vista literário, com mesma ideia: o mais importante é a experiência artística, fazer o que me envolve. Fiquei salivando, completamente tomada por aquela experiência. O que vem depois é lucro.
Não é que eu seja indiferente, vou ficar triste se as pessoas não gostarem, mas a primeira coisa com o que me preocupo é se eu vou gostar. Aí tenho como falar: “estou triste porque as pessoas não gostaram, mas a experiência foi incrível, fiz o livro que queria fazer”. Quando você vai se tornando uma autora mais conhecida, a expectativa em torno do seu trabalho começa a virar um peso. Se você consegue dar as costas para isso, no sentido de “agora sou eu e o meu processo criativo”, e ter uma experiência com alto nível de envolvimento e adesão, é o mais importante. É como venho tentando me proteger, não deixar que essas outras coisas, que são externas ao processo criativo, entrem comigo nessa etapa. Sou eu e mais ninguém.


Você tem experiência com música, pintura e agora literatura. O que te levou para as artes?
Venho de uma combinação muito interessante, que é o encontro do meu pai com a minha mãe. O meu pai era um homem erudito, falava vários idiomas, era matemático, foi religioso, então teve uma formação muito consistente, conhecia de música, artes, história. A minha mãe, por outro lado, é uma pessoa que mal completou o ensino fundamental, mas era uma figura de muita sensibilidade poética. Ela gostava de cantar, fazia rimas, contava histórias, tinha uma curiosidade com a vida, era muito bom ouvi-la. Tenho um caso de quando ela estava doente, naquele estresse de ir e voltar do hospital. Foi um domingo. Ela tinha saído do hospital e veio para a minha casa. Somos seis filhos e disputávamos quem ia ficar com ela, de tão legal, rica, terna e afetuosa que era a troca. Era uma pessoa muito boa de ficar junto. Trouxe ela aqui pra casa, ela passou um dia bom. No meio da tarde, senti uma febre nela, muito baixa, mas, como estava em tratamento de quimioterapia, a médica falou que ela tinha que voltar para o hospital. Ela já tinha tomado banho, estava na cama, dormindo, super quentinha. Quando estávamos atravessando o meu jardim, ela viu um pé de alecrim que tinha plantado e parou para colocar a mão nele e falar como estava lindo. Foi muito bonita essa cena. A minha mãe era esse tipo de pessoa que, mesmo no meio da loucura, sempre enxergava a beleza, o sensível, tinha curiosidade. Então, vim dessa combinação: de um lado a informação sobre arte, história, matemática e do outro essa pessoa com sensibilidade, imaginação, curiosidade. Meus pais, mesmo tendo pouca grana, nunca me impediram de fazer aula de música, pintura, teatro, e eu experimentei todas essas coisas, eles me incentivavam. Com nove anos, ganhei um violão e ele foi meu amor até os 20 e tantos anos. Até me formar e começar a agência, só fazia tocar e cantar, muito mais do que ler. Aprendi a gostar de ler com Monteiro Lobato e me apaixonei por poesia e história através da música. O pensar, a criação através da palavra vieram da música.

Que caminho você enxergou quando escolheu se formar em comunicação?
Antes de comunicação, cursei matemática. Fiz por uns dois anos, mas fui ficando triste. Embora tivesse muita facilidade, toda a minha família é da área de exatas, respirava matemática em casa, mas sabia que queria mexer com criação. Fui para a comunicação movida por essa ideia de que poderia ter contato com várias linguagens artísticas, e de fato publicitário tem que dominar música, fotografia, artes plásticas, cinema. Além da criação, durante anos fui diretora de planejamento da agência, então usava pensamento lógico, matemática, um lado que gosto muito. Foi uma coisa que super deu certo pra mim. Hoje sou presidente da Lápis Raro e entro nos dois territórios.

Até hoje você não deixou o trabalho na agência. Isso é por opção ou porque não dá para viver de literatura?
Tenho uma empresa muito reconhecida, muito forte, estamos entre as melhores do mercado. Eu e Simone começamos a fazer o desenho de sucessão há três anos. Estávamos programando isso porque é uma transição importante. Estou há 36 anos na agência e chegou a hora de passar o bastão. Hoje tenho uma equipe muito estruturada e posso ficar muito mais no nível estratégico, mais de conselho do que na operação diária. Trabalho cada vez mais para a equipe ter autonomia e a turma tem um pensamento muito consistente sobre o que é fazer comunicação, marketing e gestão. Tem gente que trabalha na agência há 30 anos. No início do mês, fiz uma viagem de cinco dias em um barco literário chamada “Navegar é preciso”. Quando estou em BH, tenho agenda na Lápis Raro e vou equilibrando as demandas.

Em que momento o mundo da publicidade se encontra com o mundo da literatura?
Toda marca quer contar boas histórias, então esse encontro entre a publicidade e a literatura é muito especial, isso faz parte da força da Lápis Raro. A agência sabe contar histórias.

Qual é o seu gatilho para escrever?
Gosto da qualidade do envolvimento de estar escrevendo. Não sou a pessoa que quer escrever sobre determinado assunto, quer pautar, não parto desse propósito. Parto de um pequeno acontecimento. Em “Tudo é rio”, tenho ali a prostituta e o cara que se recusa a se deitar com ela. Parto de um acontecimento quase banal e a minha curiosidade e imaginação vão me levando. Esse fio vai puxando a história, aí entram as camadas de inconsciente, inserção social, elas vão trazendo questões que acabam virando a grande estrutura do livro. Por exemplo, no “Tudo é rio”, a questão do perdão é muito forte e a partir daquilo ali vão entrando outras questões. Sempre é um acontecimento que me pauta, não é uma temática ou um acerto de contas ou um desejo de pautar alguma questão social. Acaba que isso acontece, e é maravilhoso, porque essas questões não nos escapam, são nossas questões humanas. Mas não faz parte do meu processo criativo. Acho que, se partisse disso, teria dificuldade de não entrar em certo didatismo.

Você sempre foi uma pessoa observadora?
Tenho anos de vivência de terapia e análise, isso é algo forte na minha história. A minha mãe falava: “Carla, quando você começa a conviver com uma pessoa, em três dias está falando igual a ela”. Essa observação, quase osmose, mimetização de outra figura, sempre esteve comigo. “Olha lá a Carlinha imitando fulano”. Existia um certo deboche, uma certa censura na família, de tanto que pegava o jeito da pessoa, desde muito pequena. Então, eu era uma antena sensorial, percebia um jeito da pessoa e na hora em que via estava falando igual, olhando igual, me movimentando igual.

O que tem de autobiográfico nos seus livros?
Tem um pouco de mim ali, mas não é um acontecimento do começo ao fim, é um detalhe. Exemplo: na minha vida de adolescente, brincava de imitar a Lucélia Santos e no livro “A natureza da mordida” tem um personagem que brinca na rua de fazer isso, mas não era eu que estava ali, são situações completamente diferentes. De biográfico tem muito mais o encaminhamento de alguns afetos do que os fatos. Quando você está escrevendo, algo em você está se resolvendo, seu inconsciente entra em ação. Você não teve a intenção, mas aquilo está lá.
 
Como funciona o seu processo de escrita?
As experiências foram diferentes. No “Tudo é rio”, tive disciplina de escrever todos os dias. Saía da Lápis Raro, chegava em casa, encontrava meus filhos, botava eles na cama, tomava meu banho, comia e aí ia escrever. Ficava duas horas escrevendo, no fim de semana cinco, seis horas seguidas, sempre em casa, mas vivi algumas situações curiosas. Levei meu computador para as filmagens da agência, que são super demoradas, tem troca de luz, figurino, eixo da câmara. Naquele tempo, estava tão envolvida na história, ela estava gritando dentro de mim que, mesmo estando em um ambiente barulhento, cercada de gente, sentei e escrevi. Isso aconteceu poucas vezes, mas aconteceu. O fim de “Véspera” escrevi durante a pandemia, aí foi punk. Não tinha o ritual de sair da agência, mudar de roupa, mudar de máquina, tudo muito misturado, era o mesmo lugar, fiquei exausta. O processo do “A natureza da mordida” foi incrível. Pintei 40 quadros enquanto escrevia o livro. Senti muita necessidade de fazer pequenas interrupções para dar conta de voltar para a história. Foi muito intenso. Agora estou começando a embalar no quarto livro. Já abri o arquivo, vou relendo, trocando uma palavra, garimpando ideias. Estou cuidando da história, pensando, anotando. Não tem um dia sequer em que não esteja fazendo alguma coisa.

O que você já pode contar sobre o quarto livro?
Os meus três livros são histórias familiares, de famílias marcadas por situações muito impactantes, e isso vai continuar. Estou gostando de experimentar a polifonia.

Tem prazo para entregar?
Nem pensar. Se tivesse prazo, ia ficar louca. Não dou conta de ter prazo na literatura, para mim não faz sentido. Estou na literatura por outra motivação, é um espaço de criação que protejo para que não vire essa coisa que já vivo na agência.

Imagino que você já tenha ouvido relatos de muitos leitores sobre os seus livros. O que ficou marcado na sua memória?
São muitas histórias. Outro dia uma menina falou que viveu um rompimento de três anos com uma tia que gostava muito. Ela mandou o “Tudo é rio” de presente e a tia a chamou para conversar. O livro conseguiu resolver esse afastamento. Já ouvi de um presidiário que, depois de ler o livro, ele parou de odiar. Fora os depoimentos de famílias que tiveram casos de feminicídio e que contam que o livro as ajudou a aproximá-las, no sentido de querer conversar sobre aquilo.

Isso te surpreende de alguma forma?
A força que a minha literatura ganhou nacionalmente me surpreende. Não achava que isso aconteceria com tanta força. Fui a autora mais lida em 2021 e 2022, meus três livros estão na lista dos 10 mais vendidos, isso foi surpreendente. Agora vai se tornando mais natural que, em função da força desse acontecimento, mais pessoas cheguem junto, queiram fazer parte desse entusiasmo ao redor da minha literatura, fiquem curiosas.

Por que você acredita que os seus livros fazem sucesso?
Primeiro, tem uma linguagem com uma forte oralidade, e essa oralidade tem essa possibilidade de envolver, a pessoa fica enredada. Acho também que dizer as coisas com todas as letras. “Tudo é rio” não dá para colocar numa caixinha. Tem um lado poético, mas uma coisa super crua, tem o profano e o sagrado, tem a brutalidade e a violência, mas a delicadeza. Acho que isso gera uma força muito grande. O livro toca em questões nas quais as pessoas estão se colocando. Essas questões já estão dentro das pessoas, são universais, por isso fazem sentido. Costumo dizer que é como se o livro juntasse algumas coisas espalhadas dentro dessas pessoas, isso que sinto no retorno delas, como se tivessem compreendido alguma coisa dentro delas.

O que você quer para o futuro?
Quero que a agência esteja absolutamente estruturada e encaminhada para que eu possa me dedicar totalmente à literatura, pintura, música, sem compromisso. Que possa viver esse lado artístico full time, o que nunca pude fazer. Sempre tive que priorizar a minha vida profissional Agora cheguei em um momento da vida, até pela idade, em que a coisa mais preciosa passa a ser o tempo. Preciso que o tempo seja livre, meu, e é isso que estou construindo. 
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