Tudo – mas tudo mesmo – que não se deve fazer com uma peça sacra, em casa ou nas igrejas, está estampado numa imagem do século 19 recém-chegada ao ateliê do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG), em Belo Horizonte. De cedro e com 80 centímetros de altura, a Santana, proveniente da Matriz de São José das Três Ilhas, em Belmiro Braga, na Zona da Mata, foi alvo, ao longo de uma década, de abandono associado à ação do calor, umidade, luz solar, ataque de cupins e outros fatores de risco. O resultado foi devastador para a estrutura do objeto de devoção, que apresenta interior praticamente oco, perdas na madeira e policromia e face desfigurada. Mesmo com tantos problemas, a boa notícia é que há “salvação” para a escultura, diz a gerente de Elementos Artísticos da instituição, Yukie Watanabe, certa de estar, com a sua equipe, diante de um grande desafio para recuperar o bem cultural tombado desde 1997.
A Santana é a peça que chegou, até hoje, em piores condições ao ateliê do Iepha, na Praça da Liberdade, na Região Centro-Sul da capital. Yukie conta que, pela urgência, ela será restaurada com recursos do instituto, devendo retornar ao local de origem no prazo de seis meses. Desde que a imagem foi encontrada num quartinho da igreja com o restante do acervo, os restauradores empreenderam uma operação especial para evitar desgastes do suporte. “É como se estivesse em estado terminal, com degradação crônica. Não poderemos retirar nem os excrementos de insetos para a estrutura não ruir. Foi milagre continuar de pé, já que os insetos só não destruíram a policromia e a base de preparação feita de massa de carbonato de cálcio”, destaca a gerente. De imediato, na igreja, foram tomados os primeiros cuidados, caso da higienização e desinfestação para exterminar cupins.
Em dezembro, durante uma vistoria, a restauradora Maria Caldeira esteve em Belmiro Braga e ficou surpresa ao ver a beleza em estilo neoclássico da imagem e “horrorizada” ao encontrá-la ao lado de uma janela, num cômodo tomado por teias de aranha, fezes de pássaros e até uma maritaca morta. Com autorização da Secretaria Cultura local e da Arquidiocese de Juiz de Fora, à qual a matriz está vinculada, a peça foi transferida para BH. “Eram tantas as galerias abertas pelos insetos na madeira, que fomos obrigados a fazer rolinhos de algodão e preenchê-las. Para transportar, formamos um força-tarefa e acondicionamos a imagem numa caixa ”, diz a restauradora. Ao manusear a seringa e injetar, com precisão cirúrgica, produtos químicos na madeira, Maria diz que só de ter saído do quartinho já foi “um ganho” para a peça.
Cuidados para preservar
A gerente de Elementos Artísticos não responsabiliza a comunidade de Três Ilhas pelos estragos causados à Santana e a outros cinco objetos de fé, que também vieram para o ateliê e serão restaurados com recursos da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese). “Muitas vezes, as pessoas põem o santo num quartinho na intenção de guardá-lo, mas, por falta de informação, não o fazem de forma adequada. Por ficar perto da janela, a Santana esteve exposta, durante 10 anos, conforme o relato de moradores, à luminosidade, calor, umidade, fungos e ação silenciosa de insetos. Queremos que todos de Belmiro Braga acompanhem o serviço conduzido aqui no Iepha, pois se trata de um patrimônio cultural da cidade que merece ser preservado.”
De uma caixa de ovos, Yukie retira, com uma pinça, fragmentos que se desprenderam da face da Santana. “O nosso objetivo é manter o máximo possível a originalidade da peça, sem transformá-la em outra. É preciso que a comunidade a reconheça na volta. Por sorte, não houve qualquer intervenção que interferisse na escultura e pudesse dificultar os procedimentos que agora começam”, afirma. Olhando a imagem, ao lado das restauradoras Maria Caldeira e Anamaria Camargos, a gerente sabe que tem pela frente uma missão árdua e delicada. “Com o tempo, iremos traçando as etapas de restauração, pois, desta vez, o processo ainda não pôde ser definido, tal a degradação. Vamos fazer muitos testes, para diagnosticar a melhor técnica a ser empregada”, afirma. A Santana traz a mão no peito e está acompanhada de uma menina (45cm de altura), ambas carregando uma faixa com os 10 mandamentos.
No dia a dia, há providências simples (ver quadro) que garantem a conservação de peças (de madeira, gesso, cerâmica, barro cozido, marfim, tecido encolado ou pedra) e evitam um eventual restauro, que, por mais idôneo que seja, diz a gerente, gera interferência. “O melhor caminho é fazer o acompanhamento do objeto e do local no qual ele se encontra, não deixando o acervo abandonado em armários ou, no caso de instituições, em reservas técnicas. “Limpeza também é fundamental”, afirma.
Trabalho de especialista
A restauração de uma peça sacra, obra de arte e acervos de relevância deve ser executada sempre por um profissional com experiência. Dependendo das condições, o trabalho pode durar meses, pois as etapas minuciosas demandam tempo, paciência e muita técnica (ver o quadro). De modo geral, o serviço começa com a desinfestação, passa pela consolidação do suporte usando-se injeção de resina acrílica e inclui o reforço da estrutura prejudicada. Na sequência, vem o nivelamento da superfície e, finalmente, a apresentação estética. “No restauro, cada caso é único, e os procedimento são sempre adequados ao diagnóstico”, diz Yukie.
De acordo com informações, o Iepha já tem o projeto de restauro para a Matriz de São José das Três Ilhas, faltando recursos para executá-lo. Pelas pesquisas, a igreja foi construída a partir de projeto do arquiteto Quintiliano Nery Ribeiro, que atuou em Juiz de Fora, na Zona da Mata. A obra ficou a cargo do mestre-pedreiro português Manoel Joaquim Rodrigues. O assentamento da pedra fundamental se deu em 1º de agosto de 1880. Em maio de 1886 foi celebrada a primeira missa. O prédio passou por grande reforma em 1945, quando o antigo forro em estuque da nave foi substituído pelo atual em madeira e foram criadas as pinturas decorativas na parede da nave, além de obras na capela-mor.
Cinco passos do restauro
1)Exame minucioso da condição da peça, com limpeza superficial, diagnóstico e desinfestação para extermínio de cupins e outros insetos xilófagos
2) Revisão estrutural, na qual se avalia as condições do suporte (madeira, terracota etc.) da obra
3) Higienização mais elaborada
4) Nivelamento, feito com uma espátula na superfície das áreas de perda
5) Apresentação estética, com posterior aplicação de uma camada de verniz para proteger
Fonte: Iepha/MG – As fotos são de várias peças e feitas em períodos diversos
Cuidado máximo
>> Ficar sempre de olho no objeto e no lugar no qual ele está
>> Evitar incidência direta de luz, calor e fontes de umidade (janelas, pias, torneiras, tubulações hidráulicas etc.)
>> Não deixar as peças abandonadas em armários ou, no caso de instituições, em reservas técnicas de acervo. Salas escondidas são outro perigo, pois impedem que o proprietário detecte a ação de cupins, pequenos roedores, morcegos e pássaros ( excrementos ácidos dos animais corroem a pintura)
>> Evitar deixar as peças em locais de muita circulação de pessoas, caso de borda de mesas, para impedir impactos e quedas
Manter as obras sempre limpas, usando espanador de penas macias ou pano seco também macio
>> Se a peça soltar policromia, é sinal de ataque de insetos xilófagos ou degradação. Procurar um especialista para avaliar o dano e indicar o melhor procedimento
>> Não molhar e não ficar manuseando muito o objeto
>> Flores atraem insetos, então é bom mantê-las afastadas da peça
Fonte: Iepha/MG