Jornal Estado de Minas

Internações em clínicas psiquiátricas ficam no passado

Ana Clara Brant

"Eu tinha uns 13 anos e depois disso fiquei com a cabeça ruim. Há quase três anos larguei aquilo lá e a minha vida melhorou demais", Sebastião Margarido, de 51 - Foto: Túlio Santos/EM/D.A Press


Elza Campos Silva, de 64 anos, só se lembra de uma vida: a que passou em instituições psiquiátricasEra bebê quando foi abandonada pela família em um hospital de Oliveira, na Região Centro-Oeste de MinasDe lá, foi para Barbacena, onde passou 56 anos pulando de um sanatório a outro“Eles falavam que eu vim do CearáMas nem seiMinha família me deixou no sanatórioTinha choque, cela..Não gostava de lá”, repete várias vezes, com o olhar perdidoQuando, em 2003, recebeu alta, nem acreditou e hoje o que mais gosta é de comprar suas próprias coisas

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A coordenadora Leandra Vilhena lembra que chegam a ocorrer casos de pacientes que têm receio de deixar o manicômio por não querer enfrentar um mundo desconhecidoMas mesmo quem prefere continuar o tratamento fora dos hospitais tem a opção de voltar atrás

“Eles não deixam de ser tratados nas residênciasTomam remédios por toda a vidaMas não são obrigados a ficarSe quiserem voltar para o sanatório, podem, ou mesmo viver com parentesA gente se preocupa é com o bem-estar deles”, afirma Leandra Vilhena

O piauiense Adelino Ferreira, de 64, foi um dos que relutaram em deixar o hospital, onde “morou” por mais de cinco décadasMas não se arrepende da decisão de sair e está casado com a mineira Nilta Pires Xavier, de 51, também egressa do sanatórioOs dois se conheceram lá“Eu não queria saber de namorarMas ela começou a lavar minhas roupas e nós fomos nos aproximando e acabamos casando na igreja e tudo”, conta Adelino


O casal vive com uma renda mensal de R$ 1,7 mil, oriunda da pensão do governo e dos bicos de Adelino, e faz o que mais gosta: viajar“Avião é bom demaisA gente vai para todos os cantos, mas o mais bonito é Aparecida”, diz Nilta, que aos 17 anos foi abandonada pela mãe no Hospital Raul Soares, em BH

Outro que começou a viver é Bento Márcio da Silva, 47Durante anos, foi andarilhoCaminhava país afora para “ficar longe da família que me perturbava”“Cheguei a ir três vezes a pé a Porto Alegre (RS)Eu ficava muito eufórico, começava a andar, cantar, dançarPerdi a conta de quantas vezes fui internado.” Só no Hospital da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig), em Barbacena, o antigo e temido Hospital Colônia, foram 25 vezesRecebeu tratamento também em instituições de São Paulo e do Paraná“A polícia me achava e me levava para o manicômioLembro que vagando pelas rodovias sempre achavava um jornal e lia as notícias do CruzeiroHoje, vou ler uma notícia de mim”, brinca

Companheiro de Bento na casa, Rogério Roma, de 47, tem uma das histórias mais intrigantesFoi largado pela família em Nova York e parou em BarbacenaUm pouco confuso, tenta explicar o episódio e sua grande preocupação é voltar para a mãe, internada em um asilo norte-americano“Fui visitá-la, mas meus tios me largaramFui achado de cueca na rua, sozinho, e me transferiram para cáMas eu quero morar com minha mãeSó que é preciso R$ 1 mil para ir aos Estados Unidos”, desabafa com lágrimas nos olhos

Enquanto Rogério tenta se habituar à nova realidade, Márcio Rocha, de 43, diz estar no céuEle ainda está na fase de transição entre a residência terapêutica e o hospital psiquiátrico, onde tem que passar pelo menos um dia da semanaMas diz que não vê a hora de voltar a viverMárcio passa o dia fazendo o que mais gosta: escrever e rezarE escreve sempre a mesma coisa em todas as páginas do inseparável caderno – “Márcio Rocha que está no céu; Hosana nas Alturas… Ave Maria cheia de graça….” E desfila uma lista de nomes de santos, expressões e orações religiosas“RezoGosto de todos os santosSou o major da lei celestial e quero falar de Deus para todos”, diz vestindo um uniforme do Èxército

No andar de baixo da mesma casa mora o matogrossense Sebastião Margarido, de 51“Preferi ficar aqui embaixo porque lá em cima só tem doido”, brinca ele, que passou cinco anos no Manicômio Judiciário Jorge Vaz, em Barbacena, acusado de assassinar duas pessoasCom fama de namorador, ele chegou a engravidar uma companheira de manicômio, mas diz estar mais sossegado“Nem sair eu saio maisO pessoal de Barbacena não gosta muito de mimPrefiro ficar em casa ajudando na arrumação ou namorando a MarcileneAcho que vamos nos casar, porque hoje eu posso viver de verdade”, diz Tião.