Parte da história de Minas está se despedaçando em cidades do estado. Mantidos sob proteção no papel, bens tombados que guardam a memória mineira estão relegados ao esquecimento e abandono. Levantamento do Ministério Público (MP) estadual mostra que pelo menos 15% dos 3.704 bens de valor histórico, cultural, arquitetônico e ambiental sob proteção no estado se encontram em mau ou péssimo estado de conservação. Com base no estudo, o MP cobra melhoria nas políticas de proteção aos bens tombados e mais incentivos a proprietários dos imóveis para investimentos em revitalização.
Na lista elaborada pelo Ministério Público, bens ferroviários, como estações, armazéns, oficinas e galpões, estão entre os que têm mais problemas. “Pelo menos 1,5 mil (bens ferroviários) estão abandonados em Minas. Nem todos são tombados, mas têm proteção federal desde 2007”, diz o promotor Marcos Paulo de Souza Miranda, coordenador da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico de Minas Gerais.
Segundo Miranda, casarões e imóveis residenciais ficam em segundo lugar na relação de bens malconservados, seguidos por igrejas e capelas. Museus e edificações públicas vêm em quarto, enquanto os sítios arqueológicos, espeleológicos (grutas e cavernas) e paleontológicos (fósseis vegetais e animais) fecham o ranking. De acordo com o promotor, os sítios já têm proteção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), mas em alguns casos, enfrentam enormes dificuldades para manter viva a história dos antepassados.
O Estado de Minas visitou três localidades da Região Central do estado cujos bens estão em mau estado. Em Belo Vale, a 83 quilômetros de Belo Horizonte, a efervescência da Estação Ferroviária Central e seu entorno se restringe à memória dos moradores mais antigos. Desde que o transporte de passageiros foi extinto, em 1988, o prédio construído em 1917 deixou de receber o grande fluxo de passageiros entre Belo Horizonte e cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Janelas e portas estão quebradas e o telhado que ainda sustenta telhas francesas tem buracos.
Degradação
Na plataforma de embarque, tradicional pelo café da dona Vica, a cobertura foi arrancada para permitir a passagem de locomotivas que hoje só transportam minério extraído na região. Moradores contam que, sem vigilância, a Estação Central sucumbiu à marginalidade e frequentemente é usada como ponto para consumo de drogas. “Este era um lugar que tinha vida, era um ponto de encontro que movimentava a cidade. Hoje, está totalmente sem proteção”, diz o coordenador de projetos da Associação do Patrimônio Histórico, Artístico e Ambiental de Belo Vale, Tarcísio Martins. Assim como ele, a historiadora e professora Maria Aparecida da Glória, moradora de Belo Vale, defende a restauração do bem e a transformação do espaço em um equipamento cultural.
Para quem viveu os tempos áureos da estação, o sentimento é de tristeza. “Trabalhei aqui durante 27 anos e
tenho saudade daquela época boa. Hoje, olho para a estação e fico chateado. É a cultura e a população que saem perdendo”, diz o ferroviário aposentado Vicente Moreira dos Santos, de 61 anos. O ferroviário José Henrique, que trabalha na estação, também lamenta. “É uma pena ver a estação abandonada desse jeito”. A Prefeitura de Belo Vale diz ter projeto para revitalizar a estação, mas ainda espera liberação de recursos pedidos a uma instituição bancária. “Estamos com o projeto aprovado pelo Iphan e pelo Iepha, mas não há recurso para a revitalização, avaliada em R$ 380 mil”, disse o prefeito Wanderley de Castro (PMDB). Segundo ele, o imóvel poderá sediar um centro cultural, a Casa do Artesão ou o museu da ferrovia.
Fazenda
Em Conselheiro Lafaiete, também há imóvel em risco. A sede da Fazenda Paraopeba, que segundo inquéritos que incriminaram os inconfidentes, os Autos da Devassa, pertenceu a Alvarenga Peixoto, está degradada. As paredes de pau a pique, telhados e pisos de madeira do casarão colonial, às margens da BR-383, estão em péssimo estado. A primeira parte da casa, em formato retangular, com duas salas e dois quartos, foi construída no século 18 e está fechada por apresentar risco de queda. A segunda parte, o sobrado, datada do século 20, também tem problemas.
A aposentada Elizia Gonzaga, de 60, e o filho dela, Fernando Felisberto Gonzaga, de 35, são os atuais moradores da casa. Os dois dizem já ter pedido ajuda para revitalizar o imóvel. “Já alegamos ao município, responsável pelo tombamento em 2006, que não temos condições financeiras de reformar a casa, ainda mais mantendo a estrutura original. Fico triste de vê-la caindo um pouco mais a cada dia”, disse Fernando. Elizia relembra duas grandes enchentes do Paraopeba que abalaram ainda mais a estrutura da casa. “A água subiu um metro e meio. Quando chove aqui é um horror. A gente tem que sair porque a casa pode cair a qualquer momento”, relata. A aposentada mora na fazenda desde 1971. Segundo o secretário de Cultura de Conselheiro Lafaiete, João Batista da Silva Neto, um termo de ajustamento de conduta (TAC) foi firmado com uma empresa que será responsável pelo restauro da sede da fazenda. O secretário, no entanto, não informou quando as obras serão executadas.
Casarão Também não há previsão para obras de revitalização de um dos mais antigos imóveis do município de Itaverava, o casarão do padre Taborda. Localizado no centro da cidade, ao lado da Igreja Matriz, o imóvel data da segunda metade do século 18, quando muitas casas passaram a ser substituídas por sobrados. Em seu interior, painéis pintados à mão estão sendo analisados por haver suspeita de que sejam feitos pelo pintor Manuel da Costa Athaíde, o Mestre Athaíde.
Segundo moradores, a família do padre Taborda teria abandonado o imóvel. Há relatos ainda de que no local tenha funcionando a casa paroquial de Itaverava. “É um prédio muito bonito e de muita importância para a cidade. A gente vê ele assim e dá dó”, lamenta o aposentado Paulo Antônio do Nascimento, de 86 anos. A Prefeitura de Itaverava diz que o processo para tomada de posse do imóvel está em andamento. Depois dessa etapa, será elaborado projeto de restauro.
Palavra de especialista
Maria Efigênia Lage de Resense - Professora emérita de história da UFMG
Patrimônio para o futuro
O número de 15% de bens em mau ou péssimo estado de conservação ainda é generoso, porque acredito que ele pode ser ainda mais alto. Quando se fala na questão do tombamento, o fundamental é a defesa da herança histórica e cultural. Ela precisa ser mantida porque gera subsídios para que sociedade entenda o tempo presente e pense o futuro. É a forma mais adequada para se preservar o conhecimento, para se ter noção do que é anterior à história do tempo presente, ou seja, as coisas como foram são importantíssimas para esclarecimento do que elas são hoje e do que podem vir a ser. O resgate dessa memória é emergencial e deve ser imediato. Se deixarmos os fatos irem se perdendo no tempo, podemos ter um prejuízo histórico muito grande. Percebo que, desde o surgimento da ideia de patrimônio, na década de 1930, tivemos realmente muitas ações de preservação sendo feitas, mas posteriormente, esse movimento se enfraqueceu. Hoje, por mais que os órgãos de preservação se esforcem, as ações de proteção ainda são deficitárias. Há bens sendo preservados, mas ainda há muito o que fazer para manter a materialidade da história em Minas.