A máxima consagrada de que mineiro não perde trem anda caindo por terra. Pior: Minas corre o risco de ver destroçados dois de seus bens históricos ferroviários que tiveram papel de destaque no início do século 20. Ambos estão castigados pela ação do tempo em Belo Horizonte e desprotegidos diante da falta de entendimento entre a antiga estatal do setor e o órgão que deveria zelar pela história do patrimônio federal. Em 2012, eles completam 100 anos. O vagão de madeira ainda guarda marcas de luxo dos tempos em que transportava autoridades em vistorias de trechos da linha férrea. Está se despedaçando. E a locomotiva a vapor n. 20, que transportou passageiros de Norte a Sul do Estado, tornou-se alvo da ação de vândalos e teve sua pintura pichada.
Há cerca de 25 anos, ambos marcam a entrada dos visitantes no edifício na Rua Sapucaí, no Bairro Floresta, na Região Leste da capital, que abrigava a sede da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Lá está instalada a Inventariança RFFSA, que atribui ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a responsabilidade pela preservação, enquanto o Iphan alega que os inventariantes são os detentores desses bens.
Diante do impasse sobre quem deveria cuidar do problema, sai derrotada a memória nacional. Conforme a antiga estatal, todos os bens móveis e imóveis foram doados durante seu processo de liquidação que resultou na concessão do direito de uso da linha férrea a empresas privadas. De acordo com a chefe da unidade regional Belo Horizonte da inventariança da extinta RFFSA, a advogada Vânia Silveira de Pádua Cardoso, o patrimônio histórico ficou sob a guarda do Iphan. “Estamos progressivamente inventariando e repassando os bens ao órgão, mas a doação já foi prevista com a sanção da Lei 11.483 de 2007”, afirma.
A afirmativa de Vânia está confirmada no artigo 9º da lei que diz: “Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção”. Portanto, conforme a advogada, a revitalização do vagão e da locomotiva deve ser feita pelo órgão de patrimônio. “Os bens já são do Iphan, mas o instituto precisa reconhecer o valor histórico deles. Então, fazemos os levantamentos das peças e enviamos ao órgão a certificação desse valor, mas isso não inviabiliza a restauração.”
Documento
O pedido de manifestação de valor histórico do vagão e da locomotiva constam em um documento com 430 bens enviado ao Iphan em 28 de julho, segundo a advogada. O Estado de Minas teve acesso à documentação. Vânia argumenta ainda que a inventariança optou por priorizar as peças de cidades do interior que poderiam ser extraviadas e deixou as de Belo Horizonte para um segundo momento, já que estão sob a mesma vigilância direcionada ao prédio. “Aqui elas correm menos risco de desaparecer do que uma peça em outro município”, alega.
A chefe da regional BH diz que na época em que a locomotiva e o vagão foram pichados, há cerca de três meses, o Iphan foi alertado sobre o dano. “Fui pessoalmente fazer o comunicado e fui informada de que já havia um projeto de repasse de locomotivas e vagões a prefeituras, por meio de convênios, e que as peças aqui do prédio entrariam no pacote”. Segundo ela, apesar da vigilância permanente na edificação onde ficava a sede, não é possível ter controle sobre a ação de vândalos.
Mas mesmo ciente da legislação que trata da doação dos bens, o Iphan afirma, por meio de sua assessoria de imprensa, que a posse da locomotiva e do carro de passageiros ainda não foi repassada oficialmente. E de acordo com o superintendente do Instituto em Minas, Leonardo Barreto, a prioridade dentro das ações de restauro é a revitalização do prédio da extinta Rede, na Rua Sapucaí. “O projeto de restauro do imóvel está pronto e aguardamos apenas o recebimento de recursos do Patrimônio Ferroviário para darmos início às obras e transformá-lo em Centro da Memória Ferroviária de Minas Gerais. Os reparos começarão pelo telhado e serão feitos andar por andar”, afirma Barreto.
Prejuízos
Mas a dificuldade em resolver o imbróglio só piora o estado de conservação dos bens. De acordo com o diretor adjunto administrativo do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Belo Horizonte (MG/RJ/SP/GO/DF), o ex-ferroviário Fernando Feijó, é lamentável ver duas das unidades que reacendem a memória do transporte ferroviário em Minas em total abandono. “Esse era um vagão de luxo, com bancos de couro e varanda. Era usado só para levar diretores e autoridades que faziam inspeção da via e tinha capacidade para apenas oito pessoas. É triste que esteja nesse estado”, lamenta.
Sobre a locomotiva, que ainda funciona, Feijó faz um alerta: “Ela poderia estar sendo usada em algum trecho que tem potencial turístico, mas está aqui parada. Antes, era até ligada, mas hoje, nem isso mais ocorre”. Apesar de o Ministério Público Federal ter procedimentos investigatórios em andamento sobre bens móveis do prédio da Rua Sapucaí, não há nada específico para a locomotiva e o vagão de passageiros.
Enquanto isso... Papéis são recuperados
O Iphan deu início à recuperação de milhares de documentos do acervo da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), que foi liquidada em 1996 e extinta em 2007. Os papéis com a memória da empresa estavam em salas do prédio da Rua Sapucaí, na Região Leste da capital mineira. Entre o material já pesquisado há raridades, como a Collecção das Leis, com o primeiro dos mais de 60 volumes datado de 1867, plantas de estações de trens, desenhos de vagões, relatórios técnicos, notas fiscais, fotografias e até os estudos de criação da logomarca estatal. De acordo com o Superintendente do Iphan em Minas, Leonardo Barreto, o trabalho deve ser concluído em até três anos.
Memória / De BH para o Sul e Norte
Fabricada em 1912, a Locomotiva nº 20 operou no transporte de passageiros no trecho entre Belo Horizonte e Lavras, no Sul de Minas, e também fez a conexão ferroviária entre a capital mineira e Montes Claros, no Norte do estado. Datado da mesma época, o carro de passageiros da administração da extinta Rede Ferroviária Federal, vagão luxuoso para a época e rico em detalhes, foi usado por autoridades e diretores da antiga empresa estatal para inspeção de trechos da ferrovia Oeste Minas, entre São João del-Rei e Tiradentes, no Campo das Vertentes. Há aproximadamente 25 anos eles estão estacionados no pátio de entrada do edifício da inventariança da extinta Rede, na Rua Sapucaí, no Bairro Floresta, Região Leste de Belo Horizonte. Ambos têm bitola 0,76 (largura determinada pela distância entre dois trilhos da linha férrea) e são peças raras do patrimônio ferroviário do país.